Nesta segunda-feira comemoram-se os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e em novembro assinalaram-se os 40 anos da adesão de Portugal à Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Qual é a importância destas datas? Estes 70 e estes 40 anos, além de datas redondas, são um momento muito oportuno e muito importante para fazermos memória e para tornarmos presente o que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos e aquilo que são os valores que estão lá transcritos e muito bem transcritos. É um documento final de uma herança histórica que já vem de há muitos anos, desde a Bill of Rights [carta de direitos aprovada pelo Parlamento inglês em 1689], desde a Revolução Francesa, e podemos andar ainda mais para trás na história e veremos estes valores plasmados já na filosofia clássica..Nos anos recentes estamos a assistir à ascensão líderes autoritários - aquela figura característica do homem forte que nos vem salvar a todos. Portanto, hoje mais do que nunca é importante que as pessoas celebrem os direitos humanos que já vivemos e que se recordem de todos aqueles direitos que ainda não podemos comemorar. Em Portugal, podemos falar de refugiados, de pobreza, de discriminação racial, de discriminação de género. Também a nível político, os extremos parecem estar a ganhar força - tanto a extrema-esquerda como a extrema-direita. É preciso que as pessoas saibam que uma sociedade inclusiva, onde todos temos espaço e o direito de viver sem qualquer tipo de discriminação, está a ser posta em causa com a demonização de certo tipo de pessoas..Quem são essas pessoas? Os grupos vulneráveis de um modo geral. A nível mundial temos visto várias crises: a realidade da guerra da Síria, a do Iraque, a do Afeganistão. As pessoas têm de fugir para sobreviver. E depois essas pessoas são acolhidas muito mal, são demonizadas por alguns líderes políticos e são tratadas como se fossem menos humanas do que todas as outras. Este é um discurso muito parecido com aquele que levou à tragédia da segunda Guerra Mundial..Estão criadas as condições para uma terceira guerra mundial? Não sei se nos mesmos moldes da segunda ou da primeira, mas se olharmos para guerra da Síria ou para o conflito no Médio Oriente, as vítimas causadas são em números já quase parecidos. Como é que se mede uma tragédia? E a guerra também vai acontecendo de outras maneiras. Há uma guerra comercial. Há vítimas desta economia, que mata e que precisa de construir pobres para ver alguns ricos. Há pessoas que trabalham uma vida inteira, a tempo inteiro, e não conseguem uma casa a que possam chamar sua; não conseguem alimentar os filhos e educá-los em pé de igualdade com todos os outros. E depois há mesmo as situações de guerra formal e bélica que obrigam as pessoas a fugir para terem sobrevivência imediata. A questão dos rohingya, em Myanmar, por exemplo, que vivem num estado de apartheid e que por serem rohingyas e muçulmanos são discriminados em relação às outras pessoas. É preciso apelar ao discernimento das pessoas, para que se mantenham informadas e não cedam ao populismo fácil do discurso do ódio para descarregar as suas frustrações noutras pessoas que não têm culpa. Porque se há culpados e responsáveis, não são as pessoas que estão a trabalhar e as que estão a fugir pela vida..O discurso do ódio: onde circula e como evitá-lo.Em Portugal há discurso do ódio? Sim. O discurso do ódio vê-se muito nas novas tecnologias e nas novas formas de comunicação. Nas redes sociais há muitas pessoas que têm um discurso de ódio latente, também porque estão escondidas atrás de um computador - no anonimato é fácil insultar os outros. Mas é um fenómeno que não é sistemático ou sistémico, está ainda latente. Por outro lado, a comunicação social está a atravessar uma crise por causa da necessidade de criarem clickbait para gerarem leitores. Os órgãos de comunicação estão sequestrados por uma obrigação financeira e isso põe em causa, muitas vezes, a correção e a forma como se fazem as notícias. Isso incita também a alguns comentários de ódio..Como é que isto se muda? É muito difícil. É muito difícil no mundo inteiro, mas para economias periféricas, como Portugal, ainda é um problema mais grave, porque a nossa economia gera pouca riqueza e não consegue alimentar órgãos de comunicação social independentes. Depois também há uma questão de cultura da independência, que é preciso não ofender e não sabotar..Acha que o Estado deve intervir para ajudar a comunicação social, como o nosso presidente da República equacionava há dias? Eu tenho opinião pessoal sobre isso, claro, mas enquanto diretor da Amnistia não devo dizê-la. O que posso dizer é que cabe ao Estado promover o respeito pela liberdade de expressão e implementá-la em toda a sua plenitude. A liberdade de expressão tem regras, não é dizer-se o que se quer. Insultar uma pessoa não é liberdade de expressão, é má educação, é destrutivo. Antigamente, havia muito a publicidade institucional, que era uma forma bastante significativa de financiamento dos órgãos de comunicação social nacionais e locais. Agora, vivemos numa economia de mercado e os órgãos de comunicação também ainda estão a tentar encontrar esta questão das leituras, dos soundbites e dos clickbaits. Creio que em primeiro lugar temos de trabalhar na educação das pessoas desde a escola. Eu fui professor da área de integração dos cursos profissionais durante muitos anos e um dos trabalhos de casa que eu dava frequentemente [aos alunos] era lerem o jornal do dia para cultivarem esta necessidade de se informarem sem ser a passar o dedo pelas redes sociais e em sites de notícias falsas, que é um termo que também me faz confusão..Porquê? Porque se é falsa não é notícia. É uma mentira. E o que nós precisamos é de pessoas atentas que saibam separar aquilo que é notícia daquilo que é mentira, que saibam separar o trigo do joio. Creio que uma das coisas a fazer para salvar a imprensa é criar bons leitores, pessoas instruídas e educadas com espírito crítico..Educar para respeitar os direitos humanos.Na escola há educação para os direitos humanos? Os portugueses conhecem os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos? Estou convencido de que os portugueses não saberão a Declaração Universal de cor, mas isso também não é importante. Se souberem os princípios, o espírito que ela contém, se souberem onde é que a podem consultar, já é bom. A questão dos direitos humanos na escola não está na sua plenitude. No entanto, os direitos vão entrando nos currículos, muitas vezes quase por obrigação, com xis horas mínimas por ano, ou então espalhados por algumas disciplinas que também não são obrigatórias. Era necessário trabalhar os direitos humanos de forma transversal a todas as disciplinas. Porque não uma disciplina de direitos humanos? Se começássemos hoje ou no próximo ano letivo a implementar algumas ideias, daqui a dez anos isso já se refletiria na sociedade, e dez anos não é assim tanto tempo para uma civilização..Casas sem condições, discriminação e violência policial em Portugal.E quais são os direitos mais violados em Portugal? Em Portugal, há muita discriminação. Há muitos problemas económicos e sociais. O governo fez um levantamento neste ano e temos cerca de 26 mil famílias sem uma casa condigna. É preciso resolver este problema no imediato e é preciso também trabalhar a montante, ou seja, perceber porque é que temos em Portugal 26 mil famílias sem uma casa condigna e porque é que temos sem-abrigo. O combate à pobreza tem sido um tema um pouco tabu para os governos sucessivos. [Os mais pobres] são pessoas que não têm voz e é preciso investir nisso para que não tenhamos classe baixa em Portugal e para que a classe média seja a base da sociedade..Estamos a caminhar no sentido de erradicar estas quase 26 mil situações de carência habitacional indicadas pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana quando o Orçamento do Estado de 2019 previsto para a habitação é de 0,23%? Um Orçamento do Estado é sempre uma opção política. Não me chocaria que não houvesse orçamento diretamente para a habitação, se houvesse orçamento para outras coisas que pudessem possibilitar às pessoas que estão nestas situações sair delas. O apelo que faço é que os governos priorizem aquilo que são os direitos humanos nos seus orçamentos anuais e nos seus programas de governos. E isto é para todos os partidos, porque eu acredito que em todos os partidos e em todas as ideologias os direitos cabem na sua plenitude. Claro que nos extremos é difícil, mas num campo de moderação os direitos humanos cabem à esquerda e à direita..Além da habitação, que outras áreas são críticas em Portugal? A discriminação racial. Há em Portugal problemas de racismo quer por ineficácia legislativa, quer por ineficácia administrativa. E há ainda a multidiscriminação, ou seja, quando uma pessoa é discriminada por mais do que uma razão, por exemplo, por ser de origem africana, por ser pobre, por viver num meio isolado e não ter meios para ir à escola. E há também ainda a questão da violência policial. Temos de ser muito honestos e dizê-lo sempre: ser polícia em Portugal é também uma profissão de risco, os agentes têm de ser respeitados. Mas num corpo policial de mais de 20 mil pessoas é normal que haja gente que se infiltre com más intenções e depois faça valer a sua ideologia discriminatória nos serviços do Estado. O que há a fazer é dar mais e melhor formação para que essas pessoas que discriminam não consigam chegar a ser agentes de autoridade e assim que haja algum episódio menos correto têm de sair. E neste ano vivemos alguns momentos de tensão por causa disso..Está a pensar em algum em concreto? Está agora em julgamento o incidente da Cova da Moura. Não faço comentários enquanto a justiça estiver a fazer o seu caminho, mas a minha esperança é que se faça justiça seja para um lado ou para o outro e que não se manche o bom nome das pessoas, tanto das vítimas como dos suspeitos (a não ser que sejam considerados culpados). Há outros episódios. Tivemos agora há pouco tempo aquele episódio dos suspeitos que fugiram do tribunal e que depois foram apanhados e fotografados pela polícia, que meteu as fotos a circular na internet. Neste caso nem era discriminação racial mas era humilhação de suspeitos e a humilhação não traz justiça. Depois também há ainda questão dos refugiados. Não sendo muitos aqueles que vieram para Portugal, não os soubemos acolher. Faltaram aqui muitas formas de os integrar, de os deixar participar na sociedade, de os deixar trazer a riqueza da sua sabedoria, da sua cultura, do seu trabalho. As burocracias são tão grandes que é difícil para eles integrarem-se e contribuírem. Do mesmo modo, há refugiados que até querem vir para Portugal, mas as dificuldades burocráticas são tão grandes que muitos não chegam a vir para cá. E nós que somos um país de emigrantes... esperava-se melhor. O nosso governo tem declarado disponibilidade em receber refugiados, o problema é que as coisas depois não acontecem e as boas intenções não chegam..A legislação portuguesa é adequada e eficaz para resolver os problemas de discriminação que enumerou? A nossa legislação em algumas matérias de direitos humanos é uma das mais avançadas do mundo. Por exemplo, em relação a direitos das pessoas LGBTI, em relação a direitos das mulheres e também dos homens no que diz respeito à violência doméstica - digo as mulheres em primeiro porque são elas estatisticamente o maior número de vítimas de violência doméstica. No entanto, a noção de violência, por exemplo, não está bem explícita na legislação. Mas a secretária de Estado Rosa Monteiro já disse que essa lei tem de se alterar. Nesse caso, a legislação é ineficaz porque houve um juiz que desdramatizou uma violação que aconteceu a uma rapariga inconsciente; o mesmo tribunal da relação do Porto desdramatizou também um caso de violência doméstica. Portanto, é preciso que a legislação seja boa para que os juízes possam administrar bem a justiça..Discriminação de género.O que é que essa lei em particular deveria dizer que não diz? Um sim é um sim, um não é um não. Tem de ser claro que se uma pessoa não dá consentimento é porque é não. Sim, só declarado. É chocante que uma mulher inconsciente possa ser violada, que isso não esteja na Constituição e possa dar azo a interpretações dúbias..Como é que olha para o estudo da Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais que indica que uma em cada 20 mulheres com mais de 15 anos, na União Europeia, já foi violada? São dados alarmantes. Não será estranho, para nenhuma mulher que nos leia, o medo de andar na rua à noite ou pedir a alguém que a acompanhe ao metro ou ir com a chave no meio dos dedos para reagir a alguma potência ofensa. A questão da segurança, do respeito pelas pessoas tem de ser assegurado, mas claro que isso não se legisla, trabalha-se muito pela educação. Neste ano já ultrapassámos o número de vítimas de violência doméstica do ano passado, e o ano ainda não acabou. No ano passado foram 24. E cada pessoa tem de pensar na sua esposa, nas suas filhas, nas suas irmãs, e perceber que são elas que estão em causa..Neste ano, a já habitual Maratona de Cartas tem uma característica muito particular: as cinco petições são todas sobre casos de mulheres. Foi de propósito. É a Marielle Franco, do Brasil, a Vitalina Koval, da Ucrânia, a Nonhle Mbutuma, da África do Sul, a Geraldine Chacón, da Venezuela, e a Atena Daemi, do Irão. São mesmo só mulheres, porque este ano foi um ano de muito ativismo para as mulheres. Não vem de agora, já vimos, por exemplo, depois da eleição de Trump, que foi um político que durante a campanha revelou um desrespeito total pelas pessoas e pelas mulheres em particular.Vemos também que em termos económicos e culturais as mulheres reinvestem os seus rendimentos em percentagem enorme na família. Quando uma mulher tem sucesso a sua família tem sucesso. Estas mulheres que nós escolhemos trabalhavam em defesa da sua comunidade. Eu disse trabalhavam porque a Marielle foi assassinada e a petição dela é para pedir justiça. Os outros casos são mulheres que estão em risco por causa do trabalho que fazem na defesa da sua comunidade e é a elas que queremos dar visibilidade para que sejam cuidadas e para que as suas histórias sejam respeitadas. Isto não é uma questão de guerra de géneros, é uma questão de igualdade. E a mulher tem sido muito atacada na sua dignidade e nos seus direitos humanos. Não gosto de lhes chamar um grupo vulnerável mas há situações em que são prejudicadas..Dar a cara pelos direitos humanos.Pedro, está à frente da Amnistia Internacional em Portugal desde 2016. Quais são os maiores desafios de dar a cara por esta organização? Vivemos tempos de muito confronto, em que os direitos humanos estão muito comprometidos, e dar a cara pelos direitos humanos não é fácil. Há países onde é mais difícil, tenho colegas meus no mesmo cargo mas em países diferentes que foram presos. É o caso da Idil Eser, na Turquia. Os desafios são os de qualquer organização de direitos humanos: nós somos muitas pessoas com opiniões e sensibilidades diferentes. Não é uma tarefa fácil, mas é importantíssimo que nos foquemos na violação dos direitos humanos e que intervenhamos de três maneiras: fazendo investigação séria, credível, para que possamos denunciar ao mundo os abusos de direitos humanos. A segunda forma é com campanhas, com pressão e ativismo públicos. E o terceiro aspeto é a advocacia política junto dos decisores e dos abusadores de direitos humanos que estejam a acontecer. O mais mágico na Amnistia é que nós valemos por sermos muitas pessoas. Quando vou a uma embaixada reunir-me com um embaixador para transmitir uma mensagem, não é uma mensagem minha, é uma mensagem de todas as pessoas que assinaram aquela petição em particular. Ser um mensageiro destes milhões de pessoas é um privilégio gigante..Foi isso que o fez aceitar o cargo? Sim. O sentido de missão, de dever. Com a minha humildade e com a minha incapacidade poder ser uma peça que contribui para que a mudança aconteça. Trabalhar na Amnistia é um desafio de todos os dias, sem descanso, e o mundo não nos tem dado descanso..Já antes tinha trabalhado com organizações não governamentais na área dos direitos humanos. Sim, já trabalhei como voluntário numa ONGD [organização não governamental para o desenvolvimento] com sede em Aveiro, onde tínhamos projetos de educação, de saúde, principalmente nos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] e no Brasil. Comecei aí como voluntário, depois fui professor, fui diretor adjunto de uma IPSS ligada à Universidade e à Diocese de Aveiro, portanto, já andava por aí. Agora tenho o privilégio de estar a trabalhar nisto a tempo inteiro graças aos sócios da Amnistia, que são os meus patrões..Na Amnistia, como é que vão comemorar os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos? Preparámos o fórum da coragem, que é um evento de três dias - de 7 a 9 de dezembro. O dia 7 foi dedicado aos refugiados. No dia 8 tivemos a assembleia geral da Amnistia. E no dia 9 tivemos a Idil Eser a contar como é que foi a sua experiência na Amnistia da Turquia e a Vitalina Koval, que está na Maratona de Cartas, entre outras pessoas que vieram falar sobre abusos de direitos humanos. Vamos ainda dedicar tempo à nossa campanha Brave, que apela à coragem. Vamos pedir às pessoas que se juntem a nós e façam uma escolha: viver com medo ou viver com coragem. Viver com medo é viver no ódio, ficar à defesa e demonizar os outros. Viver com coragem é construir pontes e é defender os direitos humanos. Vamos celebrar os 70 anos com fome de coragem.