"Foi estranho só ter acontecido com o Luis Sepúlveda. Teria sido mesmo o vírus?"
Após O Fiel Defunto, Germano Almeida foi incapaz de fugir à força das personagens desse romance. Partiu para uma continuação, O Último Mugido, e essa atração mantém-se, tanto que está a escrever o terceiro volume. Se a escrita está como seria de esperar, o que o escritor não imaginava era ver-se de quarentena na sua casa em Cabo Verde e ter este romance confinado dentro das livrarias fechadas e privado, pela primeira vez, de o apresentar no seu país. A exceção foi a sessão oficial no encontro literário Correntes d"Escritas, de onde saiu com uma forte gripe, aguardando agora pelo regresso à normalidade para que o livro ganhe liberdade e leitores.
No seu novo romance, O Último Mugido, uma das personagens diz que Cabo Verde é o centro do mundo. Como está o país nestes tempos de pandemia?
Continuamos a viver aqui convencidos de que estamos realmente no centro do mundo e que ele gira à volta de Cabo Verde, sendo em função disto que temos acompanhado a pandemia espalhada pelo mundo. Em Cabo Verde, por sorte nossa, a crise não é comparável a outros países. Onde eu vivo, São Vicente, houve um único caso. Na Boavista, onde nasci, houve diversos casos, mas está praticamente erradicado.
Quando saiu do encontro literário Correntes d'Escritas em fevereiro apanhou um susto, afinal era o único "infetado" no seu país.
Susto não apanhei, mesmo que tenha estado muito próximo e abraçado o Luis Sepúlveda, como é habitual quando nos encontramos na Póvoa de Varzim. Entretanto, fiz algumas apresentações deste novo livro em Portugal e estava com uma gripe fortíssima, que durou uma semana e só consegui curar já em casa. No dia seguinte a chegar, telefonam-me a dizer que o Sepúlveda tinha sido internado com covid-19. Comecei a fazer contas, mais a constipação pouco normal que tinha tido, e resolvi fazer uma quarentena, mas quando as autoridades souberam que eu estava fechado em casa - e como estavam com muita vontade de ter um caso -, insistiram para que fosse para o hospital, num espaço reservado, enquanto faziam análises. Assim foi, mas nada tinha.
Assustou-se nesses dias?
Não, porque me sentia bem. Eu nem queria ser internado porque achei que era um disparate, só que vieram com a conversa de que era o protocolo e não quis ser desmancha-prazeres. E assim foi até chegar o resultado negativo.
Não esperava a morte de Luis Sepúlveda?
Nenhum de nós estava à espera. Sobretudo porque ficou internado muitos dias e isso fazia acreditar que estava a recuperar. Nos primeiros dias acompanhei de perto, depois deixaram de dar notícias e ia telefonando a escritores sul-americanos para saber o que se passava com o Sepúlveda. Como todos diziam que estava a melhorar, fiquei muito surpreendido com o anúncio da sua morte, até porque na véspera tinha falado com uma escritora amiga de ambos e ela sossegou-me ao dizer que ele estava a recuperar bem. Fiquei com muita pena, porque era uma pessoa muito agradável.
Este encontro nas Correntes d"Escritas dava um bom livro, afinal estava lá a nata de autores lusófonos prontos a ser infetados...
É verdade, havia todas as condições para isso acontecer pois estamos sempre juntos; no hotel ou no autocarro que leva para o cineteatro e são mais de 12 horas diárias em comum. De maneira que existiam todas as condições para ele infetar uma quantidade de gente, mas o estranho é que isso não aconteceu a ninguém. Por isso, já me dei a pensar se teria sido isso mesmo que o Sepúlveda teve, porque foi uma infeção que não transmitiu a mais ninguém. Foi estranho só ter acontecido com o Luis Sepúlveda. Teria sido mesmo o vírus?
Voltemos ao Mugido. No seu caso, a suspeita de que podia ter covid-19 terá sido uma "vingança" de alguma das suas personagens?
É natural [risos], afinal as personagens começam a conviver connosco e a fazer parte da nossa "realidade" até que chega um ponto em que vivem ao nosso lado, comem e falam connosco, daí que seja muito natural que alguma destas minhas personagens tenha tido capacidade para me fazer adoecer!
Ou porque usa poemas do atual presidente da República de Cabo Verde...
Não apenas dele, há outros que pertencem a um autor que é ao mesmo tempo personagem, o José Luís Tavares - ele aceitou entrar. Quanto às citações do presidente Jorge Carlos Fonseca deve-se ao facto de achar que é um mestre do surrealismo. Ainda nestes dias ele estava a falar da covid-19 na televisão e a aumentar o prazo do estado de emergência e fê-lo com aquela seriedade que me espanta quando se lê o seu poema sobre a cidade da Praia no livro Porcos em Delírio. Até o fui reler.
Este novo romance acabou confinado dentro das livrarias fechadas. Era o seu destino?
Não, mas continua confinado. Em Cabo Verde só abriu uma livraria entretanto em São Vicente, ou seja ainda nem chegou à capital, a não ser além de uns poucos que foram "importados" a tempo. Portanto, nem sei como se está a comportar no mercado.
Nunca lhe acontecera esta situação?
Não, o meu costume é fazer uma apresentação primeiro em Cabo Verde e só depois em Portugal. Desta vez foi tudo ao contrário e só foi mostrado na Póvoa de Varzim.
Este livro é uma continuação do anterior. Era impossível não contar mais?
Quando estamos a escrever um livro desconhecemos se ele terá prolongamento, o que aconteceu foi que o habitual período de luto após o fim da escrita de um livro, o tempo em que as personagens nos abandonam, desta vez não aconteceu. Continuaram em mim e dei comigo a escrever sobre elas ainda, concluindo que teria de fazer uma continuação. Então, decido escrever o segundo livro na perspetiva da viúva, que tinha chegado dos EUA com muitas exigências e vontade de cumprir o testamento do marido e, como havia matéria, fiz a sequência.
E agora vai haver um terceiro com a perspetiva do assassino?
Estou a começar... Se já temos o lado do escritor e o da viúva, talvez valha a pena ter o do assassino a explicar o porquê de ter matado o amigo. Até porque os leitores queixam-se de eu não explicar o motivo do assassino, que sempre pensei deixar sem explicação, mas acho que talvez valha a pena apresentar uma teoria convincente das razões que o levaram a matar.
Vai conseguir encontrar uma explicação?
Se não conseguir não teremos livro. Em o Mugido faz uma digressão por muitos lugares: Viana do Castelo, Évora, Lisboa, Bairrada, Rio de Janeiro, Cabo Verde...
São terras de que a personagem gostou. É verdade que eu estive em Viana e adorei a cidade... muitos dos locais que as personagens visitam são os que o autor real conhece, mas é também para dar a conhecer a personagem/escritor, pois no primeiro volume fica a saber-se muito pouco dele.
É um pouco autobiográfico, até porque fala de comidas que devem ser as de que gosta?
É verdade. Lembro-me sempre do Somerset Maugham, que dizia que se lermos o conjunto das obras de um escritor saberemos a sua vida completa. Muita da nossa experiência é contada nos livros e, mesmo que vários pormenores venham da observação de outras pessoas, a maior experiência é a nossa - daí que as obras sejam sempre autobiográficas.
Quando elege a bagaceira branca em Lisboa e a aguardente de Minas, esse é um conhecimento pessoal?
Claro, experimentei e achei que era bom.
Falando de prazeres pessoais, o que é autobiográfico nas descrições amorosas?
Isso não sou eu, faz parte do que uma mulher me contou.
Nos últimos livros tem tentado inventar uma nova linguagem e pontuação ou continua satisfeito com o seu percurso?
Não creio que tenha experimentado, claro que o autor sente que muda e não é o mesmo todos os dias. Mas, se lesse agora o meu primeiro livro, O Testamento do Senhor Nepomuceno, pouco teria que ver com este.
Este é o primeiro livro em que está na capa que recebeu o Prémio Camões. O prémio mudou a sua vida ou já veio tarde?
Mesmo que tivesse vindo cedo não teria mudado a minha vida. Um prémio tem o valor que tem, nada acrescenta enquanto escritores nem faz sentir outras obrigações.
Como vai a literatura em Cabo Verde?
Aos solavancos! Continua a faltar uma produção com qualidade e capaz de impressionar. Os autores estão com demasiada pressa em publicar em vez de deixarem os escritos maturar. Deveriam escrever mais para si e não para leitores. Sem querer dar o meu exemplo, passei mais de 20 anos a escrever para mim e só publiquei por acaso.
Os leitores gostaram dos seus livros porque retiraram a máscara à sociedade. Correto?
A literatura que havia, sobretudo a dos escritores da Claridade, era de denúncia: das fomes, das secas e das nossas mortandades. Eu já publiquei depois da independência e sempre defendi que deveríamos estabelecer um marco com essa data na literatura em vez de continuar a escrever como antes e sobre os mesmos temas. Havia os que nunca tinham sido explorados, a eterna esperança e o humor, que escolhi. Também a pequena burguesia que finge grandes virtudes, assunto que nunca exploraram com medo de que as pessoas se reconhecessem.
Mantém uma crítica forte à politica de Cabo Verde. Não fez as pazes com os políticos?
Eles é que deviam fazer as pazes connosco, porque continua a haver muito oportunismo por parte dos partidos e quem lá está não faz disso um sacerdócio, antes vai puxar a brasa à sua sardinha e ganhar a vida. Salvo um ou outro, não têm inspirado respeito.
Há dias, o ministro da Cultura, Abraão Vicente, respondeu forte à atriz Rita Pereira por causa do que ela disse sobre a fome em Cabo Verde. O que pensa dessa polémica?
Não foi uma resposta violenta, é a forma de ele falar e não teve intenção de ofender a atriz, de quem se gosta bastante em Cabo Verde. Mas ela foi infeliz e mal influenciada por um cantor cabo-verdiano e não sabia o que dizia. A intenção dela foi nobre, não soube foi expressar-se. Há um problema em Cabo Verde que o ministro expressou bem: temos horror à fome. Que tem acompanhado a nossa história ao longo dos séculos e só acabou em 1975. Neste momento, não aceitaríamos a ideia de ter fome e foi contra isso que o ministro protestou.