"Fica, mister!"
Pois, o Flamengo não bateu o Liverpool, não foi campeão do mundo em Doha, no Qatar, e Jorge Jesus perdeu a chance de ser o treinador mais vitorioso de 2019. E sabe o que isso representou para a gigantesca torcida do Flamengo no Brasil? Quase nada.
Sim, gostaríamos de ter sido os vencedores daquela competição. Ela representa muito mais para nós, sul-americanos, do que para os europeus - cujo natural eurocentrismo faz que valorizem mais suas competições internas do que um confronto com um continente que, embora continue a produzir alguns dos maiores jogadores do mundo, já não tem clubes à altura de desafiá-los. E essa é a grande diferença entre as duas maneiras de se encarar a disputa desse que chamamos aqui de "título mundial".
O jogo contra o campeão europeu é o fim da nossa temporada, o último jogo do ano, a consumação de um ano extraordinário. Para o Flamengo chegar a ele, precisou ganhar um campeonato nacional duríssimo (como Jorge Jesus descobriu) e um torneio continental quase assassino, o que foram façanhas consideráveis. Já para o campeão europeu, este jogo acontece em plena temporada, em meio a outras disputas também terríveis, como seus campeonatos nacionais ou a Champions League. É compreensível que, para o campeão europeu, esse jogo - além das horas e horas no avião, o fuso horário, o cansaço, a possibilidade de contusões - seja um estorvo.
E, no entanto, o Liverpool derrotou o Flamengo por 1x0, golo, aliás, do brasileiro Firmino na prorrogação. E por que não ganharia? Como disse Jorge Jesus antes da partida, enquanto o Flamengo tem os melhores jogadores do Brasil, o Liverpool tem os melhores jogadores do mundo. Dos onze titulares do Flamengo, apenas dois não são brasileiros: o zagueiro espanhol Pablo Marí e o atacante uruguaio Arrascaeta. Já o Liverpool é uma verdadeira seleção mundial - até mesmo seu goleiro, Alison, é o goleiro titular da seleção brasileira -, e se tiver dois ou três jogadores britânicos, será muito. É também uma equipa em que os jogadores se conhecem e sob o mesmo treinador há quase quatro anos - comparada aos meros seis meses que Jorge Jesus teve para armar esses onze do Flamengo que entraram em campo sob o seu comando. Se o futebol é um jogo de conjunto, o tempo de casa será uma vantagem considerável. Sem contar que, por estar em fim de temporada, o Flamengo disputou 19 partidas a mais do que o Liverpool em sua meia temporada até agora. Esse desgaste ficou flagrante na segunda parte, quando se viu que o Flamengo já não tinha pernas para correr - e, mesmo assim, depois de muito atacar, só foi vazado na prorrogação.
Se alguém pensar que a derrota na última partida abalou o prestígio de Jorge Jesus junto dos torcedores rubro-negros, engana-se. Nenhum de nós esquecerá sua incansável inquietação à beira do campo em todos os jogos, esbravejando ordens e chamando um jogador à linha lateral para passar-lhe instruções que às vezes viravam o resultado de um jogo. Sempre lhe seremos gratos pelos cento e muitos golos que o Flamengo marcou em 2019 sob a sua batuta - golos de todo jeito e feitio, alguns lindíssimos -, as vitórias épicas, os troféus levantados.
Desde sua chegada ao Rio, em maio, até hoje, nós, torcedores do Flamengo, fomos dormir felizes em todos os domingos e quartas-feiras, dias em que o Flamengo normalmente jogou - uma média de uma partida a cada quatro dias! No meu caso, mais ainda porque me acostumei, ao dormir, a me deixar embalar reconstituindo os lances dos golos rubro-negros naquela noite. Alguns gostam de contar carneiros para dormir - eu prefiro contar os golos do Flamengo.
Escrevo isto na véspera do Natal. Neste momento, Jorge Jesus estará de férias em Portugal, junto de sua família, e provavelmente com a decisão já tomada - se vai ou não aceitar o convite do Flamengo para permanecer no Rio em 2020 ou se preferirá voltar para a Europa, para algum clube que o convide. Mas, se já tomou esta decisão, ainda não achou que é o momento de anunciá-la. Eu, representando os 40 milhões de brasileiros que torcem pelo Flamengo, torço também para que ele fique connosco. E, para isto, apresento-lhe o quanto ele ainda terá a ganhar no Flamengo: confirmar a hegemonia do clube no futebol brasileiro, reconquistar a América, chegar ao ambicionado título mundial e - isto, sim, é que seria o maior dos desafios - incluir uma equipa brasileira na elite internacional do futebol, formada até agora exclusivamente por europeus.
Se Jorge Jesus fizer do Flamengo uma potência mundial do futebol - e ele sabe muito bem o tamanho do Flamengo dentro do Brasil -, não haverá treinador no mundo que o supere. E, se chegar a isto, duvido que ainda ache emocionante levar o Barcelona ou o Real Madrid a mais um previsível título da Champions.
O Flamengo está disposto a dar a Jorge Jesus tudo que ele pedir, inclusive mais jogadores para completar o elenco, sem falar numa remuneração nunca atingida por um treinador no Brasil. Mas, pelo que sei à distância de Jorge Jesus - infelizmente, ainda não tive o prazer de conhecê-lo -, acho que nada será mais importante para sua decisão do que este desafio que o espera, e que é o de alterar o eixo do futebol mundial.
Isso significa fazer que o maior mercado exportador de craques, que é o Brasil, consiga armar uma equipa formada basicamente por nacionais e que abale o poder económico dos gigantes europeus.
Como dizem em uníssono os milhares e milhares de flamengos no Maracanã: "Fica, mister!"
Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha (Tinta-da-China).