Os cadáveres não ficam por autopsiar. As avaliações às vitimas de violência sexual ou doméstica não ficam por fazer. Nem as perícias relacionadas com acidentes de trabalho e de viação. Apesar do número reduzido de profissionais que trabalham neste momento no Instituto de Medicina Legal, em Lisboa, o trabalho - com uma forte ligação à justiça - é imprescindível e continua a ser realizado, mesmo que por prestadores de serviços. Fica prejudicada a qualidade e a renovação da profissão, afirmam os sindicatos dos médicos..Por isso, na quarta e na quinta-feira, os profissionais convocaram, pela primeira vez, uma paralisação desta especialidade. "É uma greve histórica", explica o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Roque da Cunha. "É preciso garantir o Instituto de Medicina Legal na esfera pública, independente e fortalecido. E nos últimos anos temos assistido a um desinvestimento no instituto de tal forma que neste momento mais de 60% do trabalho é feito por empresas de prestação de serviços.".Nos últimos anos, vários médicos deixaram o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e, segundo a estrutura sindical, não foram substituídos de acordo com as necessidades. Também não foram abertas vagas que permitissem aos seniores chegarem ao topo da carreira (a assistentes graduados ou a chefes de serviços). Neste momento, existe apenas um assistente graduado e um diretor de serviço, em Lisboa, diz Mário Sardinha, 29 anos, que acabou o internato em março e aguarda uma vaga na capital. Até lá trabalha no instituto como se ainda fosse interno, mas com responsabilidades bem acima das que seriam expectáveis.."Medicina legal é uma especialidade médica, como é a medicina cardiotorácica, a psiquiatria ou a neurologia. Certamente não ficaria muito à vontade se chegasse a um hospital para ser operado às cataratas e lhe apresentassem um psiquiatra para fazer a operação. Do mesmo modo, eu não me sinto à vontade a chegar ao instituto e a ser avaliado por um colega que não tem especialidade nenhuma ou que é ortopedista", indica Mário Saldanha..Já o gabinete da ministra da Justiça garantiu ao DN que, "entre os anos de 2017 e 2019, entraram na carreira médica de medicina legal do INMLCF, IP, 25 assistentes de medicina legal, tendo em 2018 o Ministério da Justiça assegurado a entrada, na carreira médica de medicina legal, de todos os médicos recém-especialistas, ficando inclusivamente três vagas por ocupar". Sobre a possibilidade de um novo concurso, a tutela refere que está para breve..O que pedem os médicos?.Os médicos dizem que este reforço é insuficiente. Falam numa diferença temporal considerável entre os concursos e o momento em que o contrato de trabalho é assinado e lembram que a última vez que houve uma vaga para um assistente graduado sénior foi há 13 anos. O que coloca também em causa a formação de novos profissionais, uma vez que estes devem ser supervisionados por um médico mais experiente.."Há um ano tínhamos [em Lisboa] cinco médicos assistentes. Neste momento, temos três. Quando entrei o instituto tinha capacidade para formar quatro internos. Neste momento, a capacidade avaliada é de apenas um", diz Mário Sardinha..O problema não se restringe à capital e em situações de crise como foram os incêndios de junho e de outubro de 2017 (mais de cem vítimas mortais) ou o acidente com um autocarro de turismo na Madeira (29 mortos), as carências são mais evidentes. No caso da Madeira, existia na ilha apenas um médico legista. O reforço foi feito com uma equipa do continente, que por sua vez teve de ser substituída por médicos tarefeiros..Para além do aumento do número de profissionais e da melhoria da capacidade de formação, os médicos reivindicam ainda o acesso às mesmas condições de carreira das outras especialidades. "Na urgência ninguém nos conta as horas. Nós recebemos um subsidio mensal fixo independentemente de estarmos de urgência um dia ou dez dias. Chegamos a estar de prevenção 72 horas seguidas e no dia a seguir, se não formos trabalhar, temos falta injustificada", queixa-se o médico do Instituto de Medicinal Legal de Lisboa.."É uma carreira que tem estado no esquecimento e que merece o desprezo da ministra da Justiça, que se recusa a receber os sindicatos dos médicos", afirma Jorge Roque da Cunha. De acordo com o secretário-geral do SIM, há quatro anos que pedem à tutela uma reunião com a ministra, que não ainda não foi concedida; tendo em maio sido agendada e na véspera desmarcada. Entre outras questões, pretendem demonstrar o desagrado acerca da proposta de lei, aprovada em Conselho de Ministros, que prevê a possibilidade de ser o Ministério Público a contratar diretamente empresas prestadoras de serviços para realizarem as perícias..O ministério indica que a secretária de Estado adjunta da Justiça, Helena Mesquita Ribeiro, recebeu por várias vezes quer o SIM quer a Federação Nacional dos Médicos. E que tem estado a trabalhar com as estruturas sindicais numa nova versão do Acordo Coletivo de Empregador Público, que se traduz numa melhoria das relações laborais.."O que nos leva à greve é também uma das coisas que nos impedem de fazer greve".Têm vontade de parar e de mostrar às pessoas o impacto do seu trabalho, mas segundo Mário Sardinha isto nunca vai ser totalmente possível: "O nosso poder de greve é muitíssimo diminuto. Não só por sermos muito poucos, mas sobretudo pelo modo de funcionamento do instituto; o que nos leva à greve é também uma das coisas que nos impedem de fazer greve. Nós podemos parar, mas o instituto vai chamar os tarefeiros para fazerem o nosso trabalho. Se houver uma greve no centro de saúde, os doentes vão chegar lá e vão para casa. No instituto, os doentes chegam e chama-se um tarefeiro para fazer o trabalho.".Em causa não estão as urgências - que têm sempre de ser asseguradas -, mas o trabalho diário, que poderia ficar para sexta-feira. Mas que não deve ser adiado, porque cada falta é sempre colmatada pelo recurso a tarefeiros.."Nós estamos subtraídos até na nossa capacidade de luta, porque não há impacto", diz..O médico legista.O objetivo do trabalho dos profissionais de medicina legal é fazer perícias que ajudem a determinar responsabilidades criminais. Por um lado, estes especialistas autopsiam todos os casos em que existe suspeita de um crime. Em 2016, o instituto realizou 6319 autópsias, segundo os últimos dados disponibilizados pela tutela..Por outro, fazem exames a vítimas de crimes, por exemplo de violência doméstica, "para ajudar na investigação e na possível condenação", explica Mário Sardinha. Atuam ainda em situações de acidentes de viação ou de trabalho com o mesmo objetivo: ajudar a apurar responsabilidades.