É justo dizer, até porque no livro destaca Santo António e Pedro Hispano, que há quase uma coincidência entre intelectuais da Idade Média e homens do clero? Isso é eminentemente verdade para o princípio da cronologia que eu abordo, que remete para o início da fundação, e isso coloca-nos imediatamente no século XII. E, sim, pode dizer-se que nos séculos XII e XIII o clero e a intelectualidade se confundem, mas que a partir do século XIV há uma espécie de deslizamento gradual para uma cultura de corte, que acontece aqui, como acontece em outros espaços europeus. E, nesse sentido, estamos relativamente a par daquilo que é feito. Seguimos o modelo de corte, que é o da corte senhorial italiana, que depois é disseminado pela Europa e que chega, num momento até relativamente precoce, a Portugal através de uma dinastia em particular, que é a dinastia de Avis..Voltando a Santo António e Pedro Hispano, estamos a falar aqui de dois portugueses que, no fundo, fazem uma carreira internacional. O protagonismo que eles têm na nossa história tem também muito que ver com esse protagonismo que tiveram lá fora? Sim. Ao contrário do que por vezes acaba por ser um lugar-comum, a Idade Média era uma época de grande circulação. Tudo circulava. Os reis circulavam quando se dirigiam, com as suas cortes, para se instalarem em determinados sítios, e os mercadores, os feirantes, estavam em deslocação permanente. Os grandes exércitos deslocavam-se para fazer os seus confrontos, com as hostes atrás. E também os intelectuais. Aliás, há um fenómeno típico da intelectualidade do período - e aqui de todo o período - que é a ideia da peregrinação académica. Isto é, havia determinados pontos, e esses pontos são as universidades nascentes, que fazem que esses homens convirjam em determinados espaços, nomeadamente Paris e Bolonha, no primeiro momento, e, depois, rapidamente, em novas universidades, noutros pontos. Isso leva a que quem queira adquirir determinados conhecimentos, nomeadamente de teologia, direito, artes e medicina, se tenha de deslocar às universidades para aí, tal como acontece hoje, ter o reconhecimento das competências académicas que lhes permitem, depois, ter determinadas funções..Pedro Hispano ainda mais do que Santo António? É mais verdade para Pedro Hispano, nesse sentido. Que é alguém que, inclusivamente, esteve ligado a determinadas universidades, por exemplo como docente de Medicina na Universidade de Siena, provavelmente no momento da fundação desse estudo geral, como também se chamava à universidade no tempo. E, foi também aluno em Paris, ao que cremos, graças a uma bula que ele próprio emite, em que dá conta dessa ligação. E, no caso de Santo António, ele tem um papel muito fundador dentro da ordem franciscana, porque São Francisco é um fervoroso e incondicional detrator dos livros e da intelectualidade, considerando que os livros são um afastamento daquilo que deve ser o caminho para a espiritualidade, mas, com Santo António, que é o primeiro mestre franciscano, há também uma noção de que é preciso pregar. Abre a porta para um ensino baseado nos livros, nomeadamente no conhecimento do Antigo Testamento e do Novo Testamento, a Bíblia, e, portanto, Santo António faz todo esse percurso. Um percurso que é, muitas vezes, ligado a estâncias nestas cidades universitárias, inclusivamente ensinando nas franjas das universidades ou no seu interior. Porque rapidamente, na história das universidades medievais, os franciscanos e os dominicanos tornaram-se os responsáveis pela cátedra de Teologia. Portanto, isso mostra como há uma alteração de valores dentro da lógica franciscana, que permite o caminho para o conhecimento que, sem Santo António, provavelmente ou tardaria ou poderia não acontecer. É muito conhecido o lado popular do santo, mas é menos conhecido este lado de doutor, de mestre, de alguém que faz e organiza um conjunto sistemático de sermões que funcionam como um manual de pregação que é dado aos pregadores com tópicos para irem junto das populações e fazerem a conversão dos hereges..A eleição de Pedro Hispano para Papa como João XXI significa que tinha de ter uma influência intelectual tremenda entre os seus pares? Pedro Hispano não se torna Papa, João XXI, porque é intelectual, mas tem de ser um intelectual para ser Papa. É uma condição que na altura era um quase requisito. Depois, há todo um percurso que é, digamos, político-religioso, em que ele começa a movimentar-se relativamente bem dentro daquilo que é a cúria romana e começa a estabelecer relações muito próximas com papas em funções ou com pessoas muito importantes dentro do alto clero, que depois se tornaram papas, e isso leva a que, a determinado momento, seja nomeado cardeal. E, ao ser nomeado cardeal, está imediatamente em condições de ser eleito Papa. Porque a eleição faz-se a partir do colégio de cardeais, e nessa altura o colégio de cardeais é muito circunscrito, estamos a falar de poucas pessoas..No momento em que é eleito Papa a ligação a Portugal já é muito ténue? Nem por isso. O que acontece, muitas vezes, é que as ligações a Portugal estão, do ponto de vista institucional, ativas - ele, por exemplo, é durante algum tempo arcebispo de Braga não residente. Ele no fundo tem uma função, tem um título honorífico, tem um lugar, mas não está fisicamente no local. Ele passa muito do seu tempo junto da cúria romana e é aí que ele faz o percurso eclesiástico. Curiosamente, quando é chamado a ser Papa ele tem uma intervenção numa questão com Afonso III, porque há uma grande dissensão entre o rei e o clero do reino e ele é chamado a pronunciar-se nessa matéria. Ele tinha sido um apoiante próximo de Afonso III, mas que dele se afastou. Foi-se cavando um fosso em relação ao rei. É curiosa esta referência ao Afonso III, que pela sua experiência em França, e mesmo o próprio D. Dinis, seu filho, são, provavelmente, os dois reis da primeira dinastia que mais associamos a intelectuais. Verdade. Hesitei muito quando se deu o momento de fazer a escolha dos intelectuais, no caso dos cinco biografados que constituem a segunda parte da obra - sendo que a primeira serve, no fundo, para traçar um quadro panorâmico do mundo medieval, com afunilamento depois para o mundo português. A minha ideia foi escolher pessoas que fossem representativas de determinadas correntes, de uma determinada feição intelectual. E uma das feições que os intelectuais assumem na época tem que ver com a ideia do rei sábio. A primeira manifestação que nós temos do rei sábio em Portugal necessariamente foi com D. Dinis. Ele é neto de um grande sábio, do imperador Afonso X de Castela, que é um intelectual famosíssimo, com um enorme impacto, especialmente na Península Ibérica. Portanto, ele herda, para já do pai, os interesses, e do avô a ideia do espírito intelectual. Ele escreve trovas e não são necessariamente trovas do ponto de vista do valor intelectual insignificantes. É um bom trovador. Não é um excecional trovador, mas é um bom trovador. Portanto, essa opção colocou-se, mas a minha opção acabou por cair em D. Duarte. Chegamos então à dinastia de Avis. Já que está a fal.r de D. Duarte, a mãe, Filipa de Lencastre, é importante também, não só na educação do filho, mas na época. Sim. A entrada em cena da dinastia de Avis tem muitos méritos, para aquilo que foi depois a história portuguesa, e tem-los também do ponto de vista cultural. D. João I, fundador da dinastia, casa-se com Filipa de Lencastre. D. Filipa é uma inglesa que traz consigo hábitos, disciplina, estudo e conhecimento de autores e parece ter uma intervenção direta na educação dos filhos, daqueles que são descritos como a Ínclita Geração, formada por vários filhos e filhas, dos quais se destacam como grandes protagonistas políticos, justamente, D. Duarte, que acaba por ser o rei, o infante D. Henrique, famoso pelo processo da expansão e dos Descobrimentos, e o infante D. Pedro, que é também um extraordinário intelectual, tradutor, conhecedor de latim, homem viajado, conhecedor do mundo..Continuando na dinastia de Avis, Fernão Lopes, também é uma das suas escolhas, nem clérigo nem rei. O que é que o faz especial? Fernão Lopes, do ponto de vista das crónicas, não estabelece um novo género. As crónicas eram um género muito praticado antes e na vizinha Espanha, onde ele inclusivamente vai beber, e de uma forma muito aberta e honesta. Do ponto de vista intelectual de um historiador, assume muitas das suas fontes como sendo provenientes da Cronística espanhola, para construir o seu próprio relato. Ele é guarda-mor da Torre do Tombo, o que quer dizer que era responsável pelo arquivo régio, mas é-lhe dada também a função de cronista do reino. Essa função é-lhe dada por D. Duarte, e ele procura, na verdade, estabelecer a legitimação de um rei, que é D. João I, seu pai, que é um bastardo régio, e procura enxertar a ideia de que este é um rei legítimo ligando-o à antiga dinastia Afonsina, procurando estabelecer um percurso inquebrável. Na verdade, o que acontece é que D. João I é filho de D. Pedro, e, portanto, quando começa a escrever, a primeira crónica que redige é a crónica de D. Pedro, precisamente para assinalar que D. João I é um filho natural, embora não seja um filho oficial, e, a partir daí, o enxertar na tal tradição anterior..Então o brilhantismo intelectual de Fernão Lopes é sobretudo conseguir construir uma narrativa política justificativa... Por um lado. Mas é isto que todos os cronistas fazem e é isso que é pedido a todos os cronistas. Nisso ele não se distingue. A verdadeira natureza do génio, podemos falar na natureza do génio de Fernão Lopes, vem de dois grandes fatores que são muito interessantes. Para já, no momento em que o português ainda atravessava uma grande instabilidade linguística, ele acaba por contribuir para fixar muito da língua. É possível ler Fernão Lopes, hoje, e percebê-lo, apesar de algumas palavras terem uma semântica diferente; mas é possível perceber Fernão Lopes. Ele ajuda a estabilizar a língua. Depois, tem uma coisa verdadeiramente singular. Numa tradição de cronistas que valorizam as figuras políticas, os reis, ele traz para o centro da ação, para o centro da cena, uma entidade coletiva. É a primeira pessoa a trazer o povo para o centro da cena. E o povo é uma entidade, em Fernão Lopes, verdadeiramente transformadora. É o povo que apoia o Mestre de Avis, é o povo que garante a aclamação do Mestre de Avis em cortes. É o povo que dá todo o apoio a esta nova dinastia. É aí que a dinastia vai assentar os seus pilares..Para terminarmos, das cinco figuras que identificou como os grandes intelectuais portugueses, a última entra já na época dos Descobrimentos, que é Gil Vicente. Como explica que Gil Vicente, um homem que escreveu no século XVI, surja neste livro como pertencente à Idade Média? A ideia é muito simples. Do ponto de vista da cronologia, podemos dizer que Gil Vivente é um homem do século XVI, na medida em que ele tem o seu florescimento intelectual nesse século, é aí que ele cria as suas peças. Mas, do ponto de vista daquilo que são a sua escala de valores e a sua mundividência, o que temos em Gil Vicente é um olhar que insiste em voltar-se para o passado, para uma tradição anterior, a do teatro medieval, aquela que se baseava nos momos medievais, nas figuras-tipo estereotipadas, que serviam para identificar determinados estratos socioeconómicos, determinadas funções, e para as ridicularizar, muitas vezes, a partir daí. Tem um lado de sátira, que é mais evidente nas suas farsas e nas suas comédias. Mas, depois, tem também, ao lado dessas peças mais jocosas, as suas peças devocionais, que são peças que têm um valor religioso muito grande. Que são utilizadas e são criadas para eventos específicos, nomeadamente para a celebração de festividades religiosas: Natal, Páscoa, etc. E, portanto, a sua visão é uma visão teocêntrica do mundo, que é a visão medieval. A visão de Deus no centro do mundo, em que a religiosidade está embebida em toda a vida e em todo o tecido social, e não as ideias (que estão nesta altura a ganhar força, importadas, mais uma vez, das áreas italianas), do renascimento e do humanismo literário, que não são o caminho tomado por Gil Vicente. Serão esses os caminhos de Luís de Camões, por exemplo.