Digamos, para simplificar, que O Livro de Imagem, de Jean-Luc Godard, não se parece com nenhum outro filme que o leitor/espectador possa encontrar entre as estreias deste ano. Talvez com a exceção de O Outro Lado do Vento, obra póstuma de Orson Welles que a Netflix está a difundir. Em ambos os casos, sentimos a vertigem e o prazer de uma experiência cinematográfica que se afasta de todos os cânones de consumo, desafiando mesmo as matrizes clássicas da própria história do cinema..Dizer que estamos perante um objeto experimental é quase uma redundância. De facto, só mesmo o cinéfilo mais distraído (ou apenas desinteressado) ignorará que, desde os tempos heroicos da Nova Vaga, Godard é alguém que pratica um cinema de reinvenção de linguagens que, precisamente, porque sabe reinventar, nunca menospreza o pedagógico culto da memória - recordemos a sua primeira longa-metragem, O Acossado (1959), uma aventura parisiense em que Jean-Paul Belmondo vivia a ironia, plena de angústia, de não poder duplicar a mitologia de Humphrey Bogart..Em boa verdade, O Livro de Imagem surge como um capítulo mais numa trajetória que Godard iniciou em 1988, com a produção das suas monumentais História(s) do Cinema, concluídas uma década mais tarde. Trata-se de aplicar as técnicas videográficas de integração e manipulação das imagens (e sons) para construir narrativas que são reflexões sobre o nosso presente, sempre ancoradas no passado que os filmes transportam e, de alguma maneira, atualizam..Regressam, assim, os temas obsessivos que pontuam décadas do seu trabalho. A saber: a herança do século XX do Holocausto, o triunfo da sociedade como comunidade de consumidores, enfim, o apagamento da memória dos clássicos (filmes, livros, etc.) face ao triunfo de uma cultura da gratificação imediata..Um velho cliché preconceituoso tenta promover a ideia segundo a qual, no seu experimentalismo, o labor criativo de Godard não passa de um sistema de elucubrações abstratas geradas por uma mente desligada do mundo. Em boa verdade, é o contrário que acontece. Se os filmes de Godard podem ser tão intensos, é porque neles encontramos os sinais mais radicais, e também mais perturbantes, da nossa contemporaneidade..Para Godard, o espaço cultural em que os filmes surgem nunca se aquieta. É mesmo um espaço em que se trava a mais bela das guerras. A saber: a guerra da cultura. Nela se confrontam, não armas de fogo, mas ideias. Não se trata de fazer vítimas, mas de pensar como vivemos e como queremos viver..Daí que seja importante sublinhar a possibilidade de ver O Livro de Imagem lado a lado com dois títulos emblemáticos da filmografia godardiana. Assim, em paralelo com esta estreia, o cinema Ideal propõe, em cópias restauradas, o já citado O Acossado e ainda Pedro, o Louco (1965), com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina (sem esquecer que as História(s) do Cinema voltam a estar disponíveis em DVD)..Pedro, o Louco, em particular, é um filme de estranha atualidade, em que contemplamos a decomposição de todas as ilusões românticas. Por vezes, com a ironia de uma canção como Ma Ligne de Chance - Karina e Belmondo parecem os sobreviventes de um musical da MGM.