As presidenciais que deviam servir para pôr fim à crise política na Guiné-Bissau acabaram por gerar mais confusão, com resultados contestados, tomadas de posse simbólica e dois presidentes durante o fim de semana. O que é que se está a passar no país que assinalou no ano passado o 46.º aniversário da independência (em 1973, mas só reconhecida por Portugal em 1974)? E quanto tempo vai demorar a última crise?.24 de novembro: primeira volta das presidenciais.Um total de 12 candidatos participou na primeira volta das presidenciais, cujo objetivo era pôr fim a vários anos de crise política no país. Inicialmente marcadas para 3 de novembro, as eleições acabaram a ser a 24. Entre os candidatos estava o presidente em exercício, José Mário Vaz, o primeiro líder democraticamente eleito na Guiné-Bissau a acabar o seu mandato de cinco anos. Apesar de em 2014 ter sido eleito sob as cores do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), desavenças com o partido durante os últimos anos levaram a que desta vez concorresse como independente..Entre os seus adversários havia quatro ex-primeiros-ministros, incluindo três dos seis chefes de governo que teve durante o seu mandato: Umaro Sissoco Embaló, Domingos Simões Pereira e Baciro Djá. Carlos Gomes Júnior, que estivera no cargo entre 2004 e 2005 e depois entre 2009 e 2012, também tinha o seu nome no boletim de voto..Na primeira volta, o líder do PAIGC, Domingos Simões Pereira, foi o mais votado, com 40,13% dos votos, com Umaro Sissoco Embaló, que representa o partido Madem-G15, formado por 15 deputados dissidentes do PAIGC, em segundo, com 37,65%..29 de dezembro: segunda volta.Como na primeira volta nenhum dos candidatos obteve maioria, mais de 760 mil guineenses foram novamente às urnas a 29 de dezembro, para a segunda volta das presidenciais..Simões Pereira tinha o apoio de Baciro Djá, assim como de outros três ex-candidatos. Mas Sissoco Embaló partia com o apoio do terceiro candidato mais votado na primeira volta, Nuno Nabian, cujo partido, a Assembleia do Povo Unido - Partido Democrático da Guiné-Bissau (APU-PDGB), apoiava contudo o seu adversário, do presidente José Mário Vaz (que tinha sido quarto) e de Carlos Gomes Júnior..Os resultados foram conhecidos a 1 de janeiro de 2020 e deram a vitória a Sissoco Embaló, com 53,55% dos votos. Nas ruas de Bissau, festejou-se o resultado, mas Simões Pereira não aceitou a derrota e estudou desde logo impugnar o resultado por supostas fraudes, apesar de os observadores eleitorais internacionais terem dito que o escrutínio tinha decorrido de forma satisfatória..Na prática, o resultado implicava um cenário de coabitação entre um governo do PAIGC (as alianças que fizera ainda antes das legislativas de 2019 davam-lhe uma maioria na Assembleia Nacional) e um presidente do Madem-G15, dissidente do PAIGC. Sissoco Embaló prometia ser "o homem da concórdia nacional", mas Simões Pereira contestou mesmo os resultados em nome da "verdade democrática", denunciando uma discrepância entre os números de pessoas inscritas e habilitadas para votar e as que votaram..17 de janeiro: Sissoco Embaló em Portugal.A vitória de Sissoco Embaló foi confirmada pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) a 17 de janeiro, com o presidente eleito a viajar logo nessa sexta-feira para Portugal, onde no sábado se reuniu com o primeiro-ministro, António Costa, e no domingo com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa..Os encontros foram apresentados por Sissoco Embaló como "reuniões oficiais", mas para os adversários foram apenas encontros de carácter privado. O presidente eleito aproveitou para convidar Marcelo para a tomada de posse a 19 de fevereiro (mais tarde adiou para 27 de fevereiro)..Ainda durante o fim de semana, e em resposta ao pedido de impugnação dos resultados feito por Simões Pereira, o Supremo Tribunal de Justiça pediu um novo apuramento nacional, que alguns interpretaram como uma nova contagem dos votos, com a CNE a dizer que já o tinha feito. Contudo, a Assembleia Nacional insistia que não podia dar posse ao novo presidente, porque faltava cumprir a formalidade exigida pelo Supremo Tribunal..No dia 22 de janeiro, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), que tem servido como mediadora em várias crises na Guiné-Bissau, reconheceu a vitória de Sissoco Embaló..29 de janeiro: hackers alteraram resultado?.Uma investigação da revista Sábado revelou, a 29 de janeiro, que três piratas informáticos sediados em Portugal, na zona do Barreiro, foram contratados por 75 mil euros para entrar nos computadores da CNE da Guiné-Bissau e sabotar o resultado eleitoral, dando a vitória a Sissoco Embaló..O caso teria sido revelado por causa de uma guerra em relação ao pagamento. Num comunicado, emitido um dia depois, a CNE negou contudo a notícia, falando em "informação desprezível e que provoca repulsa" e denunciando a "falsidade desta suposta investigação (...) desprovida de técnicas apropriadas para uma investigação responsável e credível"..Em Bissau, a guerra e o impasse era entre a CNE e o Supremo Tribunal de Justiça sobre o apuramento dos resultados. No final, a primeira cedia e realizou o apuramento a 25 de fevereiro, confirmando novamente a vitória de Sissoco Embaló, sendo que mais uma vez Simões Pereira não reconheceu o resultado..27 de fevereiro: tomada de posse simbólica.Com o recurso de Simões Pereira ainda a ser analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça, Umaro Sissoco Embaló tomou posse numa cerimónia simbólica num hotel de Bissau, rodeado de fortes medidas de segurança e na presença do presidente cessante José Mário Vaz..A posse foi-lhe conferida pelo primeiro vice-presidente do Parlamento, Nuno Nabian, que o tinha apoiado na segunda volta, tal como José Mário Vaz. O presidente do Parlamento, Cipriano Cassamá, que conforme a lei é quem indigita o presidente, demarcou-se da cerimónia, alegando aguardar pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça ao recurso interposto..Sissoco Embaló prometeu uma nova era para a Guiné-Bissau "de dignidade, paz e progresso para todos os guineenses", seguindo depois para o Palácio Presidencial..O primeiro-ministro guineense, Aristides Gomes, considerou que a tomada de posse simbólica era "uma atitude de guerra" e um "golpe de Estado" com o patrocínio de José Mário Vaz, indicando que o governo não obedeceria a uma autoridade ilegítima..28 de fevereiro: dois presidentes, dois primeiros-ministros.Um dia depois da tomada de posse simbólica de Sissoco Embaló, o novo presidente demitiu o primeiro-ministro, Aristides Gomes, e nomeou para o cargo Nuno Nabian, num decreto presidencial..Após estas decisões, registaram-se movimentações militares, com os soldados a ocuparem várias instituições de Estado, incluindo a rádio e a televisão públicas, de onde os funcionários foram retirados e cujas emissões foram suspensas..Em resposta, o presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau, Cipriano Cassamá, tomou posse como presidente interino, invocando o n.º 2 do artigo 71 da Constituição, que prevê que havendo vacatura na chefia do Estado, o cargo é ocupado pela segunda figura do Estado. A posse foi conferida pela deputada Dan Ialá, primeira secretária da mesa do Parlamento, numa cerimónia em que estiveram presentes 52 deputados..No dia 29, o novo primeiro-ministro tomou posse, numa cerimónia onde estiveram presentes as Forças Armadas, demonstrando assim o seu apoio ao presidente..Entretanto, Aristides Gomes tem denunciado nas redes sociais a ocupação militar das instituições, falando de um "golpe de Estado" e dizendo não ter condições para desempenhar a sua função..1 de março: presidente interino renuncia.Dois dias depois de ter sido empossado presidente interino, Cipriano Cassamá renunciou ao cargo, alegando razões de "segurança contra a sua pessoa e da sua família"..Cassamá insistiu em dizer ainda que a sua decisão se inscreve no quadro da "consolidação da paz, porque o povo guineense já sofreu muito, pelo que pedia desculpas ao PAIGC" por causa desta sua renúncia" e desculpas também "ao povo para que haja a paz"..Também Aristides Gomes denunciou no Facebook que a sua casa tinha sido invadida por militares, denunciando que foram proferidas "ameaças de morte contra os meus seguranças se estes não abandonarem o serviço e contra a minha pessoa se não renunciar uma função para qual foi nomeado legalmente e com base nos resultados eleitorais"..A comunidade internacional tem apelado à calma e à serenidade dos atores políticos: "A CPLP exorta as forças armadas republicanas a se absterem de ações que comprometam a sua posição de neutralidade face a diferendos de natureza político-partidária", pediu, em comunicado, a organização..O porta-voz de Sissoco Embaló nega a existência de um golpe."Não houve um golpe de Estado na Guiné-Bissau, houve sim desde as eleições do dia 29 de dezembro uma tentativa da parte de quem perdeu as eleições de subverter aquilo que é a verdade eleitoral, subverter os órgãos de justiça e submeter a CNE", disse à Lusa Hélder Vaz, embaixador da Guiné-Bissau em Portugal e mandatado para falar à imprensa por Sissoco Embaló..Para Hélder Vaz, há um "processo que pretende fazer prolongar no tempo a indefinição e a instabilidade, quiçá por mais cinco anos como aconteceu durante o mandato do presidente José Mário Vaz", referindo-se aos sucessivos pedidos de impugnação dos resultados de Simões Pereira..2 de março: CEDEAO ameaça com sanções.As instalações do Supremo Tribunal de Justiça, onde o recurso de Simões Pereira estava a ser analisado, foram ocupadas também, segundo um comunicado partilhado por Aristides Gomes no Facebook..Em entrevista à Deutsche Welle, Aristides Gomes confirmou que o seu governo "foi afastado do poder à força"..A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) voltou a ameaçar impor sanções a quem atente contra a ordem constitucional estabelecida na Guiné-Bissau e acusou os militares de se imiscuírem nos assuntos políticos..Apesar de ter reconhecido Sissoco Embaló como vencedor das presidenciais, a CEDEAO condena as ações tomadas "contrárias aos valores e princípios democráticos" e que atentam contra a ordem constitucional estabelecida e "expõem os seus autores a sanções"..A CEDEAO reitera a "necessidade absoluta" de se esperar pelo fim do processo eleitoral e que vai ajudar a que sejam tomadas iniciativas para que seja posto um fim ao impasse pós-eleitoral..Uma crise que não é de agora: seis primeiros-ministros em cinco anos.Mas para entender os últimos acontecimentos é preciso recuar até ao início desta crise. Em abril e maio de 2014, os guineenses foram às urnas nas primeiras eleições legislativas e presidenciais após o golpe de Estado militar de 2012. Deram então uma maioria absoluta ao PAIGC na Assembleia Nacional, com o líder Domingos Simões Pereira a assumir a chefia do governo, e elegeram José Mário Vaz como novo presidente..Mas o desentendimento entre ambos os políticos foi sempre motivo de tensão, com divergências em relação à forma de governar o país. A crise rebentou em agosto de 2015, quando José Mário Vaz demitiu Domingos Simões Pereira. O presidente nomeou então Baciro Djá como novo primeiro-ministro, com o PAIGC a falar de um "golpe de Estado Constitucional". A nomeação viria a ser rejeitada pelo Supremo Tribunal, com a chefia de Estado a ser assumida por Carlos Correia (veterano da luta pela independência que ocupava o cargo pela quarta vez)..Mas este também não ficaria muito tempo no cargo, sendo também demitido por José Mário Vaz em maio de 2016, com o presidente a considerar que Correia não tinha legitimidade política e a rejeitar a realização de eleições antecipadas. O programa de governo de Correia tinha sido rejeitado na Assembleia, com um grupo de 15 deputados dissidentes do PAIGC (coordenados por Braima Camará que tinha ficado em segundo na corrida à liderança do partido) a votarem contra ele ao lado do Partido para a Renovação Social (PRS)..Correia recusou inicialmente ceder o poder, barricando-se na sede do governo, mas a justiça guineense ordenou o corte de água e luz no edifício e ele acabaria por ceder. Baciro Djá seria mais uma vez chamado a assumir a chefia do governo, mas por poucos meses..Um acordo para ultrapassar a crise foi assinado na Guiné-Conacri em outubro de 2016, mas o impasse prosseguiu pela dúvida sobre quem seria escolhido para primeiro-ministro. Umaro Sissoco Embaló, do PAIGC, acabaria por ser finalmente nomeado em novembro, apenas para se demitir pouco mais de um ano depois, em janeiro de 2018, em aparente desacordo com o presidente..O homem que se seguiu no cargo de primeiro-ministro foi Artur Silva, do PAIGC, que apesar de ter tomado posse a 31 de janeiro viria a ser demitido em abril sem sequer apresentar a composição do seu governo. Um novo acordo para sair da crise foi assinado nessa altura, com a nomeação de um primeiro-ministro de consenso, Aristides Gomes (que já tinha ocupado o cargo entre 2005 e 2007), que tinha como objetivo a realização de novas eleições..Em junho de 2019, após este escrutínio ganho novamente pelo PAIGC (desta vez sem maioria absoluta), Vaz recusou nomear Domingos Simões Aristides e Gomes é reconduzido no cargo. Viria contudo a ser demitido logo a 29 de outubro, com Faustino Imbali a ser nomeado para a chefia do governo, num gesto não reconhecido pela Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO), que ameaçou com sanções e obrigou Imbali a demitir-se..No meio do caos, o mandato de Vaz devia ter acabado também em junho, mas ele decidiu continuar até às presidenciais de novembro (apesar das manifestações contra si). Na prática, o presidente foi o primeiro desde a independência da Guiné-Bissau a cumprir o mandato de cinco anos..Em junho, o líder da Assembleia Nacional, Cipriano Cassamá, chegou a ser nomeado presidente interino pelos deputados para substituir Vaz, com a procuradoria a ordenar depois a sua detenção por "tentativa de subversão da ordem constitucional", assim como a do líder parlamentar do PAIGC, Califa Seidi. A CEDEAO decidiu depois que Vaz devia ficar até à realização das eleições.