Graffiti: porque desenhamos nas paredes?

O ilustrador António Jorge Gonçalves e o rapper Flávio Almada apresentam a conferência-concerto "Válvula" para o público adolescente
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Tudo começou em África há 30 mil anos. Um homem pegou no pó castanho com a mão e soprou-o contra a parede rochosa naquilo que terá sido a primeira pintura com (uma espécie de) spray. E com isso disse: Eu estou aqui. Depois, muita gente continuou a deixar a sua marca em pedras e paredes: seja uma gravação numa prede da Pompeia antiga há 3 mil anos, um fresco no teto de uma igreja no século XV ou um mural na cidade de Lisboa nos dias hoje. "Gostamos de escrever em paredes. Precisamos de escrever em paredes?"

É com esta pergunta que começa a ser contada a história do graffiti em Válvula, o espetáculo criado pelo ilustrador António Jorge Gonçalves e o rapper Flávio Almada (aka LBC Soldjah) que se apresenta no Lu.Ca - Teatro Luís de Camões, em Lisboa, a partir de hoje. Porquê válvula? Porque é esse o nome do tubo distribuidor da tinta das latas de spray.

"O que há de muito interessante a descobrir no graffiti tem justamente a ver com o entendimento do que é que está por detrás dessa atitude tão persistente na história da humanidade de querer marcar presença através da assinatura", diz António Jorge Gonçalves. Habituado a fazer muitos desenhos com muitas técnicas diferentes, não se lembra de alguma vez ter feito um graffiti. "Só aqueles rabiscos nas carteiras da escola", conta. Distante da cultura do hip hop, quando decidiu fazer um espetáculo para o público adolescente sobre este tema pensou imediatamente que faria todo o sentido fazê-lo com alguém que tivesse uma visão "de dentro". Foi assim que surgiu o encontro com Flávio Almada, MC (mestre de cerimónias) e ativista cabo-verdiano, morador na Cova da Moura e uma das vozes mais acutilantes do hip hop em crioulo.

Juntos criaram Válvula, que é uma performance e ao mesmo tempo uma espécie de conferência: António Jorge Gonçalves vai contando a história do graffiti por palavras e desenhos, Flávio trata da banda sonora e de vez em quando pega no microfone para cantar. "As cinco músicas foram feitas de raiz", explica Flávio. Por exemplo, depois de António Jorge Gonçalves lembrar que o graffiti "começou em bairros, para dar voz a comunidades esquecidas", Flávio canta a saga de um pedreiro mal pago, que acorda cedo para apanhar os transportes para Lisboa para "mais um dia de trabalho, mais um dia de explorado".

O que é uma tag? Como nasceu o graffiti no bairro do Bronx, em Nova Iorque? No que se inspira a "pichação" nos prédios de São Paulo? De que forma Diego de Rivera se liga a Basquiat, Miguel Ângelo a Keith Harring, Banksy ao português Noah? E ao mesmo tempo que se conta a história desta forma de expressão vai-se questionando porque é que tantas pessoas em tantas épocas diferentes sentiram vontade de deixar a sua marca num lugar - seja um muro ou a carruagem de um comboio.

"O que torna o graffiti uma questão rica é que alguns dos praticantes do graffiti assumem-se como vândalos. Mas ao mesmo tempo há essa frase: eu faço uma coisa para te abrir os olhos", diz António Jorge Gonçalves. "Quem é que define o que é arte e como se classifica?", pergunta Flávio, numa das canções. "Só é arte o que está numa galeria? Um graffiti normalmente é público, toda a gente pode ver. A galeria é só para uma elite." Essa é uma questão que atravessa todo o espetáculo: o graffiti é arte ou é vandalismo? E, atualmente, quando já há graffitis legais - e alguns até encomendados por empresas ou autarquias - quem é que decide quais são aqueles que são arte e os que são só "uns rabiscos"? "Chegámos a um ponto em que se criou uma espécie de consenso que arruma a street art [arte urbana] de um lado, e no outro tag bombing como vandalismo", diz António Jorge Gonçalves. "Essa divisão já é reconhecida por muitos dos artistas. Mas eu contesto isso."

Flávio Almada também não tem experiência de pintar paredes mas conhece muitos graffiters. "Geralmente dizemos que a cultura hip hop tem cinco elementos: DJ, MC, break dance, graffiti e o conhecimento (knowledge). Anda tudo ligado", diz. "Nós acreditamos que o hip hop pode ser um catalisador da educação e ensinar várias coisas. O graffiti, como o rap, faz isso. É um diálogo. Tu passas num sítio e és interpelado por algo que está numa parede."

É isso que António Jorge Gonçalves espera que aconteça com o jovem público que vai estar no Lu.Ca: "Não estou muito convencido de que eles vão sair daqui a riscar tudo, Mas gostaria de acreditar que quando passarem ali na primeira parede onde virem um tag vão olhar para aquilo de outra maneira. Resumir a questão do graffiti só a rabiscos legais ou não legais acho que é pouco. Há muito mais para pensar sobre isto."

Ciclo "Porque desenhamos nas paredes?"

- Espetáculo Válvula, dias 2, 9 e 10 de fevereiro, às 16.30. Sessão descontraída no dia 3, às 16.30

- Instalação/exposição, Eu estive aqui - uma história do graffiti de A a Z, organizada e desenhada por António Jorge Gonçalves (com muito material que está no espetáculo), pode ser visitada a partir de sexta-feira e até 10 de fevereiro.

- Oficina, Desenhos Efémeros, de António Jorge Gonçalves, sobre o "método de desenho digital ao vivo" e sobre a experiência que o desenhador desenvolve desde 2001 de "desenho performativo sobre paredes". Dias 2 oficina dirigida a famílias neste sábado e uma outra para escolas na terça-feira (dia 5).

- Conversa com o tema "Cidade e Desobediência", no dia 9 de fevereiro, às 18.00, na qual participam, além de António Jorge Gonçalves e Flávio Almada, escritor e argumentista Nuno Artur Silva, o investigador Ricardo Campos e a fundadora do Wool - Covilhã Arte Urbana e do projeto Lata 65 Lara Seixo Rodrigues.

Mais informações no site do teatro.

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