"De onde vem a neve, avó?" Qualquer conto começa bem com a pergunta inocente de uma criança. E é esta pergunta, no caso, que desencadeia a ação de Eduardo Mãos de Tesoura, o filme que pôs Tim Burton no mapa de Hollywood enquanto criador de um imaginário excêntrico, ao mesmo tempo doce e sombrio..O segredo da neve, como revela uma Winona Ryder de cabelo branco e rosto enrugado, esconde-se na mansão que se avista da janela, no cimo de um monte escuro. O lugar de onde veio o ser com lâminas à guisa de mãos que um dia fez nevar na sua rua ao esculpir um anjo de gelo à porta de casa... Talvez a mais bela explicação para o fenómeno atmosférico, num dos mais comoventes filmes de Natal. .Lançado nas salas a 14 de dezembro de 1990, Eduardo Mãos de Tesoura marcou o início da mítica colaboração entre Burton e Johnny Depp. Um encontro feliz que fez descobrir, desde logo, a faceta gótica do ator e nunca mais o dissociou da originalidade do universo burtoniano, como provam, entre outros, o Willy Wonka de Charlie e a Fábrica de Chocolate e o barbeiro Sweeney Todd..Foi naquele rosto assustadiço, cheio de cicatrizes causadas pela fatalidade de ter mãos de tesoura, que vimos renascer a lenda de Frankenstein como tema perfeito para satirizar a sociedade americana do final da década de 1980. Entenda-se: o cineasta, com a ajuda da argumentista Caroline Thompson, colocou a fábula paredes-meias com a monotonia de uma pequena cidade (à semelhança daquela onde cresceu, Burbank) para explorar a imagem da classe média consumista e superficial, com casas e vidas modernas iguais umas às outras, que se vê desinquietada pela presença de uma criatura "diferente"..Tal como o Homem Elefante no filme de David Lynch, Eduardo torna-se a grande atração social da vizinhança, e cedo mostra a sua alma artística ao transformar vegetação de jardim em grandes esculturas - algo que evolui para tosquiar cães e cortar o cabelo às senhoras. Mas com a mesma rapidez com que se adapta (ou melhor, com que a comunidade se adapta a ele), Eduardo passa, de um momento para o outro, a bode expiatório, e as suas mãos a sinal de perigo em vez de instrumentos hábeis de poesia urbana..Na génese da personagem há um motivo particularmente alusivo à realidade americana, tal como o realizador a descreve: "Recordo-me de que, ao crescer, a tolerância não era o sentimento mais partilhado. Ensinam-nos rapidamente a conformarmo-nos com certas coisas. É uma situação dominante, pelo menos na América, que começa no primeiro dia de escola. A pessoa é classificada: aquele rapaz é inteligente, o outro não, este é bom em desporto, mas o outro não, este miúdo é definitivamente estranho e o outro é normal.".Já a figura com os dedos em forma de tesoura nasceu de um desenho de Burton: "A imagem surgiu inconscientemente e estava ligada à ideia de uma personagem que quer tocar nas coisas, mas não consegue, que é simultaneamente criadora e destruidora. Esta imagem surgiu, claro, na adolescência, um período em que tinha a sensação de não conseguir comunicar." Quando é encontrado sozinho na mansão, por uma amável vendedora de cosméticos (Diane Wiest), Eduardo pouco fala mas os seus olhos mostram medo e desorientação. Sem saber o que é a morte, ele diz que o seu pai "não acordou mais", e ela, como boa samaritana, leva-o para sua casa. Aí, percorrendo as fotografias da família que o acolhe, o protagonista depara com a jovem Kim (Winona Ryder) e deixa-se tomar por um novo batimento cardíaco, ainda antes de a conhecer....Para a expressividade de uma personagem assim, quase muda, Depp preparou-se vendo filmes de Charles Chaplin. E o cabelo, que muitos associam imediatamente ao look despenteado do próprio Tim Burton, teve como fonte de inspiração o vocalista dos The Cure, Robert Smith. Detalhes visuais que, para além da indumentária de cabedal preto e das tesouras no lugar das mãos, tornaram icónica esta criação de um inventor interpretado pelo não menos icónico Vincent Price (1911-1993)..Na verdade, Burton, que já tinha homenageado esse príncipe do cinema de terror de Roger Corman numa curta-metragem - Vincent (1982) -, escreveu o papel especificamente para ele, respeitando os sinais de fragilidade física daquele que dizia ser o seu mestre. De entre várias coisas, Eduardo Mãos de Tesoura será sempre lembrado como a última e tocante aparição de Price no grande ecrã, na pele do homem que concebeu Eduardo no seu laboratório de engenhocas, dando-lhe um coração e ensinando-o a ser gentil, apesar de não ter vivido o suficiente para lhe dar mãos humanas..E o que dizer da banda sonora de Danny Elfman que reveste a história? Parte da carga melodramática do filme, da sua magia intemporal, reside nas notas e coros etéreos do compositor que não se separam das imagens. Por exemplo, aquela em que vemos Kim/Winona Ryder a dançar debaixo dos flocos brancos produzidos pelo labor de Eduardo na escultura do anjo de gelo. É daí que vem a neve.