De guarda-chuva na mão, um homem caminha por uma rua noturna depois de dispensar o táxi que o esperava à porta. Chove a potes e ele segue descontraído, sem se importar com a roupa encharcada, cantando o seu "glorious feeling" e sorrindo aos transeuntes enquanto se empoleira em postes de iluminação e começa a chapinhar as poças de água num vigoroso sapateado que vai crescendo e crescendo em vivacidade e ritmo debaixo do nariz de um polícia sisudo... A cena dispensaria apresentações. Trata-se, claro, do mais famoso momento de Serenata à Chuva, com o tema musical do título. Em menos de 5 minutos, a ilustração do que significa estar apaixonado. Ou, pelo menos, é isso que representa dentro do filme (já em Laranja Mecânica, Malcolm McDowell deu-lhe uma versão perturbante, de bengala e chapéu de coco). Para Gene Kelly, porém, que, segundo reza a lenda, interpretou toda aquela alegria desenfreada com quase 40 graus de temperatura corporal, terá sido mais a ilustração de um estado febril convertido em magia de cinema..Estreado a 27 de março de 1952, no Radio City Music Hall em Nova Iorque, Singin' in the Rain, que é hoje um clássico maior - "porventura o mais fulgurante filme da história do musical", como escreveu João Bénard da Costa -, não teve a receção digna que o seu estatuto agora sugere. Quando chegou às salas, perto da altura da Páscoa, a concorrência em cartaz estava ao rubro: O Maior Espetáculo do Mundo (que veio a vencer o Óscar de Melhor Filme), proeza circense de Cecil B. DeMille, A Rainha Africana, de John Huston, com Katharine Hepburn e Humphrey Bogart, Viva Zapata, de Elia Kazan, com Marlon Brando, O Rancho das Paixões, de Fritz Lang, com Marlene Dietrich, e até uma reestreia do clássico da Disney Branca de Neve e os Sete Anões fizeram Serenata à Chuva parecer "apenas mais um agradável musical" no panorama. A própria crítica, apesar de o ter elogiado, não foi propriamente entusiasta. Nos termos em que o pôs o corealizador Stanley Donen, "para os críticos, Um Americano em Paris era arte, e Serenata à Chuva era carne com batatas"..Eis a questão: de facto Um Americano em Paris, de Vincente Minnelli, musical do ano anterior que venceu seis estatuetas douradas, incluindo a de Melhor Filme, fez demasiada sombra a Serenata à Chuva, então apresentado como a "nova sensação" do mesmo estúdio (Metro-Goldwyn-Mayer), reciclando a estrela de An American in Paris, Gene Kelly. E como se não bastasse, em jeito de filme-lacaio, ainda serviu para capitalizar o sucesso deste último, que foi relançado em sala... À luz desta jogada típica do sistema de Hollywood, a observação de Donen é bastante compreensível. Ainda mais quando para a história dos Óscares ficam apenas duas nomeações, uma para a atriz secundária, Jean Hagen, e outra para a banda sonora de Lennie Hayton - uma memória amarga que se faz sentir, de um modo especial, no presente ano em que a cerimónia acontece exatamente no dia em que se assinala o aniversário de Singin' in the Rain, e com o musical West Side Story, de Steven Spielberg, nomeado..À boleia desta coincidência, vale a pena também lembrar que Rita Moreno, uma das estrelas do West Side Story de 1961, que regressou na versão de Spielberg, teve uma das suas primeiras aparições no grande ecrã em Singin' in the Rain: vemo-la na cómica sequência de abertura, que retrata o aparato das grandes estreias de Hollywood nos anos 1920, com uma multidão eufórica à espera para ver passar as vedetas do cinema mudo. A sua seria Zelda Zanders, inspirada em Clara Bow, a "It Girl"..Enfim, carne com batatas ou não, a verdade é que Serenata à Chuva vingou na afeição dos cinéfilos. E estamos a falar tanto de ilustres cineastas franceses - François Truffaut, Alain Resnais - como de uma das mais respeitadas críticas americanas, Pauline Kael, que em 1958, quando a MGM começou uma série de relançamentos limitados de algumas das suas "obras-primas", com Serenata à Chuva entre as primeiras, escreveu a propósito: "É provavelmente o mais delicioso de todos os musicais americanos." Estes relançamentos permitiram uma circulação regular do filme nos anos seguintes, juntamente com exibições televisivas em horário nobre, sobretudo na década de 1960, tornando-o uma obra de culto (a primeira do género musical com esse status) sujeita a reavaliação académica. Em matéria de listas, à data, é o título no topo dos 25 maiores musicais americanos de todos os tempos, do American Film Institute (AFI)..Ao rever agora Serenata à Chuva, não deixamos de nos espantar com o seu infinito gáudio e vitalidade. Coassinado por Gene Kelly e Stanley Donen, é ao primeiro que se atribui o brilhantismo e componente atlética das coreografias, mas foi sem dúvida o segundo que assegurou a elegância de tudo o que se passa no ecrã. Mestre do musical muitas vezes ofuscado pelo nome de Kelly nas suas corealizações (fizeram também Um Dia em Nova Iorque e Dançando nas Nuvens), atrás da câmara ele sabia como criar a graça, exuberância e sofisticação que marcaram este género cinematográfico nos anos 1950..Sátira colorida à Hollywood dos anos 1920, na transição do cinema mudo para o sonoro, Singin' in the Rain é uma curiosa mistura de elementos. Desde logo, à exceção de dois temas, quase todas as canções tinham sido já escritas nos twenties pelo produtor do filme, Arthur Freed, e Nacio Herb Brown, quando ambos deixaram de fazer acompanhamento ao piano de filmes mudos para, precisamente, escrever canções para a MGM - exemplo do próprio Singin"'in the Rain, que é cantado por Cliff Edwards em Revista de Hollywood (1929). Os argumentistas Adolph Green e Betty Comden pegaram então nessas pérolas esquecidas nos cofres do estúdio e conceberam uma estrutura narrativa também ela baseada em anedotas de bastidores contadas por veteranos dos estúdios que assistiram à dramática transição técnica nesse período. Qual cereja em cima do bolo, os mesmos argumentistas compraram uma casa em Hollywood a uma ex-estrela do cinema mudo que perdera a sua fortuna quando a chegada do sonoro lhe pôs fim à carreira... E assim nasceu Serenata à Chuva, o romance entre um galã do mudo, Don Lockwood (Gene Kelly), e uma corista aspirante a atriz, Kathy Selden (Debbie Reynolds), que em segredo, na produção de um musical, se tornará a voz por trás da estridente Lina Lamont (Jean Hagen), um protótipo daquelas divas do grande ecrã que não sobreviveram ao sonoro..Ao revisitar as atribulações dos estúdios no ano de 1927 - ano da estreia de O Cantor de Jazz, pontapé de saída para a mudança -, em que se procurava ultrapassar a imperícia face aos novos métodos, Serenata à Chuva acaba por refletir a própria procura de perfeição que levava Kelly a exigir demasiado dos seus atores. Recorde-se que Debbie Reynolds tinha apenas 19 anos e nenhuma experiência de bailarina quando foi escolhida para o papel. Em entrevistas falou sempre de como trabalhou no duro para responder à excelência de Kelly (chegou a sangrar dos pés no final de dezenas de repetições do número musical Good Morning) e de como ela "era mesmo aquela menina de coro", o que explica a sua absoluta justeza. Já Donald O'Connor, que interpreta o melhor amigo de Kelly, Cosmo Brown, teve a sua dose de hematomas com um dos mais impressionantes solos de vaudeville do filme: Make 'em Laugh..E voltamos à marca do momento icónico: se é certo que a sequência de Singin' in the Rain está inscrita na memória coletiva, não se pode dizer que You Were Meant For Me, com aquele estúdio deserto a transformar-se em cenário romântico pela música e dança, ou o maravilhoso interlúdio onírico de Broadway Melody Ballet sejam inferiores. Este último, aliás, sinalizou o "nascimento" de Cyd Charisse com o lendário travelling lateral que começa na sua perna e dá lugar à tórrida coreografia com Kelly, seguida do bailado de fantasia em que ela enverga um imenso véu branco, expondo nos movimentos a perfeição que ele tanto procurava..Por ocasião dos 70 anos de Serenata à Chuva, a Warner Bros. Home Entertainment anunciou, para 26 de abril, o lançamento de um Blu-ray 4K. Por cá, a plataforma HBO Max tem no seu catálogo uma notável versão digital. Caso para dizer, viva o luxo!.dnot@dn.pt