Graça Freitas: "Nunca foi tão rápido o conhecimento sobre um vírus como o COVID-19"
Dados da OMS dizem que existem por ano entre três e cinco milhões de casos graves de gripe e que há até 650 mil mortes por doenças respiratórias relacionadas. Nesta ordem de grandeza, como é que devem ser encarados estes casos cíclicos de vírus como o COVID-19? Ou devemos pensá-lo de uma forma completamente diferente?
A pergunta é muito pertinente. Uma coisa é aquilo a que nós estamos habituados: nós sabemos o que nos espera numa boa época de gripe, numa época de gripe moderada ou numa época de gripe em que o vírus é mais agressivo. E a humanidade habitua-se a lidar com o que conhece. O problema é quando emerge um novo vírus - neste caso é um vírus, mas pode ser outro agente microbiano - e essa emergência traz pela frente o desconhecido e nós não sabemos como é que esse vírus se vai propagar na natureza, como é que vai ser a sua dinâmica e como é que ele se vai transmitir entre os seres humanos, e portanto aguarda-nos o desconhecido. É esse desconhecido que leva a que estas doenças emergentes provoquem estes movimentos de preocupação, de alerta, de atenção. Porque é exatamente isto: qual vai ser o comportamento? Como é que se vai propagar? Quantas pessoas vai atingir? Quantas pessoas vai atingir ao mesmo tempo? Esta é a grande incógnita, aquilo a que nós chamamos em epidemiologia a taxa de ataque, que é a quantidade de pessoas que estão doentes num determinado período. É totalmente diferente ter 10% da população atingida por uma doença, seja ela qual for - gripe, sarampo, qualquer uma -, ou ter 20% ou 30% da população atingida.
A verdade é que até agora não sabemos praticamente nada.
Exatamente. Essa dinâmica, essas características que dão a sua intensidade de transmissão e dão depois o seu impacto na saúde das pessoas, em termos de doença, em termos de consultas, em termos de internamento, de necessidade de cuidados intensivos e de morte, é toda esta cadeia da história natural deste vírus que ainda não é completamente conhecida. E não sabendo, temos de nos preparar à partida para um cenário pior... e esperar ter um cenário melhor. O que é interessante nestes novos micro-organismos é que ao fim de pouco tempo - um, dois, três anos - eles se adaptam e nós nos adaptamos. A humanidade também cria mecanismos de proteção, de imunidade contra estes agentes, e eles acabam por se tornar residentes. Isto é como se se começasse uma dinastia com um vírus novo, se a dinastia não acabar, se não for contida na origem, vamos ter dois ou três anos com uma determinada dinâmica e, depois, este vírus tornar-se-á residente, à partida, como outros coronavírus, porque este é o sétimo coronavírus conhecido.
A OMS estima que talvez em cerca de ano e meio poderá haver uma vacina contra este coronavírus de que estamos a falar agora. Até lá, que meios é que temos para o combater? E quando houver vacina poderá dar-se o caso de o vírus já estar residente?
Nós não sabemos. É essa a incógnita. Nós já sabemos muitas coisas, mas a primeira coisa muito importante neste vírus foi que a 31 de dezembro a China anunciou que tinha um surto e no dia 7 de janeiro sabíamos qual era o vírus e o genoma do vírus estava identificado. Nunca foi tão rápido na história. Quando emergiu o VIH, o vírus que foi responsável pela sida, nós levámos muito tempo - anos - para saber o que era. Quando foi a SARS, em 2002-2003, também levámos bastantes semanas sem saber qual era o agente que causava a doença, a incerteza ainda era maior. Portanto, neste momento, há coisas muito positivas, temos muita informação - sabemos qual é o agente, o vírus, que causa a doença; sabemos as características do genoma desse vírus; sabemos, à partida, que ele terá vindo de um reservatório muito longínquo, que terá sido o morcego e que depois terá passado por outros reservatórios hospedeiros animais que, depois, levaram ao contacto com a espécie humana. Portanto, há muita coisa que se sabe. Calcula-se que o período de incubação vá até 14 dias - não sendo essa a média - e é por isso que o isolamento é por 14 dias. Mas há aqui muitas incógnitas. Quanto tempo vai levar para que este vírus se adapte ou nós nos adaptemos a ele, partindo do princípio de que ele não vai sofrer muitas mutações - o que também pode acontecer -, não o sabemos. Vamos ver, se for possível fabricar uma vacina, até que ponto é que essa vacina vai retardar e contrariar a dinâmica natural do vírus. Todos estes agentes têm uma dinâmica natural, é a história natural da doença, é assim que se chama. Aos serviços de saúde, à ciência, ao conhecimento, à indústria e aos cidadãos, que têm medidas de saúde pública a aplicar muito importantes, compete contrariar a história natural das doenças, alterando o seu percurso a bem da nossa saúde. É isso que nós tentamos fazer sempre.
O que é que cada pessoa pode fazer para tentar travar?
Em termos de medidas, costumamos dizer que há medidas que são do foro da medicina propriamente dita, dos medicamentos, das vacinas, do internamento, do ambulatório, dos cuidados de saúde. Essas são as medidas, umas preventivas, no caso da vacina, outras de tratamento, no caso dos medicamentos. Depois há aquilo a que nós chamamos as medidas de controlo de infeção, as medidas de saúde pública, aquelas por que todos nós somos responsáveis. Aqui a questão é retardar a sua propagação e evitar que num curto espaço de tempo existam muitas pessoas doentes. Retardar a propagação está nas mãos de todos nós. Literalmente nas mãos, porque se nós lavarmos as mãos frequentemente não estamos a propagar vírus. Podemos propagar vírus - este em concreto - de várias formas: expeli-lo pela fala, pela tosse, pelo espirro. E é óbvio que levamos frequentemente as mãos à nossa cara e, portanto, ficamos com as mãos conspurcadas, pomo-las numa superfície e esses vírus são viáveis, as gotículas que contêm esses vírus são viáveis durante dias, horas, conforme a temperatura, a humidade, as características meteorológicas e conforme, também, as superfícies em que ficam. Portanto, outras mãos irão também para essas superfícies e depois irão para a boca e para o nariz de outras pessoas. Se tomarmos medidas tão simples como lavarmos frequentemente as mãos, não se impede totalmente a infeção, mas retarda-se a infeção, ou seja, diminui-se o número de pessoas infetadas num determinado momento, e a quantidade de vírus que passa de uma pessoa para a outra. Esta história da quantidade de vírus também é muito importante, pode fazer a diferença na gravidade da doença. Os vírus depois replicam-se e, quantos mais entrarem na primeira leva, como eu costumo dizer, mais se replicam. Portanto, lavar as mãos é importantíssimo. Parece que não é, mas é. Não espirrar para cima de ninguém quando se está doente, não tossir para cima de ninguém, o distanciamento social... Não é agora: agora continuamos a beijar-nos como sempre, mas nas alturas das epidemias convém socializarmos um bocadinho menos, termos alguma distância social, não nos beijarmos tanto, não nos abraçarmos tanto.
Lavar as mãos, certo, mas as pessoas perguntam-se se lavar as mãos é suficiente ou se têm de usar aqueles produtos antibacterianos, aquelas soluções alcoólicas. Consegue-se responder a esta pergunta?
Lavar as mãos não é a única medida e não é 100% suficiente. O que a lavagem leva é a que diminua a quantidade de vírus que nós podemos ter nas nossas mãos e, para isso, há uma técnica: lavar as mãos é mesmo lavar as mãos, tem de se lavar toda a superfície, dos dedos e do punho, não é passar as mãos debaixo de água uns segundos, tem de se esfregar. Há uma técnica própria. Há muitos desenhos sobre isso.
Há uma regra dos dois minutos...
Isso. Leva bastante tempo. Em relação ao produto, a água e o sabão são suficientes. Tem é de ser mesmo água e sabão, porque às vezes há sabonetes que são mais cremes do que sabonetes. Portanto, quando dizermos água e sabão é para dar a entender que deve ser mesmo sabão. Não é preciso ser sabão azul, mas é preciso ser um sabão e não um creme hidratante para as mãos sob a forma de sabonete. Por vezes é mais fácil termos nos nossos empregos, nos hospitais, nos escritórios e nas escolas a dita solução alcoólica, porque também permite a desinfeção desde que seja bem feito o contacto com as mãos.
Feito o contágio, o que é que determina a sua perigosidade para as pessoas que o apanham, ou seja, em que condições é que uma pessoa pode sobreviver a este vírus ou pode estar em risco de vida?
A primeira característica é a do vírus, é a do invasor, digamos assim. Depois, é a quantidade de vírus que se inala numa determinada altura. Se pensarmos que isto é uma espécie de uma guerra - para que toda a gente entenda -, temos em primeiro lugar as características do vírus, a sua virulência, a sua capacidade de invadir o nosso sistema respiratório, de ficar só a nível das vias respiratórias superiores ou descer até às vias respiratórias inferiores, como é que ele se movimenta dentro do nosso organismo, a sua capacidade de se replicar dentro das células. Depois, há as características do hospedeiro, das pessoas. Obviamente que quanto menos imunidade esse hospedeiro tiver para aquele vírus, mais suscetível ou mais vulnerável está à invasão. Por isso é que com outras doenças, como a gripe, nós não temos gripe todos os anos porque vamos conhecendo os vírus e vamos ganhando imunidade, as vacinas dão-nos imunidade, e também estamos mais preparados. Depois, há características, como a idade por exemplo, que podem influenciar a nossa vulnerabilidade; as nossas doenças de base. O próprio envelhecimento dá uma depressão do sistema imunitário, uma pessoa idosa não tem um sistema imunitário tão competente como uma pessoa nova, por exemplo. É deste equilíbrio e da nossa capacidade de resistirmos que tudo depende. Depois, há o arsenal terapêutico. É óbvio que depois de uma pessoa estar infetada, se a prevenção não funcionou, para este vírus não há ainda terapêutica específica, mas em países como Portugal há muita coisa que se pode fazer.
Quais são os meios de que Portugal dispõe nesta altura para enfrentar este vírus?
Nós temos um bom sistema de saúde à escala global, sabemos disso. Portanto, há capacidade, quer em internamento quer em ambulatório, de tratar não o vírus especificamente mas outras doenças que as pessoas tenham - qualquer pessoa com diabetes, com problemas de uma insuficiência cardíaca, insuficiência renal, doenças respiratórias, com asma, com uma doença oncológica. Uma das coisas que se devem tratar e manter equilibradas são as outras doenças de base que as pessoas tenham. Depois, há aquilo a que nós chamamos terapêutica de suporte: temos ventiladores, ainda temos técnicas de ventilação sofisticadas, portanto há um arsenal terapêutico muito grande. Não podemos pensar que estamos todos desprotegidos à mercê de um vírus, porque temos arsenal terapêutico. O que não existe à data é: nem vacina nem um medicamento antiviral específico, mas existem muitas formas de tratar. Por exemplo, se chegarmos ao próximo inverno e se este vírus continuar entre nós, mesmo que não exista uma vacina, só o facto de as pessoas se vacinarem contra a gripe já ajuda, é menos uma infeção, é menos um fator de risco e é menos um fator para confundir o diagnóstico, porque na fase inicial, pelo menos, podem ter características semelhantes.
Quais são as condições que temos neste momento para lidar com um eventual surto, ou seja, o que é que está a ser feito no Sistema Nacional de Saúde para preparar não o seu combate direto - já percebemos -, mas o surto e a quantidade maior de infeções ao mesmo tempo que é uma das maiores preocupações?
Há mais de 20 anos que começámos a fazer aquilo a que se chamam planos de contingência para sabermos o que se pode fazer. Eu queria aqui dizer uma coisa: há doenças que se emergirem apenas num país, ou em poucos países ao mesmo tempo, há sempre capacidade de nos ajudarmos uns aos outros. O problema são as ditas pandemias, quando um vírus como este atinge muitos países de todas as regiões do mundo ao mesmo tempo. Aí, a capacidade de entreajuda dos países e os mecanismos de solidariedade são menos eficazes. Dito isto, o que é que temos sempre presente perante uma doença nova, aprendendo com o passado e aprendendo com as doenças habituais? A primeira coisa é que temos de saber a quantas andamos, temos de ter um painel de bordo para percebermos, nacional e internacionalmente, o que é que se passa com o vírus, a tal dinâmica da doença. Chama-se a isto vigilância epidemiológica. Se nós não soubermos, não conseguimos adequar medidas. Portanto a primeira coisa é melhorar a nossa base de conhecimento no dia-a-dia; todos os dias temos de acompanhar estes fenómenos, sabermos o que é que se produz a nível internacional, como é que está a acontecer na China, como é que acontece nos outros países e como é que poderá acontecer aqui. Com base no conhecimento que se vai tendo fazemos cenários de previsão - taxa de ataque de 10%, taxa de letalidade de 2% -, vamos vendo o que é que nos poderá acontecer num determinado momento. Depois, temos duas fases muito importantes quando aparece um agente novo, um vírus novo... Na fase inicial, tomamos medidas, em todo o mundo, que se chamam de contenção; ou seja, não podemos impedir que algumas pessoas tivessem saído da China e que tivessem originado casos importados noutros países. O que aconteceu, e o que acontece, é que uma vez recebido um caso importado, esse caso tem de ser contido, ou devemos fazer tudo para o conter. Para isso, é preciso que os clínicos e as pessoas da saúde que veem um desses doentes potencialmente suspeito estejam atentos, porque se não estiverem atentos não diagnosticam. Em Portugal, especificamente, temos uma linha de apoio ao médico, temos um conjunto de médicos para apoiar. Vamos imaginar: um médico que estivesse num banco de urgência esta noite e que tivesse encontrado uma pessoa com sintomas, e que essa pessoa nos últimos 14 dias tivesse tido um percurso compatível com ter tido contacto com o vírus, telefona para uma linha médica de apoio que o ajuda no processo de decisão. Se esse primeiro médico acha que aquele pode ser um caso suspeito para investigação, liga para um segundo médico que está num dos hospitais de referência que existem. Portanto, quando o primeiro médico faz o diagnóstico, o segundo médico valida e o terceiro validador acha que aquela pessoa é suspeita ativa-se um sistema que implica o transporte pelo INEM para um hospital de referência, o internamento em isolamento com pressão negativa, o tratamento dessa pessoa, a recolha de amostras biológicas, o Ricardo Jorge [Instituto] faz os teste e as autoridades de saúde identificam os possíveis contactos próximos dessa pessoa. Esse é o protocolo inicial, que é para conter qualquer caso que possa aparecer. Estou a lembrar-me agora da pandemia da gripe que foi assim. Começaram a chegar casos do México e nós contínhamos todos os casos.
E depois?
Depois, há a fase seguinte, em que começam a vir muitas outras pessoas, aí teremos de ter mais hospitais de referência, mais quartos, mais médicos preparados para entrarem na segunda linha, que é replicar o modelo inicial. Mas ainda estamos em contenção. Vamos chegar a uma altura - depende de como é que isto vai evoluir -, se o vírus se disseminar entramos noutra fase que se chama de mitigação e, obviamente, aí, todos os serviços, todos os hospitais, todos os centros de saúde, todos os médicos, todos os enfermeiros têm de estar preparados para atender doentes como se atende numa gripe. Basicamente, este é o plano. Aqui a questão crítica sempre é: na fase inicial tentar que não passe ninguém e, uma vez detetada uma pessoa, isolá-la e conter; na fase seguinte, tal como disse há pouco, depende muito da taxa de ataque. A pressão sobre os serviços de saúde é enorme quando acontece uma coisa destas, porque todas as outras doenças e todos os outros doentes existem.
Houve uma série de médicos que manifestaram a preocupação que tinham em relação à capacidade de resposta.
É exatamente isso. Depende muito. É como na gripe. Neste ano, por exemplo, a nossa capacidade de resposta para a atividade gripal não foi toda ativada, ou seja, nem todas as camas extra que estavam programadas foram abertas, nem todos os médicos que estavam programados para entrar em escalas suplementares foram convocados; na maior parte dos hospitais a taxa de ocupação não foi total. Portanto, ainda havia aqui margem para expansão de cuidados. Porquê? Porque neste ano o vírus da gripe não era muito virulento, não deu uma gripe nem com grande intensidade de casos em cada semana nem com grande gravidade desses casos. E há outros fatores: há outros vírus, entre eles o coronavírus, que estão a circular, os tais residentes, e há o inverno que descompensa sempre a patologia crónica. Por isso o nível de preparação tem que ver com a quantidade de pessoas que estão doentes numa determinada altura, e se à nossa vida normal, às nossas doenças normais, ao estado normal do país, se sobrepuser ainda uma epidemia, obviamente que a pressão será muito maior. Mas aqui o que os países fazem - depende sempre do número de pessoas doentes num determinado dia, numa determinada semana - é a reorganização dos serviços, claro, porque não há capacidade para fazer tudo, tudo, tudo. Se houver uma enorme pressão sobre os serviços, estes, com as administrações regionais de saúde, terão de encontrar formas de priorizar o atendimento e de priorizar as intervenções, porque nenhum país do mundo tem capacidade para assegurar tudo o que é normal e uma grande epidemia ao mesmo tempo. Portanto, mais uma vez, vai depender do número de pessoas doentes num determinado período; doentes além dos doentes que já temos habitualmente, porque esses vão continuar.
Houve uma polémica à volta de uma quarentena obrigatória ou mesmo de um internamento compulsivo. Qual é a sua leitura, valeria a pena? Temos a Constituição que proíbe essa via, mas seria uma questão a ponderar no futuro, quando começam a surgir cada vez mais casos deste tipo de vírus?
Essa ponderação poderá ser feita em sede própria, mas a minha sensibilidade vou dizê-la: nas crises de saúde pública por que passámos, os cidadãos devidamente esclarecidos têm, de facto, a capacidade de não querer voluntariamente transmitir - ou sentirem-se responsáveis pela eventual transmissão - doenças à sua família, aos seus amigos e aos seus concidadãos. De um modo geral, isso aconteceu na pandemia da gripe, e viu-se agora com estas 20 pessoas, 18 cidadãos que vieram de Wuhan e dois diplomatas que acompanharam a operação de repatriamento, que voluntariamente assinaram um consentimento informado em que disseram que aceitavam ficar em isolamento profilático voluntário. Quando foi da pandemia que teve origem no México passou-se isso com os primeiros casos. Os casos começaram a surgir por volta de 24, 25 de abril e depois prolongou-se durante todo o verão até agosto, e nós até agosto conseguimos conter, andar em fase de contenção. A partir de agosto já havia muitos casos e foi diferente. Também há alguma proteção laboral em relação a isto: as autoridades de saúde podem passar, nestas circunstâncias em que as pessoas não estão doentes, não um atestado médico, mas uma declaração para efeitos laborais, para as pessoas não perderem direitos laborais. Há muitas coisas para podermos proteger as pessoas que ficam em isolamento profilático voluntário. E há situações que teriam de ser equacionadas a nível excecional e com carácter de proporção e adequação ao risco e, eventualmente, ser tomada uma decisão de em determinadas circunstâncias muito estritas se poder pôr uma pessoa em isolamento, mas para isso teríamos de chegar a outros mecanismos que estão contemplados na legislação. Depois, em situações muito extremas que esperemos que nunca aconteçam, há ainda em situação de calamidade a suspensão temporária de alguns direitos. Nós nunca podemos olhar para estas medidas como a regra, estas medidas têm de ser proporcionais, têm de ser adequadas, tem de se fazer a ponderação dos interesses em jogo - as liberdades pessoais com as liberdades coletivas...
Qual é a verdadeira importância de a China não ter olhado para este problema de frente e ter tentado, no início, escondê-lo?
Eu não tenho a certeza se eles tentaram esconder. Quando uma infeção destas começa com estas características, é difícil perceber se é só uma gripe.
Mas o médico que a anunciou foi obrigado a assinar uma declaração a dizer que aquilo que ele tinha dito não era bem assim.
Eu não quero comentar esse caso específico do médico. Quero comentar o que nós vamos sabendo. Quando estas doenças acontecem, a primeira ideia que se tem é de que os doentes estavam com gripe, gripe sazonal a sério, pois os sintomas de início não são muito diferentes. Portanto, poderão ter pensado que estariam apenas a ter mais casos de gripe. Mas há aqui um sinal muito importante, e esse é mesmo muito importante e aconteceu noutras epidemias: para um vírus que se conhece, o pessoal de saúde que habitualmente trata doentes com proteção mínima normalmente não adoece, senão já não havia profissionais de saúde. O que é que começa a acontecer, e aconteceu com a SARS em 2002-2003? Foi quando os profissionais de saúde que tratam aqueles doentes começam eles próprios a adoecer ou a morrer. Portanto, há ali qualquer coisa que passou dos doentes para as pessoas. Ou na mesma enfermaria começam a aparecer mais casos; ou no mesmo hospital, outros doentes começam-se a infetar. As epidemias quando começam podem ter início de uma forma aparentemente normal e, depois, dão estes sinais. Aí é que começam a soar os alertas. Foi diferente, por exemplo, com a emergência da sida nos Estados Unidos, porque as manifestações não eram de nenhuma doença habitual e, portanto aí, o alerta médico surgiu muito mais rapidamente, mesmo sem se saber qual era o agente causal, mas a sintomatologia e as doenças que provocava pela imunodepressão trouxeram ao de cima doenças que não era habitual verem-se. Agora, quando é uma infeção respiratória desta natureza, no início pode haver confusão com gripe, neste caso porque havia uma epidemia de gripe na China.
Já agora, há algum estudo que tente explicar porque é que tantos destes vírus surgem na China? Há alguma razão para que isso aconteça?
Haverá uma razão ecológica, digamos assim. Existem reservatórios silvestres em grande quantidade, sejam de aves ou de morcegos. E há toda uma cadeia e animais, e estes vírus vão passando do reservatório para outros reservatórios hospedeiros intermédios ou intermediários, que convivem com estes originais; e depois há muitas pessoas. Consequentemente, há aqui uma grande probabilidade de os vírus passarem aquilo a que nós chamamos barreira das espécies. Há um vírus, por exemplo, aviário, que passa para um mamífero não humano e depois passa de um mamífero não humano para um humano. O que se passa agora na Arábia Saudita com outro coronavírus é que passa dos camelos para as pessoas, mas felizmente o vírus não adquiriu competência para passar de uma pessoa para outra de forma eficaz, é essa a diferença do coronavírus que está no Médio Oriente neste momento. Uma das hipóteses para haver estes movimentos, muitas vezes vindos da Ásia, são as características do ecossistema - muitos animais silvestres, muitos animais domésticos e muitas pessoas. Mas não é exclusivo da Ásia, porque a última pandemia de gripe, quando estávamos todos à espera que viesse da Ásia, veio do México/Estados Unidos, porque há aqui uma grande discussão sobre onde é que foi exatamente o primeiro caso, mas veio do continente americano.
Não há hipótese de previsão, apesar de todos os avanços tecnológicos, biológicos e etc.?
Não. Nós não sabemos quando é que um destes vírus vai saltar a tal barreira das espécies e, uma vez saltada a barreira das espécies, se ele se torna competente ou não para continuar a propagar-se nessa espécie. Pode acontecer que passe a barreira e depois ficar por aí, não passar para outra pessoa. É impossível prever, à data de hoje, com a ciência que temos. Depois, há as mutações e as deleções dos vírus, que são mecanismos que eles têm de adaptação.
Há alguma coisa na evolução humana que faça que estes vírus tenham alguma periodicidade maior, há alguma possibilidade de haver mais porque estamos a fazer mais? Por exemplo, o que é que tudo isto tem que ver com as mudanças climáticas, há alguma relação entre uma coisa e outra?
Toda a gente tem perguntado isso em relação a este vírus que, por acaso, até é um vírus sazonal, mas da época fria. Se me perguntar em termos de probabilidades, é óbvio que sim. Nós, os seres humanos, estamos a invadir ecossistemas que não invadíamos antes; somos cada vez mais, somos muitos, e temos na nossa cadeia alimentar uma fauna e uma flora imensas para nos manter a todos. Por detrás desta flora e desta fauna estão outros reservatórios, chamados silvestres, e a probabilidade será maior à medida que estes vários compartimentos de reservatórios de hospedeiros de vários tipos de animais e de plantas se vão juntando. Quanto mais nos juntarmos, mais probabilidade há de estes vírus passarem de uma espécie para outra espécie e depois acabarem por ser invasores e patogénicos para uma determinada espécie. Essa é uma probabilidade que existe de facto. Agora, também temos de pensar que nós não estamos na Idade Média, os mecanismos que a humanidade tem hoje para contrariar esta história natural e estes ecossistemas e a propagação destas doenças também existem - a vigilância, a deteção precoce, a descoberta de vacinas, outras terapêuticas, saber que interrompemos com a lavagem das mãos ou com distanciamento social, ou com outras medidas genéricas de saúde pública, o isolamento profilático, por exemplo. A humanidade não está, como na Idade Média, à mercê da Peste Negra sem saber nada sobre o assunto. Portanto, obviamente que a probabilidade é maior porque há um maior convívio entre as espécies, e as espécies são muitas neste momento, e os seres humanos também. O que aconteceu com este vírus poderá acontecer noutra altura. Agora, a nós todos compete-nos aprender lições com cada uma destas crises e com cada uma destas epidemias, para na próxima já partirmos mais avançados.
Aproveitando essa deixa das lições que aprendemos, há mais de 20 anos que acompanha a área da saúde, passou já por diversos governos. Tem encontrado um fio condutor nas políticas para a saúde ou acontece aquilo que muita gente acredita que possa acontecer, que é cada governo mudar a política?
Bom, cada governo mudará a política, mas a coisa boa dos países democráticos é que têm a administração central e têm sistemas robustos que funcionam independentemente das políticas. Em termos da Direção-Geral da Saúde (DGS), onde estou creio que há 24 anos, nunca notei da parte de nenhum governo, independentemente do partido, qualquer obstáculo a decisões técnicas, nomeadamente no combate a epidemias, pandemias ou surtos. Ou seja, há aqui uma parte que tem que ver com a administração pública de um país democrático com as suas instituições - o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge faz análises, e é laboratório de saúde pública, é laboratório do Estado, é laboratório de referência com qualquer governo; a Direção-Geral da Saúde é o organismo que - a diretora-geral da saúde neste caso - é a autoridade de saúde nacional. Tenho legislação e poderes próprios que são independentes de um governo. É preciso termos noção de que a parte política é obviamente um complemento importante das nossas vidas, mas depois há todo um dispositivo de saúde pública que está montado nos países como o nosso.
Como a saúde pública não se resume a essas doenças que emergem de repente, desse ponto de vista, e do seu ponto de vista, a discussão entre o público e o privado faz algum sentido em Portugal, ou está a ser absolutamente exagerada do ponto de vista da saúde pública? Ou posta a questão de outra maneira: o facto de terem emergido estes novos atores privados contribuiu para melhorar a saúde pública em Portugal?
Eu poria as coias de forma diferente - nós somos dez milhões e aos dez milhões que existem são prestados determinado tipo de cuidados e determinados tipos de aconselhamentos em termos de medidas genéricas de saúde pública, e o setor social e o setor privado na área da saúde têm, também, consistentemente aderido a medidas de saúde pública. No fundo, eles asseguram cuidados e influenciam a vida de uma fatia importante da nossa população. De um modo geral, e também da minha experiência, alinham-se totalmente com as orientações do setor público, portanto da Direção-Geral da Saúde, da cadeia de delegados de saúde e de todo o nosso dispositivo de saúde pública. Nós contamos sempre com o setor social e com o setor privado. Em matéria de saúde pública - saúde pública no sentido da saúde das populações no seu coletivo, das populações e dos territórios, não é o financiamento ser público ou ser privado -, sempre vi o setor social e o setor privado agirem em conformidade, seguindo as mesmas orientações.
Já considerou que o Programa Nacional de Vacinação é a obra da sua vida. Em Portugal não têm acontecido, como noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos, aquelas campanhas, aqueles movimentos antivacinação. Acredita que poderá ser uma tendência a que Portugal esteja imune ou, eventualmente, corremos o risco de também nos bater à porta?
Eu não creio que nós estejamos imunes. Temos de acompanhar estes movimentos sociais, estudá-los, perceber as suas motivações e tentar contrariá-los, porque imunes não estamos. Eu digo muitas vezes, quando as pessoas me falam do Programa Nacional de Vacinação, que há uma parte que é mesmo inspiração e ciência, mas depois é muita transpiração, muito trabalho, muita logística e muito afinamento entre todos os atores. O grande lema que nós temos é esclarecer, esclarecer, esclarecer, não é só informar, é esclarecer, tirar dúvidas, desfazer mitos, esclarecer, esclarecer, e ajudar as pessoas a tomarem uma decisão consciente, informada e a bem da sua saúde e da saúde da população. Portanto, imunes não estamos, temos de trabalhar muito, perceber, do ponto de vista sociológico, o que é que origina estes movimentos e fazer tudo para os contrariar. Até à data, temos tido a sorte e somos mesmo, como se sabe, dos países melhores do mundo em termos de vacinação e, num estudo recente da União Europeia, fomos o país que ficou em primeiro lugar - não fomos nós que o fizemos, foram entidades externas - na confiança que os cidadãos depositam na vacinação em Portugal, mas isso nunca é um dado adquirido. Mas imunes não estamos, temos de estar atentos, perceber os fenómenos e tentar contrariá-los.
Já ouvimos o alerta da DGS a propósito dos chamados cigarros eletrónicos e do tabaco de aquecer. Tem surtido efeito, ou continuamos a ver muita gente a consumir esse tipo de tabaco independentemente desses alertas?
O grande desafio das sociedades modernas, além destas emergências de vírus e de epidemias, são as doenças crónicas não transmissíveis. É isso que nos preocupa, de facto, nas sociedades modernas - é viver mais, mas viver mais com qualidade de vida. As questões dos fenómenos do tabaco aquecido, dos cigarros eletrónicos, são em si próprias um fenómeno também semelhante ao dos vírus - é uma coisa que emerge, quando emerge não se sabe exatamente todos os contornos e há aqui um movimento, sempre, de quem fabrica estes produtos, para os tornar aparentemente menos agressivos para o ser humano. O efeito perverso, às vezes, destes produtos é que as camadas mais jovens, que já não tinham muita vontade de fumar cigarros ditos clássicos, porque sabiam que tinham riscos, quando lhes é apresentado um produto novo e lhes é dito que tem muito menos riscos e que até tem alguma coisa de tecnológico, aderem a esse hábito; e isso é uma perversidade imensa destes produtos, porque dão às pessoas uma noção de risco mais baixo e, então, se o risco é baixo eu vou consumir. Isto é uma perversidade destes produtos.
Porque o risco não é baixo?
Pode não ser baixo, e mesmo que seja um risco mais baixo do que o de um cigarro convencional, se muita gente o utilizar, coletivamente vamos chegar ao mesmo sítio, que é muita gente a sofrer as consequências disso. O risco, de facto, pode não ser tão baixo, há muitos produtos que originam outros, a partir da altura em que são misturados e usados em conjunto e, portanto, temos de nos manter atentos também a este fenómeno dos novos produtos ditos do tabaco, sejam cigarros eletrónicos seja tabaco aquecido. Temos de acompanhar, mais uma vez, o conhecimento que for produzido porque também quero aqui dizer: na DGS, e os nossos parceiros da saúde, temos de trabalhar com base em evidência científica, não é com base apenas no que nós achamos ou pensamos sobre uma determinada coisa. Temos pessoas que acompanham muito bem esta questão dos produtos do tabaco, o que é que esses produtos impactam na saúde humana, o risco e o que é o risco de se dar a sensação de que este não faz tão mal e, se não faz tão mal, vamos fumar. Isso é uma perversidade muito grande.
Mas os dados científicos apoiam a ideia dessa falsa segurança, ou seja, de que existe um risco.
Exatamente. Existe risco, obviamente que existe risco. A falsa segurança é mesmo falsa, porque induz nos consumidores, ou nos potenciais consumidores, a ideia de que podem usar uma coisa com um ar mais moderno, até do que a das gerações anteriores, com outras características e que não vão correr um risco grande, ou que não vão ter risco de todo, o que ainda é pior. Portanto, está a aumentar o consumo, nomeadamente entre os jovens, em países que começaram a utilizar este tipo de produtos há mais anos do que nós, e isso é uma perversidade destes produtos.
Outro dos temas em cima da mesa, já nesta semana, é a eutanásia, o debate vai passar ao Parlamento. Como médica, como diretora-geral da saúde, como é que se posiciona neste debate?
Eu tenho duas posições em relação a isto. A grande aposta deve ser na capacidade de acompanhar as pessoas até ao fim da sua vida, seja com cuidados paliativos, com cuidados domiciliários, com algum tipo de apoio às pessoas que quiserem seguir o seu percurso de vida até ao fim. Depois, sou radicalmente contra o encarniçamento terapêutico, ou seja, aquelas questões que têm que ver com prolongar de forma agressiva, violenta até, dois, três, cinco, dez dias a vida de uma pessoa, para isso é que há testamento vital e as pessoas podem dizer que não querem ser vítimas de encarniçamento terapêutico. A terapêutica deve ser adequada às circunstâncias e não deve ser desproporcionada em relação à condição. Ditas estas duas coisas - criar condições para acompanhar as pessoas com dignidade até ao fim, não fazer encarniçamento terapêutico -, o compartimento que ainda ficar de fora disto, em pessoas que estejam completamente conscientes, mais uma vez devidamente esclarecidas e mais uma vez acauteladas todas as condições, eu, enquanto pessoa, não me oponho a que exista eutanásia. Mas os outros compartimentos têm de ser assegurados - acompanhar as pessoas com qualidade e dignidade até ao fim, não fazer encarniçamento terapêutico - e depois, então, ponderar devidamente a questão da eutanásia, sempre caso a caso, sempre com grande acompanhamento médico.