Já existe alguma ideia de o impacto de Portugal ter sido o país convidado pela Hannover Messe do ano passado ou ainda é muito cedo para quantificações? É muito difícil quantificar neste momento, embora seja possível avançar com dados que são conhecidos. A nossa presença em Hannover contou com 109 empresas na representação oficial. Houve mais algumas que participaram por conta própria. Foi um esforço mobilizado pelo AICEP, com um grande apoio da Câmara de Comércio Luso-Alemã, e o apoio também da COTEC. Isto traduziu-se, nas contas do AICEP, em cerca de 3500 contactos entre empresas durante os cinco dias da feira. Esta é a questão numérica, a questão quantitativa. Estamos também a trabalhar na preparação da nossa presença na feira deste ano de 2023, em que vamos manter a imagem no mote "Portugal makes sense". Claro que a uma escala mais pequena, mas pretendemos dar continuidade a esse esforço. Onde se nota um impacto da feira, para já, é na curiosidade, no interesse despertado, sobretudo aos alemães, sobre aquilo que Portugal faz. Até aqui a nossa presença em Hannover tinha sido essencialmente centrada em indústrias tradicionais importantíssimas, como a metalomecânica. Em 2022 tivemos mais tempo para preparar a feira e resolvemos mostrar outras áreas. Fomos para as energias renováveis, fomos para a digitalização, para o know-how em tecnologia de ponta em outras áreas, e isso cativou a Alemanha empresarial e cativou a Alemanha política. E é por isso que tenho dito que é em larga medida com base no legado de Hannover que se vai estruturar o futuro da relação luso-alemã. É por aí que vamos reforçar a posição das energias renováveis, reforçar a concretização da digitalização, reforçar a cooperação na área das terras raras, reforçar as investigações tecnológicas de topo..Os números que foram divulgados sobre o crescimento das nossas exportações para a Alemanha foram 96% de aumento e também 200% de aumento do investimento alemão em Portugal. Penso que é sobretudo nas áreas ligadas à indústria automóvel, mas está a dizer-me que há outras áreas que, tanto as nossas exportações, como o investimento alemão começam a abarcar? Sim. Temos de ter presente o seguinte: neste momento, a nossa relação económica global com a Alemanha já se encontra num nível superior ao do melhor ano pré-pandémico. Portanto, 2022 será melhor do que 2019. Estamos a trabalhar com dados de janeiro a outubro, mas essa dinâmica já nos permite ver onde nos situamos. A primeira conclusão a esse respeito é talvez a mais importante. Em termos de bens e serviços temos uma taxa de cobertura das importações pelas exportações de 96%. O que é absolutamente notável se tivermos em conta a diferença de dimensão entre os dois países. Segundo ponto: claro que este equilíbrio desta relação assenta, na sua essência, nas exportações de bens, mas é obviamente compensado pelas exportações de serviços, onde o turismo tem uma componente determinante. Temos um superavit na categoria dos serviços de 380 e tal por cento. E sim as exportações diversificam-se e, sim, o investimento alemão intensifica-se. E intensifica-se, temos de o reconhecer, primeiro por uma razão estratégica e conjuntural ao mesmo tempo. Várias empresas alemãs acharam que as suas cadeias de produção tinham uma extensão demasiado complexa para serem geridas numa situação como aquela em que nos encontramos, ainda com reflexos pós-pandémicos, ainda numa conjuntura de retração e de instabilidade e, portanto, há um fator de nearshoring e de reorganização que faz com que muitas empresas queiram vir para Portugal, em vez de quererem ir para outros lados. Mas há também a convicção de que em Portugal se encontram situações e condições ótimas ou ideais para que se instalem no nosso país coisas que até agora não estavam no universo da indústria alemã. O investimento alemão em Portugal é histórico - estamos a falar da Bosch, da Continental, da Volkswagen, da Siemens -, mas agora passámos aos centros de investigação de algumas dessas empresas. A que se somaram a BMW, a Mercedes, e outras, que vêm mais do mercado das PME alemãs (o conceito alemão de média empresa é bastante diferente do português, mais amplo). Mas estamos a falar de uma corrente contínua de notícias de anúncios de investimento alemão em áreas de investigação, em áreas digitais, em áreas de serviços digitais, em áreas de investigação na mobilidade, e isto significa que há um interesse pelo conhecimento técnico português. Todas estas empresas estão a contratar engenheiros em Portugal e estão a instalar-se um pouco por todo o país. Depois, o terceiro veio, que são aquilo a que se chama os nómadas digitais, jovens normalmente extremamente talentosos que trabalham com startups em áreas inovadoras. Portugal tem o chamariz da Web Summit e a Alemanha mordeu o isco da Web Summit porque lhe dá uma secção específica com ligação à Alemanha. A Alemanha esteve representada nesta Web Summit a nível governamental e obviamente que um país com aquelas características não podia deixar passar ao lado a possibilidade de entrar mais nesse mundo..Esse cenário otimista não é afetado pelo impacto que a guerra na Ucrânia está a ter na Alemanha? Sei que o crescimento previsto para 2023 é de apenas 0,6%. A recessão chegou a ser falada, mas em princípio não vai acontecer. O dinamismo da economia alemã está garantido apesar da guerra? Não descreveria tanto a minha visão como otimista. Estou a analisar os números tal como eles saem e a realidade tal como a vejo. Sim, a Alemanha enfrenta desafios muito grandes, e já antes da pandemia tinha chegado a um ponto de crescimento menos robusto do que noutros anos. É verdade que é um país de contas certas, e que, mantendo o controlo das suas questões orçamentais, encontrou formas de ultrapassar a crise pandémica e agora de acelerar a transição energética, de cobrir em larga parte os custos, para os consumidores, da inflação e ainda reforçar os meios que garantem a sua presença no mundo como ator internacional de relevo, com destaque para as Forças Armadas..Com este impacto da guerra na Ucrânia e o fim do gás natural russo, os alemães conseguiram transformar aquilo que era uma ameaça numa oportunidade? Conseguiram largamente, com muito trabalho, com visão, conseguiram acelerar a transição energética. No fundo, a transição climática traduz-se, em larguíssima medida, na transição energética. A melhor forma de combater as alterações ambientais é mudar os nossos hábitos de consumo, começando pela energia. A Rússia invadiu a Ucrânia, e a Alemanha, tal como o resto da Europa e boa parte do mundo, teve de agir. A primeira e mais impactante consequência foi a de a Alemanha desligar-se dos combustíveis fósseis vindos da Rússia. Um esforço extraordinário que requereu equilíbrios e compromissos políticos difíceis de atingir, porque as plataformas e ideologias dos partidos envolvidos eram distintas, e das indústrias também. Mas, neste momento, a Alemanha deixou de comprar gás natural à Rússia e tem as suas reservas nesta fase do inverno à volta dos 90%. E já conseguiu pôr em funcionamento um terminal de gás natural liquefeito. O que queria dizer, recuando ao princípio, é que a perspetiva da Alemanha não crescer muito, mas de evitar uma contração da economia em 2023, é real. Os dados mais recentes, também quanto ao peso e progressão da inflação, são de alguma forma encorajadores. Quando muito, a situação em que a Alemanha se encontra pode limitar o crescimento das relações com Portugal, mas não diminuirá a dimensão das relações com Portugal. O ritmo de crescimento é o que está em causa..Falou desses compromissos políticos na Alemanha, no âmbito da chamada coligação-semáforo que junta sociais-democratas, Verdes e Liberais. É uma coligação, apesar de tudo, de continuidade em relação à anterior, da chanceler Merkel com o SPD, nas grandes linhas da economia? Na relação com Portugal , esta diferença de governo não se sente? No que diz respeito à relação de governo para governo, trabalhámos muito com a Alemanha, mesmo durante a pandemia, por estarmos no trio de presidências do Conselho da União Europeia. Isso passou-se com o governo de Angela Merkel, que tinha como vice-chanceler Olaf Scholz, que trouxe com ele boa parte da sua equipa para este governo. Por aí, há uma consonância de visões, há uma agenda muito reformista do lado alemão, que joga quase como a uma só voz, como disse a ministra Annalena Baerbock aqui em Lisboa esta semana, com aquilo que foram as prioridades da nossa própria presidência europeia, no que concerne à transição ecológica, à transição digital e ao reforço da força da Europa no mundo. Há um elemento crucial de continuidade política que é o facto de o vice-chanceler ter passado a chanceler. Depois, Verdes e Liberais são partidos profundamente europeístas, querem trabalhar com a Europa e querem intensificar o ritmo da intervenção europeia. Esta coligação-semáforo tem no acordo de coligação uma profissão de fé no federalismo europeu que a anterior não tinha. Este reforço da integração europeia é algo que, como sabe, é pacífico em Portugal, nos seus traços gerais. Há uma evolução evidente no que diz respeito ao papel da Alemanha no mundo, provocada pela invasão da Ucrânia e pelas suas consequências. A Alemanha sentiu que era chamada a assumir mais responsabilidade e a dedicar mais da sua força e das suas capacidades a assumir um papel mais preponderante..Está a falar muito do orçamento militar? Sim, nomeadamente a questão do reforço do orçamento militar, que é a parte mais visível das grandes mudanças anunciadas pelo chanceler Scholz..Que estranhamente, digo eu, não teve nenhuma reação negativa por parte dos parceiros europeus. Não houve o fantasma do regresso do militarismo alemão. Não. Creio até que as dúvidas sobre essa recuperação do Bundeswehr, do Exército alemão, essa recuperação de um papel de liderança alemã no mundo, provocou mais problemas na psique coletiva alemã do que no resto da Europa. Na realidade, todos esperávamos que a Alemanha assumisse mais responsabilidades e se devotasse mais a esta parte da sua atuação. Não se esqueça de um dado muito importante: este regresso da Alemanha em força a estas áreas dá-se pouco tempo depois do Brexit. A Europa ficou amputada de um parceiro muito importante, que continua a ser parceiro europeu e na NATO, mas que deixou de estar na União Europeia. Este novo movimento, esta nova orientação da Política Externa e de segurança alemã, vem reforçar seguramente as capacidades europeias. Portanto, há uma evolução na continuidade com elementos novos, que são aqueles que resultam da agenda reformista do Partido Social-Democrata alemão, da agenda reformista dos Verdes - estamos a falar da área dos costumes, da área social, de um aumento do salário mínimo, do mote do respeito pela pessoa -, e estamos a falar de um Partido Liberal que é muito inteligente nos seus movimentos. E que, sem cortar amarras com a direita mais tradicional, pediu - lá está, o Ministério das Finanças, à cabeça - para garantir que a ortodoxia financeira da Alemanha e o respeito pelos travões constitucionais seriam respeitados. É um governo de evolução; evolução acelerada pela força das circunstâncias, mas é um governo sólido e que tem o apoio esmagador no Bundestag, na opinião pública também, mesmo que a CDU tenha crescido durante este tempo na oposição. É um governo de discussão interna, prática que faz parte da tradição alemã, é um governo novo, no sentido de não ter precedentes - o primeiro com três partidos -, mas há uma cultura de consenso, de compromisso e de respeito da política alemã que faz inveja a muitos países europeus..Falou do compromisso europeu da Alemanha, nomeadamente dos três partidos da coligação governamental. A ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, falou em Lisboa no Seminário Diplomático sobre o fim da unanimidade para decisões em termos de Política Externa. Geralmente, os pequenos países da União Europeia têm muitas dúvidas sobre esse passo. Aí pode ser uma zona de discordância da Alemanha com Portugal? Olhando para o conjunto da nossa relação nas diversas áreas e para estes pontos de entendimento que temos sobre cooperação futura em matéria de energias renováveis, já com empresas portuguesas também a trabalhar na Alemanha, seria quase impossível que não houvesse áreas concretas em que não vemos a realidade da mesma maneira, em que temos opiniões diferentes. São zonas muito bem delimitadas e temos canais abertos e francos para irmos falando, tal como aconteceu agora com a ministra, e esse tema foi bastante discutido entre nós e aqui na parte pública do debate. A Alemanha sente muito o espartilho que considera ser a necessidade da unanimidade em determinadas partes, uma delas, é a Política Externa. E tem um argumento interessante: se discutimos questões energéticas ou ambientais a nível interno por maioria qualificada, como é que, ao transpor essas políticas, para a área internacional precisamos de unanimidade? É um ponto válido. Portugal, com outros parceiros da União Europeia, tem uma posição mais prudente, diria, em relação à extensão da votação por maioria qualificada para áreas como a Política Externa..Mas esta divergência neste ponto não põe em causa aquilo que a ministra disse sobre a amizade entre os dois países e de a Europa falar a uma só voz? Não, não põe em causa a amizade..E a própria presença da ministra neste Seminário Diplomático também tem um significado político importante. Certamente. Ela não teria vindo a Portugal se nos considerasse desinteressantes. Aliás, consideram-nos muito interessantes e há um respeito muito grande pelo que Portugal fez na última década por esta estratégia. E, sobretudo, há na Alemanha um respeito e interesse por tudo o que Portugal tem para oferecer como parceiro político e económico. Haver uma diferença de opinião a este respeito entre Berlim e Lisboa não é, seguramente, mais grave do que as muitas diferenças de opinião que há entre Berlim e Paris..E aquela ideia das reuniões luso-alemãs de análise sobre a política para a América-Latina, África e China? Isso também é a Alemanha a dar importância acrescida a Portugal e ao nosso know-how? Seguramente, seguramente. A Alemanha tem zonas tradicionais de influência, a Europa central, Ásia central, uma forte presença no Médio Oriente, uma presença económica muito forte na América Latina em vários pontos que quer agora reforçar. A Alemanha está entusiasmada com a nova presidência brasileira e aquilo que pode significar em várias áreas, incluindo até para a conclusão desejada do acordo UE-Mercosul. Mas a Alemanha sabe que temos um passado histórico e uma diplomacia universalista que se traduz em presenças regulares no Conselho de Segurança, que se traduz na eleição do secretário-geral das Nações Unidas e na sua reeleição, e sabe que temos um conhecimento muito especial da América Latina, de África e também da relação com a China. E até com a Índia..Em relação à China é onde julgo mais curiosa a parceria luso-alemã. Porque Scholz até fez uma visita agora à China onde disse claramente que a Alemanha não pode prescindir da China e, no entanto, conta com Portugal como parceiro nessa relação. Seguramente. A Alemanha está num duplo processo, está a preparar uma estratégia nacional de segurança e está a preparar uma estratégia nacional para a China. A Alemanha não se quer separar da China, mas reconhece aquele país nos mesmos termos em que nós o reconhecemos e em que a Europa e a NATO reconhecem a China. Portanto, é obviamente sinal de interesse e de diferenciação de Portugal no mapa das relações externas da Alemanha que tenha sido acordado dar mais continuidade, dar mais regularidade a estes contactos políticos e diplomáticos que temos mantido ao longo do tempo, com ênfase nas questões de segurança, da América Latina e de África, com desafios muito diferentes em várias regiões. E a Alemanha sabe que temos a sensibilidade para encontrar essas nuances e especificidades regionais e sub-regionais em África. E também quanto à China. Qualquer país que tenha interesse real na China, conhece a história da nossa transição de Macau e o impacto histórico na China que nos diferencia dos outros..Foi chefe de gabinete do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho na altura da crise do Euro e da intervenção da Troika e em que havia aquela perceção de que a Alemanha estava contra Portugal ou que era muito exigente em relação ao esforço orçamental de Portugal e Grécia. Não ficou nenhum resquício desse tipo de desconfiança? A Alemanha olhou sempre, durante essa época, para Portugal como um caso singular..Diferente da Grécia? Seguramente. E as situações eram materialmente diferentes. A Alemanha olha para Portugal com um respeito extraordinário pela forma como cumpriu o programa de assistência financeira, pela saída limpa do programa, e pela senda de recuperação e consolidação das finanças públicas até ao ano de 2020. Cheguei à Alemanha como embaixador em fevereiro de 2020 e a pergunta que me faziam, em distintos ministérios e em contactos com parlamentares, era: "Vocês conseguiram um superavit orçamental depois de tudo isto?" É algo extraordinário para os alemães. Na Alemanha há confiança em Portugal, há um acompanhamento muito chegado da realidade financeira portuguesa - não podiam deixar de o fazer -, mas há uma grande confiança e respeito na seriedade com que estes sucessivos governos portugueses se têm dedicado a esta matéria. Há também, e isso é verdade, alguns segmentos de opinião e alguns segmentos dentro de partidos, sobretudo do lado do SPD e dos Verdes, que reconhecem que o receituário à época, estamos a falar de 2011, era insuficiente para a situação que se vivia em toda a Europa, para a ausência de mecanismos europeus que, entretanto, foram criados e, portanto, são esses setores que dizem que, se calhar, se isto tiver de ser feito outra vez, talvez a dosagem pudesse ter sido mais ligeira. Mas isto não corresponde a um arrependimento coletivo, corresponde ao reconhecimento de certos setores da sociedade alemã de que aquilo por que passámos foi fortemente duro..leonidio.ferreira@dn.pt