De Francisco de Holanda conhecemos pouco mais do que o nome, topónimo frequente em várias vilas e cidades do país. Mas se nos disserem que este homem, nascido em Lisboa em setembro de 1517, foi amigo de Miguel Ângelo, que não era pessoa de convívio fácil, e uma das figuras mais importantes e audazes do Renascimento europeu? No mínimo, surpreendemo-nos. Pois essa é justamente a conclusão a que chega o documentário Francisco de Holanda - A Luz Esquecida do Renascimento, que passará nesta quarta-feira às 22.15, na RTP 2. Coordenado pela jornalista Paula Moura Pinheiro (que nos últimos anos tem revisitado e divulgado o nosso património edificado no programa Visita Guiada) e realização de Inês Rueff, o documentário lança uma nova luz sobre a obra publicada de Holanda, baseada no trabalho de vários investigadores portugueses e estrangeiros, à cabeça dos quais aparece, pelas quatro décadas de dedicação ao artista, a francesa Sylvie Deswarte-Rosa, historiadora de arte do Centre National de Recherche Scientifique de Lyon..Diga-se, em proveito daqueles a quem parece exagero tantos anos de trabalho em torno de um só artista, que, como bom homem do Renascimento, Francisco de Holanda se dividiu com igual empenho entre várias disciplinas. Discípulo de humanistas como André de Resende, escreveu ensaios filosóficos (nomeadamente sobre arte), mas também foi escultor, arquiteto, pintor e iluminador, ofício que aprendeu com seu pai, António de Holanda, de origem flamenga (o que explica o apelido) que casara com uma portuguesa e singrara na animada corte de D. Manuel I..Com o favor real (sem o qual nada se fazia no Portugal quinhentista) do sucessor daquele, Dom João III, o jovem Francisco parte em 1537 para Roma, no âmbito da política cultural do monarca, que tanto estimulou a presença de bolseiros portugueses nos maiores centros da cultura europeia da época. Chegando a Itália já com uma importante bagagem cultural obtida sobretudo em Évora, então um grande polo de cultura humanística, não tem dificuldade em estabelecer frutuoso diálogo com grandes nomes da arte e da cultura. Aí, na cidade que era considerada não apenas o coração da cristandade, mas também o maior símbolo da cultura antiga tão valorizada pelos homens do Renascimento, apurará a sua arte e consolidará o seu pensamento, tornando-se, segundo o historiador espanhol Manuel López de Corsela (entrevistado neste documentário), "o grande génio esquecido do Renascimento europeu"..Produz então O Livro das Antigualhas, em que colige, em desenhos e pinturas de grande beleza e rigor, as grandes obras de arte deixadas pelos antigos, não descurando, como era próprio do Renascimento, a observação do que lhe era contemporâneo, como as vestes de homens e mulheres..No filme, o historiador Rafael Moreira dá-nos a ver uma das pinturas incluídas na obra - Cena Noturna do Castelo de Sant'Angelo. Para além de belíssimo, o trabalho, sublinha," é de tal modo rigoroso que é recorrentemente usado como fonte pelas equipas que tratam do restauro e conservação do monumento." O mesmo acontece, aliás, com outros espaços antigos de Roma, como confirma Alessandro d'Alessio, responsável pelo Parque Arqueológico do Coliseu. Ainda na Cidade dos Papas, o jovem português estabelecerá uma frutuosa relação com Miguel Ângelo, de que dará amplo testemunho na obra Diálogos em Roma e em várias cartas que dirigiu ao autor do teto da Capela Sistina..De volta a Lisboa e à cCorte (onde integrará o círculo de artistas patrocinado pela rainha Dona Catarina, mulher de Dom João III e regente do reino na menoridade de Dom Sebastião), continuará a sua vasta produção artística e ensaística, de inspiração fortemente neoplatónica. Na sua obra ensaística mais ambiciosa, Tratado da Pintura Antiga, Francisco de Holanda considerará que Deus é a fonte de toda a pintura, sendo também o primeiro pintor, o que, nessa lógica, faz do artista alguém que estabelece contacto direto com Deus e interpreta a sua vontade, sem necessidade de intermediários. O que, como sublinha Isabel Almeida, professora da Faculdade de Letras de Lisboa também ouvida no documentário, "se torna uma ideia perigosa porque se é o artista que tem acesso à ideia divina, quem terá, na verdade, legitimidade para o censurar?".Ao contrário do que esperaria talvez o jovem otimista que partira para Roma aos 20 anos, questões como esta começarão a colocar-se com dramatismo nos últimos anos da sua vida. O ambiente intelectual saído do Concílio de Trento, concluído em 1563, tornarão a arte e o pensamento "mercadorias" a vigiar pela ortodoxia católica. Sem a proteção de Dona Catarina e ante a indiferença do jovem Dom Sebastião, Francisco de Holanda, que morrerá aos 67 anos, em 1585, verá os seus últimos ensaios, Da Fábrica Que Falece à Cidade de Lisboa e A Ciência do Desenho, serem objeto da censura eclesiástica defrei Bartolomeu Ferreira. Um homem atarefado que, pela mesma época, aplicava idêntico tratamento à epopeia de Camões, Os Lusíadas.