Teresa Rita Lopes é uma das maiores conhecedoras da obra do poeta português. Doutorou-se em Paris com uma tese sobre Fernando Pessoa e grande parte da sua vida de investigação tem-lhe sido dedicada. Num artigo para o DN, a investigadora refuta com vários argumentos as acusações de que o poeta era racista e esclavagista, no seguimento de uma polémica que começou com a possibilidade de se dar o nome do poeta a um programa de intercâmbio académico entre os países da CPLP. Escolha que não reuniu o consenso de todos, designadamente em Angola. O jornal cabo-verdiano Expresso das Ilhas destacou a notícia das palavras de Luzia Moniz, proferidas na Assembleia da República em Lisboa, e questionou a posição das autoridades em Cabo Verde. Estava lançada uma polémica... sem razão de ser como esclarece Teresa Rita Lopes no artigo que se segue.."Fernando Pessoa desentendido e caluniado. 'Branqueá-lo?' Não! Entendê-lo!"."Luzia Moniz, presidente da Plataforma para o desenvolvimento da mulher africana, de Angola, podia ter-se informado melhor antes de ir para a Assembleia da República citar um livro amplamente desclassificado (para isso contribuí com vários artigos), a tal biografia de Pessoa, "quase autobiografia", assim lhe chamou Cavalcanti Filho quando eficientemente a promoveu em Lisboa..Cavalcanti é um rico coleccionador: de objectos, papéis, móveis pessoanos e frases soltas, desligadas do seu contexto. Para fazer esse livro contratou uma série de "colaboradores", segundo sua própria informação, que também cuidaram da projecção da obra (um deles dirigiu-se-me por e-mail várias vezes sob o pseudónimo de Álvaro da Horta)..Não cabe aqui reproduzir a série de inverdades e toscos dislates coligidos a esmo por essa equipa de coleccionadores, que oportunamente denunciei. (As entidades oficiais que soi-disant administram a nossa cultura são, em certa medida, responsáveis por este sério conflito na Assembleia da República: foram perfeitamente indiferentes ao delito de lesa-cultura - por mim repetidamente denunciado nos jornais - que representou serem oferecidos às bibliotecas das escolas deste país, pelo seu autor, centenas de exemplares deste livro, editado em 2011 no Brasil e aqui, em 2012. Com Pessoa no programa, a juventude deste país tem sido assim oficialmente desinformada, para não usar expressão mais cruamente exacta.).Fui à procura e constatei que as "provas" de que Pessoa é um "escravocrata racista" foram colhidas neste livro nas páginas 53-54 (edição da Porto Editora), à mistura com outras informações "contraditórias" - assim referidas, com espanto, pelo autor do texto - em que o jovem Pessoa, ainda em Durban, condena a escravatura perpetrada pelos ingleses, e, noutro poema igualmente em inglês, o colonialista inglês Joseph Chamberlain, ambos assinados por uma das primeiras personalidades literárias pessoanas, Alexander Search. E é reproduzida, na página seguinte, um fac-símile da apreciação de Pessoa a Ghandi, que visitou Durban em 13.1.1897, já Pessoa aí residia, para protestar contra o colonialismo inglês: "É a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo." Pessoa já então se revelava como sempre foi: um militante humanista. Pena que essa senhora presidente tenha respigado do texto em que se baseia apenas as passagens que lhe permitem acusar Pessoa, ignorando as que desmentem essa acusação..Durante toda a vida, Pessoa foi declaradamente anticolonialista: escreveu mesmo, em vários textos, que devíamos abandonar as nossas colónias..Está provada (já tenho apresentado para isso numerosos documentos) a porfiada militância de Pessoa pelo que hoje chamamos direitos humanos: contra as perseguições e prisões por delitos homossexuais e pela plena liberdade de ideias, inclusive religiosas. Em tempos salazaristas, foi vítima da censura. Além disso, contrariamente à sua geração, mesmo aos seus parceiros intelectuais influenciados pelo futurismo, Pessoa foi sempre fervorosamente contra a guerra, toda e qualquer..O problema central que, mesmo alguns dos que escrevem sobre Pessoa não entenderam ainda, é que a obra de Pessoa é de natureza dramática, o tal "drama em gente" por ele assim chamado: por isso cada personagem por ele inventada, quer lhe chame "heterónimo" ou "personalidade literária", tem a sua verdade, que exprime em "entreacção" (expressão de Pessoa) com as das outras personagens da obra que foi escrevendo ao longo da vida. Disse ele que "cada personagem constitui um drama" - questão fulcral a que nem os numerosos pessoanos de ocasião atendem: escrevem que "Pessoa disse" e repetem o que disse uma das suas personagens, sem perceberem que é diferente do que ele dizia e, muitas vezes, em "contradição" - essa "contradição" notada pelo autor das passagens citadas a favor da escravatura, sem perceber que não é Pessoa que assim se exprime mas uma personagem sua, António Mora, mesmo quando Pessoa não chegou a manifestar essa atribuição..Os 47 anos de vida de Pessoa não lhe chegaram para encenar as falas das diferentes personagens que habitaram o palco desse "drama", só esporadicamente o fez - e já publiquei em livro esses diálogos em que ele próprio encena verdades contraditórias. (Ciente dessa necessária encenação já a ela me dediquei em dois livros: um, bilingue, em 1985, F. Pessoa - Le théâtre de l"être, e outro, em português, Véspera de Partida.).Tem origem no mesmo desentendimento esse "escândalo" recente com a "censura" de passagens da Ode Triunfal do heterónimo Álvaro de Campos: já um biógrafo de Pessoa, seguramente a partir dessa passagem obscena, referiu a sua pedofilia... Também esse Campos é, neste poema, uma provocante personagem, que, na esteira dos futuristas, então na berra, quer ir ainda mais além do que eles e arrisca em poesia obscenidades nunca antes ousadas... Pessoa na sua própria pessoa era uma tímida e educada criatura, delicadíssimo, que não só não pronunciava grosserias mas detestava ouvi-las dos companheiros de café (fala disso num diário de 1913)..A passagem de Ultimatum referida pelos actuais acusadores do "escravocrata racista" tem a mesma justificação: é da autoria de um Campos que desafiava os futuristas e o seu inspirador Nietzsche, embora mantendo a sua presença própria - e sempre em oposição aos princípios "crististas"que nunca se esquecia de combater..A respeito do tal António Mora, a quem Pessoa atribuiu declarações sobre a escravatura, mesmo quando não o explicitou, impõem-se os esclarecimentos que vou tentar resumir..O caso fia mais fino e exigiria largo espaço para ser tratado, apenas o posso esboçar..Pessoa, baptizado na Igreja dos Mártires e confirmado como católico em Durban, no colégio de freiras irlandesas em que fez a instrução primária, "divorciou-se" do catolicismo quando regressou a Portugal, em 1905. Saber-se descendente de judeus (um tetravô, Sancho Pessoa ia sendo queimado pela Inquisição, que acabou por apenas lhe penhorar os bens) e a convivência com a família judia de Tavira, de maçons e republicanos militantes, deve ter ajudado. Empreendeu então até ao fim da vida uma "cruzada" contra a que chamava "Igreja de Roma". Por isso - embora não só por isso - inventou, em 1914, os heterónimos neopagãos, os poetas Alberto Caeiro e Ricardo Reis e o quase-heterónimo António Mora, filósofo, sociólogo e teórico do neopaganismo em prosa - empenhados todos em contrariar a civilização "cristista", por eles assim chamada. O "humanitarismo", o "igualitarismo" seriam herança do "cristismo", por isso princípios recusados. Os critérios de António Mora não são naturalmente os do homem de hoje mas os do pagão helénico - o que explica que tenha da escravatura uma visão bem diferente da actual..A principal militância de Pessoa foi pela pátria-língua-portuguesa - esse o tal Quinto Império de que por aí se fala à toa. Pena que alguns cidadãos dessa pátria-língua com que tanto sonhou estejam, por ignorância, a prejudicar a sua realidade - presente e futura.".Escritora e investigadora pessoana. Escreve de acordo com a antiga ortografia