"O trabalho de um artista é estar um momento à frente do espírito do tempo (zeitgeist) e fazer algo novo que as pessoas não conseguem ainda sentir." Estas palavras do compositor Hans Zimmer, num texto escrito para a revista Gramophone, condensam bem a sua forma de pensar a música. Nesse artigo dedicado a uma das suas grandes referências - Ennio Morricone, my inspiration -, o compositor alemão discorre sobre a importância da experimentação e da curiosidade quase infantil que identifica no mestre italiano, assumindo-as, para si, como a melhor filosofia..Não é de estranhar que assim seja, afinal estamos a falar de alguém que ao longo dos anos foi cimentando uma postura pouco convencional na criação de bandas sonoras para cinema, ao combinar sonoridades eletrónicas com os tradicionais arranjos de orquestra. Isso mesmo se poderá testemunhar no espetáculo The World of Hans Zimmer - A Symphonic Celebration, que regressa neste domingo à Altice Arena, em Lisboa (depois de um concerto esgotado em abril), com a projeção de excertos de filmes que acompanham, visualmente, as respetivas bandas sonoras interpretadas pela orquestra sinfónica que o maestro inglês Gavin Greenaway dirige..Sendo o diretor musical e curador da digressão, por regra, Hans Zimmer não está presente nos espetáculos. Mas, no caso, pode dizer-se que a esperança é a última a morrer, já que no final do anterior concerto ele deu um ar de sua graça em palco, pondo a audiência portuguesa ao rubro....Nesta aparatosa celebração de uma carreira tão diversa quanto ilustre, Zimmer reúne cúmplices e colegas de alto gabarito, desde a cantora australiana Lisa Gerrard (que dá voz ao famoso tema Now We Are Free, de Gladiador) ao flautista Pedro Eustache, passando pelos guitarristas Amir John Haddad e Juan García-Herreros, os percussionistas Luís Ribeiro e Lucy Landymore, para além da Orquestra Sinfónica do Teatro Bolshoi da Bielorrússia e o Coro da Televisão e Rádio Bielorrussa..Vencedor de um Óscar, dois Globos de Ouro e quatro Grammys, Hans Zimmer é o nome por trás das bandas sonoras de filmes tão diferentes como Miss Daisy (1989), Thelma & Louise (1991), Melhor É Impossível (1997), O Rei Leão (1994), A Barreira Invisível (1998), Hannibal (2001), O Código Da Vinci (2006), O Cavaleiro das Trevas (2008), Frost/Nixon (2008), 12 Anos Escravo (2013), Interstellar (2014), as sagas Piratas das Caraíbas, O Panda do Kung-Fu e Madagáscar, ou, mais recentemente, Dunkirk e Blade Runner 2049. A lista poderia continuar, porque são mais de 150 os títulos que a compõem, numa oscilação segura entre a grande produção e o cinema mais autoral - muitas vezes, com ambas as coisas conciliadas..Um alemão com pouca disciplina.Nascido em Frankfurt, em 1957, aquele que é hoje um dos mais respeitados compositores de Hollywood - o número 2, a seguir a John Williams - não teve uma iniciação na música propriamente auspiciosa. Sem televisão em casa, mas com um piano, começou cedo a fazer barulho com as teclas, o que na ideia da mãe sugeria a necessidade de alguma disciplina. Quase de forma inevitável, a figura do professor de piano surgiria assim envolto do cinzentismo educativo, reduzindo tudo a exercícios de imitação dos clássicos e fazendo desabar quaisquer ilusões de Zimmer acerca do assunto: não haveria quem lhe pudesse ajudar a passar para os dedos o que lhe ia na cabeça. Ele não queria ficar refém dos modelos estabelecidos e, a juntar a isso, tinha um particular desdém pela autoridade....Aprendeu então praticamente sozinho, sem guias, o que lhe interessava desenvolver das suas capacidades, aperfeiçoando o espírito inventivo que herdara do pai. Quando este morreu, tinha ele 6 anos, agarrou-se à música como uma forma de refúgio e de catarse. E essa memória pesada da infância teve reflexo na única banda sonora que até hoje lhe valeu a estatueta dourada da Academia: O Rei Leão. Pois perante a história da morte de Mufasa, o pai de Simba, quis escrever um verdadeiro requiem para este soberano felino..Sempre em fuga dos meios formalizados de ensino (foi expulso de várias escolas na Alemanha), aos 14 anos Zimmer mudou-se para Inglaterra. Tinha conseguido juntar uns trocos para comprar um sintetizador e começou aí a dar azo à imaginação, com a ajuda do aparelho. Introduziu-se na cena musical londrina, como programador de espetáculos com sintetizadores, chegou a ser teclista dos The Buggles (lembra-se do tema Video Killed the Radio Star?), e se em meados de 1980 já dava os primeiros passos nas composições para cinema, em 1988 deu mesmo o golpe de asa colaborando com o realizador Barry Levinson no filme Encontro de Irmãos (no original, Rain Man), protagonizado por Dustin Hoffman e Tom Cruise. Seria a sua porta de entrada para Hollywood, com a primeira de quase uma dezena de nomeações para os Óscares. Não perdeu tempo a mudar-se para Los Angeles, onde estavam as oportunidades que o fizeram chegar onde chegou..Em entrevistas, confessa que quando venceu o Óscar pela banda sonora original de O Rei Leão (que se tornou a mais bem-sucedida na história da Walt Disney Records, com 12 milhões de cópias vendidas em todo o mundo), sentiu uma espécie de bifurcação no caminho da sua carreira. Podia ter-se encostado ao sucesso e limitar-se a fazer mais do mesmo, mas decidiu por aquilo que lhe corre nas veias: o desejo de experimentalismo. Veja-se, a título de exemplo, a manipulação que fez ao tema Non, Je Ne Regrette Rien, de Edith Piaf, em Inception (2010), de Christopher Nolan - dos realizadores com quem mais colabora -, ou o "massacre" a que submeteu um piano partido para obter as notas desafinadas que, em Sherlock Holmes (2009), combinam com os movimentos desengonçados do detetive de Robert Downey Jr., sob o efeito do álcool. Para Zimmer, o essencial é brincar com as fórmulas e quebrar o lado snob da música..Minimalismo e grande produção.De entre os filmes que marcam o percurso do músico alemão, A Barreira Invisível (The Thin Red Line), de Terrence Malick, figura como uma das suas obras prediletas; um magnífico drama de guerra revestido, a espaços, pelo tema Journey to the Line, que, inclusivamente, foi tocado no set de modo a inspirar o estado de alma da equipa de rodagem e dos atores - ao contrário do método comum de se "aplicar" a melodia às imagens..Também Nolan, a propósito do épico espacial Interstellar, lhe fez uma proposta desafiante: pediu que escrevesse a música antes de tomar contacto com o argumento, revelando-lhe apenas as questões mais gerais da narrativa do filme. E Zimmer, no seu estilo e talento sem cerimónias, apareceu com uma música de órgão que o realizador tomou como base - ou, como lhe chamou, "coração" - para partir pedra em conjunto. O mais impressionante é que Zimmer compôs a banda sonora para as cenas em tempo real, isto é, ao sabor das filmagens, alcançando aqui um dos seus mais apreciados trabalhos. Desses que enchem o ouvido partindo de muito pouco, com repetições subtis e nuances em escadinha sonora. A tal magia dos sintetizadores. Não será por acaso que Nolan define Hans Zimmer como "um compositor minimalista com um sentido de produção maximalista". A prova está nesta e em várias outras bandas sonoras..A força do espetáculo The World of Hans Zimmer - A Symphonic Celebration parte também desse minimalismo que cresce e enche a sala, num alinhamento que respeita a imensa diversidade do repertório do compositor. Cabem nas escolhas o filme de guerra (Pearl Harbor), o de super-heróis (O Cavaleiro das Trevas), a ação (Missão Impossível), a ficção científica (Inception), os dramas biográfico desportivo (Rush - Duelo de Rivais) e da Roma Antiga (Gladiador), o thriller (O Código Da Vinci, Hannibal), a aventura (Rei Artur, Piratas das Caraíbas), e a animação (Spirit, Madagáscar, O Panda do Kung Fu, O Rei Leão). Ser a rock star dos compositores de Hollywood é isto.