"Gripado"

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Era o tempo dos liceus e dos contínuos - não havia cá escolas secundárias nem auxiliares educativos -, e o senhor Simão, a quem todos chamavam o Gripado, era figura central daquele nosso pequeno grande mundo, em que tudo assumia proporções imensas e definitivas. Mesmo tudo: as injustiças e a vontade de as mudar; as músicas rebeldes "que vinham de fora" e que o núcleo de rádio passava em afronta ao reitor, que se fazia de surdo para manter a autoridade; os panfletos clandestinos de impressão mal-amanhada que em gestos secretos, e crendo salvar o mundo, trocávamos febrilmente atrás do pavilhão, e as amizades intensas, os segredos, as gargalhadas e as lágrimas, os primeiros amores e os primeiros beijos. Um mundo inteiro a girar no nosso pequeno mundo, que para nós era único, e para sempre o seria.

O Gripado era contínuo - só ele. Aos outros chamávamos gorilas, e eles pareciam confirmar as nossas suspeitas na alegria silenciosa que por vezes lhes líamos no rosto quando uma qualquer confusão acabava em ida ao reitor e, às vezes, em suspensão. O Gripado, não. E como espirrava muito, isso até dava azo a brincadeiras. "Chegue-se para lá, que ainda nos pega alguma. E depois como é que é com as aulas?", dizíamos. E ele, a fingir-se de ofendido: "Qual quê, isto não se pega, é só alergia, e é a vocês."

Risonho, bonacheirão, parecia quase feliz naquele ir e vir bamboleante (coxeava um pouco) com os livros de ponto. Mas, sobretudo, tinha sempre uma palavra apaziguadora em algum caso mais aflitivo de copianço apanhado em flagrante, uma falta injustificada que não se podia confessar aos pais ou alguma nota trágica num ponto - assim se chamavam os testes. "Anda lá, para a próxima corre melhor", dizia no seu modo desajeitado.

O senhor Simão reformou-se no mesmo ano em que acabei o liceu. Eu saía entusiasmada para vida que aí vinha. Ele deixava para trás uma vida inteira. Fizemos-lhe uma homenagem, com um lanche gigantesco, e todos nos quotizámos para lhe oferecer uma bengala com castão de prata, gravado com a palavra "Gripado". No fim, berrámos-lhe aquele nome em coro, dando-lhe vivas, e foi essa a primeira vez que o ouvi, assim, gritado em público, à sua frente. No meio das lágrimas, nesse momento, ele desatou a rir. E não houve espirro que lhe atrapalhasse as gargalhadas.

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