Federico Fellini é um daqueles cineastas cujo universo se distingue por uma musicalidade muito própria. Nos seus filmes, as peças musicais não são um mero pano de fundo, mas sim elementos fundamentais da ação, acompanhando emoções, exponenciando dramas ou acrescentando elementos de ironia e humor. É essa, afinal, a matéria de um concerto muito especial: chama-se Um Século de Federico Fellini e está marcado para este domingo, dia 6, em Lisboa (Cinema São Jorge, 11.00); é também o evento que serve de encerramento à retrospetiva da obra de Fellini que tem estado a decorrer na Cinemateca..Como o título indica, o concerto, promovido pelo Instituto Italiano de Cultura, tem a ver com as celebrações do centenário do cineasta, assinalado ao longo do ano corrente. Sob a direção do maestro Rui Pinheiro, a Orquestra Metropolitana de Lisboa apresenta como convidado o pianista Benedetto Lupo; serão interpretados diversos temas de Nino Rota, compositor indissociável do universo felliniano, tendo com ele colaborado ao longo de um quarto de século, envolvendo mais de uma dezena de longas-metragens, de O Sheik Branco (1952) a Ensaio de Orquestra (1978)..Pode dizer-se que as sensibilidades tão particulares do compositor e do cineasta encontraram o equilíbrio perfeito através dos seus singulares contrastes. Nascido a 20 de janeiro de 1920, em Rimini, na região da Emilia-Romagna, no norte de Itália, Fellini aprendeu a sua relação com as imagens, não apenas nos filmes, mas como ele próprio recordava através de dois universos expressivos que, entre realidade e sonho, o marcaram desde criança: o circo e a banda desenhada. Por seu lado, Rota, natural de Milão, foi um verdadeiro menino-prodígio: compôs o seu primeiro oratório aos 11 anos, deixando um legado imenso que, muito para lá do cinema (incluindo colaborações com Luchino Visconti, Mario Monicelli e Francis Ford Coppola), inclui concertos, obras corais e óperas..Quando escutamos as bandas sonoras de títulos tão lendários como La Dolce Vita (1960) ou Oito e Meio (1963), compreendemos que tais diferenças se conjugaram de forma exemplar, num permanente jogo de contrastes. Dir-se-ia que o desencanto romanesco da visão de Fellini encontrou nas partituras de Rota o fôlego e as nuances de uma verdadeira sensibilidade clássica. Daí que essas composições possuam uma energia sofisticada que lhes confere a autonomia e a identidade de verdadeiras peças de concerto (como acontecerá agora)..Nino Rota faleceu em 1979, contava 67 anos. Quer isto dizer que, depois, Fellini ainda dirigiu cinco longas-metragens - com a colaboração musical de Luis Bacalov (A Cidade das Mulheres, 1980), Gianfranco Plenizio (O Navio, 1983) e Nicola Piovani (Ginger e Fred, Entrevista e A Voz da Lua, respetivamente de 1986, 1987 e 1990) -, vindo a falecer a 31 de outubro de 1993. E se é verdade que cada um desses compositores se distingue por inequívocos talentos (Bacalov e Piovani já foram distinguidos, cada um deles, com um Óscar), não é menos verdade que o seu trabalho não é estranho à herança melódica de Rota..Em termos cinéfilos, pode dizer-se que Nino Rota está para a obra de Fellini como Bernard Herrmann e Howard Shore estão, respetivamente, para as filmografias de Alfred Hitchcock e David Cronenberg - a música existe, de uma só vez, como eco e motor das linhas dramáticas da narrativa. Três exemplos para ver e ouvir: As Noites de Cabíria (1957) .YouTubeyoutubeHW8f6V0beH8.É um dos grandes papéis de Giulietta Masina sob a direção do marido (três anos depois de A Estrada, oito anos antes de Julieta dos Espíritos). O retrato de uma prostituta das ruas de Roma surge comentado pelo romantismo amargo da música de Nino Rota. Roma (1972) .YouTubeyoutubebzABCeTdORY.O retrato de Roma por Fellini possui a dimensão de uma reportagem que se vai transfigurando em espetáculo contaminado pelo sonho, como se a cidade vivesse numa permanente recriação da sua própria mitologia - eis a música de Rota interpretada pela Banda Città di Rimini, sob a direção de Jader Abbondanza. Casanova (1976) .YouTubeyoutubeLOkiSgBakz4.Porventura o mais desconhecido título da filmografia felliniana, integra uma das bandas sonoras mais enigmáticas e sedutoras compostas por Rota - a história e o imaginário da figura de Giacomo Casanova encontraram uma encarnação exemplar no ator canadiano Donald Sutherland.