A acordeonista Celina da Piedade esteve no ano passado na primeira edição do Festival Giacometti a assistir a vários concertos. "Vim como público e senti-me logo em casa, fartei-me de cantar", conta. Logo ali se falou da possibilidade de neste ano voltar para fazer um espetáculo e Celina não só aceitou como está a preparar a sua apresentação com dois grupos corais femininos de Ferreira do Alentejo. Entretanto, a organização do festival ficou a saber que as mulheres do grupo Rosas de Março são especialistas em fazer lasquinhas de bacalhau frito, que costumam vender numa barraquinha na feira anual da terra. E já está lançado o desafio: "No próximo ano vêm fazer bacalhau frito para o Giacometti, fica combinado", atira Helena Inverno, diretora artística do festival. "É este o espírito", explica, "queremos ir envolvendo cada vez mais pessoas da comunidade que se identificam com este projeto"..O festival é uma iniciativa da Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo que queria ter um evento que promovesse a cultura tradicional e ao mesmo tempo homenageasse o etnomusicólogo Michel Giacometti, que nasceu na Córsega mas que se mudou para Portugal em 1959 e aqui fez um importante trabalho de recolha e investigação de música e literatura oral. Giacometti esteve na região de Ferreira em 1968, fazendo várias recolhas relacionadas com o cante e acabou por ser sepultado em Peroguarda, uma das aldeias do concelho..Para programar o festival, foi convidada Helena Inverno, que tem as suas raízes em Ferreira, embora tenha feito o seu percurso entre Londres e Lisboa, Marrocos e Espanha, sobretudo na área do cinema e da arte conceptual. No seu currículo tem, por exemplo, o documentário Jesus por Um Dia (correalização com Verónica Castro), vencedor do prémio de melhor filme português no festival IndieLisboa em 2012, tendo também feito a montagem do documentário Notas de Campo, de Catarina Botelho, filme vencedor do festival Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, em 2017. Mas apesar de toda a sua experiência internacional, Helena Inverno manteve sempre um pé no Alentejo. Era, por isso, a pessoa certa para pôr de pé um festival deste tipo em apenas seis semanas: "No ano passado, não foi ainda o festival que queríamos, foi só uma festa de apresentação para aquilo que vai ser agora o Festival Giacometti", explica. "Apesar de tudo conseguimos programar 28 eventos muito diversos e espalhá-los pela terra, acabou por correr bem, dentro das limitações.".Na sua segunda edição, com a experiência adquirida e um orçamento que subiu de 50 mil para 75 mil euros, o Festival Giacometti - que se realiza de hoje (30 de maio) a domingo (2 de junho) - já é mais parecido com aquilo que ela sonhou. "Tinha carta-branca para fazer o que quisesse. Eu queria manter o espírito do Michel Giacometti, ele não gostava muito das coisas em palco, gostava da cultura espontânea, por isso tínhamos de ir buscar coisas mais genuínas, mesmo tradicionais. Mas também não podia ser só isso. Então, decidimos fazer uma fusão, com coisas de raiz popular mas que vão mais além. Como fazia, afinal, o Lopes-Graça", explica Helena Inverno que, desde o início, soube que não queria fazer um festival só de música mas que incluísse também as artes plásticas, o cinema, a gastronomia. E que misturasse tudo..Por exemplo, as Batukaderas de Marapano, que vêm de Porto Salvo para trazer a música de Cabo Verde à "matiné africana" de domingo, vão também preparar o almoço de cachupa que será servido nesse dia no Jardim Municipal. E o grupo Soledonna, que no sábado traz ao festival as polifonias da Córsega (piscando o olho a Michel Giacometti), vai também dar uma masterclass de canto aberta à população (e que se realiza na sexta-feira no Núcleo de Arte Sacra do Museu). O mesmo acontece com o Gamelão da ilha de Java, no sábado: haverá um workshop à tarde e um concerto à noite, sempre no jardim. Já para não falar da reunião "à mesa" de três dos principais grupos de cante da região - Alma Alentejana, Os Trabalhadores e Os Rurais - que vai acontecer na quinta-feira na Peroguarda e na sexta-feira na Casa do Vinho e do Cante: Taberna Zé Lelito.."Uma das coisas que queria muito fazer era a ligação com a comunidade. É muito importante ter artistas de fora em residência nesta semana em Ferreira e ter pessoas da comunidade a participar, como artistas e não só", explica Helena Inverno. Uma das residências é a da Hai la Hora Orchestra, um grupo constituído por dez elementos vindos de vários países europeus, e que no sábado vai apresentar no Jardim Municipal a Grande Festa de Música Balcânica, com a participação especial da Banda Filarmónica da Sociedade Recreativa de Ferreira do Alentejo. "Só o facto de eles estarem hospedados aqui, de irem aos restaurantes, de contactarem com as pessoas e de estarem a ensaiar com a banda já é uma experiência riquíssima", conta a diretora artística, nitidamente satisfeita..Antes disso, nessa noite, na Praça Comendador Infante Passanha, o palco vai ser pequeno para todos os artistas: primeiro, as Adufeiras de Monsanto, depois o quinteto de Celina da Piedade que tem como convidados os dois grupos femininos de cante alentejano de Ferreira, o Alma Nova e o Rosas de Março, e por fim um outro convidado especial, Tim, o vocalista dos Xutos & Pontapés, que é também ele ferreirense. "Vai ser um acontecimento", adivinha Helena Inverno: "Será a primeira vez que os dois grupos femininos, que são quase rivais, vão atuar juntos."."Mesmo triste, cantava".Estava um calor abrasador na terça-feira à tarde em Ferreira do Alentejo. Na Casa do Povo, antes das cantadeiras, há aula de dança infantil. Os miúdos mexem-se energicamente ao som de uma kizomba, enquanto começam a chegar as cantoras que integram os grupos Alma Nova e Rosas de Março, os dois grupos femininos de cante alentejano da terra. O mais antigo é o Rosas de Março, que se chama assim porque foi criado no dia 26 de março de 2001. "Os primeiros ensaios foram na minha casa", recorda Teresa Guerreiro, de 72 anos. "Começou com uma brincadeira, mas depois uma convidou outra, e lá se juntaram 22 elementos. A nossa atuação foi na praça, logo no 25 de abril." De então para cá, nunca mais pararam. Vão a encontros de cante, participam em festivais e até fazem casamentos..Sobem ao palco vestidas a preceito, como camponesas, com lenço e chapéu na cabeça, botas de camurça, cestas nos braços. "Quando vamos atuar fora tiram-nos tantas fotografias, tantas! Onde quer que a gente vá fica tudo encantado", conta Francisca Rosa Rocha, de 67 anos. Toda a gente menos as moças novas. "É muito difícil convencer as moças a virem cantar, acho que elas não gostam da farda", diz Teresa, meio a sério, meio a brincar. "Ninguém quer pôr o chapéu." A mais nova das Rosas de Março é Maria de Fátima Casadinho, de 64 anos. Os que as "moças novas" não sabem é que para além de cantar e fazer deliciosas lasquinhas de bacalhau frito, estas Rosas divertem-se à grande nos ensaios todas as semanas: "Juntamo-nos e é um convívio, para aliviar a cabeça um bocadinho", explica Maria de Fátima. "Falamos, brincamos e cantamos."."Enquanto estamos para aqui cantando as mágoas ficam um bocadinho mais aliviadas", concorda Mariana Paiva, de 67 anos, o "ponto" do grupo Alma Nova. Este segundo grupo feminino foi criado "faz, no dia 18 de junho, 15 anos" e também começou por uma brincadeira de um grupo de amigas. "Trabalhei no campo e cantava enquanto trabalhava", recorda Mariana. "Fiz de tudo. Fiz monda, fiz ceifa, apanhei tomate, apanhei azeitona, andei nos campos de arroz, fiz todos os trabalhos do campo, sempre cantando. Mesmo triste, cantava." "Se ela fez tudo, fará eu", vem dizer Joaquina Fralda, que já tem 77 anos. "Eram outros tempos", suspira. "Quando era nova, antigamente, fazia ponto, fazia alto, fazia coro. Agora sou coro. Já não consigo mais, faço o baixo.".Do campo para o palco, estas alentejanas trazem as suas vozes para o cante alentejano e garantem que não ficam atrás dos homens. "O cante dos homens é diferente, é uma coisa mais forte", explica Mariana. Mesmo entre os dois grupos de mulheres há diferenças: "Elas cantam de uma maneira, nós de outra. Cada grupo tem a sua maneira. E se for fora daqui e ouvir outros grupos a diferença ainda é maior, nunca é igual." Sobre a alegada rivalidade entre os dois grupos é que não há quem fale..Daí a pouco chega Celina da Piedade para ensaiar as modas escolhidas de cada um dos grupos, umas com acordeão, outras sem, umas com violino, outras com percussão. "Eu acho que o que eu costumo fazer encaixa-se muito bem no programa, porque a ideia é fazer um espetáculo com estes convidados, que são as pessoas que fazem parte da comunidade e que mantêm o cante vivo, e que, ainda por cima, neste caso são mulheres", explica Celina. "Primeiro temos de criar uma ligação, essa é a parte deliciosa disto tudo, quando isto terminar vamos ser todas amigas, normalmente o que acontece é que volto a colaborar com os grupos, é o início de uma relação profissional.".Todas juntas, as vozes destas mulheres enchem a Casa do Povo de Ferreira do Alentejo. Cantam, entre outros, os temas Ceifeira Alentejana e É Tão Grande o Alentejo, Linda Roseira e Pera Verde. E no final, vão juntar-se todos (todos, isto é: adufeiras, quinteto de Celina da Piedade, os dois grupos corais e Tim) para a Macela. "Não sei se vamos caber todos no palco! Mas sei que vai ser uma festa.".Festival Giacometti.Vários espaços em Ferreira do Alentejo De quinta-feira (30 de maio) a domingo (2 de junho) Entrada livre Consulte a programação completa no site oficial do festival