A Doce Vida (1969), talvez o título mais popular de Fellini, é a primeira obra a retomar o lugar no grande ecrã a partir desta quinta-feira. Seguem-se A Estrada (1954), Fellini Oito e Meio (1963), Julieta dos Espíritos (1965), Os Inúteis (1953) e ainda o tão esquecido A Voz da Lua (1990), essa derradeira viagem ao interior da fábula felliniana. São seis filmes, em reposição nas salas até setembro, que celebram o legado do mestre italiano no ano do seu centenário e permitem aceder a uma narrativa pessoal..Gianfranco Angelucci, atualmente o maior especialista em Federico Fellini, que foi seu colaborador - inclusive no filme em que este acena um adeus ao cinema, Entrevista [1987] -, contou ao DN as verdades íntimas que se escondem na obra do cineasta, do amor por Giulietta Masina ao ódio a Silvio Berlusconi, passando pela arte, a psicologia analítica e os sonhos..Comecemos por Os Inúteis, um dos primeiros filmes de Fellini e aquele em que retrata uma certa vivência da cidade natal, Rimini. Como é que ele se relacionava com esse lugar ao qual regressou algumas vezes através dos filmes?.A relação do Federico com a sua cidade natal foi uma relação de amor muito complicada, uma espécie de equívoco. Rimini não lhe reconheceu a grandiosidade, criou uma resistência à imagem dele e, como efeito de reação, ele retribuiu essa resistência. Mas Os Inúteis é, de facto, muito autobiográfico, basta pensar na personagem que vira as costas à cidade para olhar para o futuro. Ele vai para Roma, que acabará por ser uma autêntica cidade materna, feminina - aliás, a mãe de Fellini nasceu lá -, permitindo-lhe crescer profissionalmente. É como se tivesse mudado de ventre materno: Roma alimentou-lhe a imaginação. E este alto voo foi a causa da tal resistência das pessoas da província, que ficaram "adormecidas" naquela vida, uma ideia que se vê ilustrada no plano-sequência final... Foi só nesse momento do filme que Fellini deu a voz ao protagonista, Moraldo. Para além disso, Os Inúteis foi filmado seis anos depois de ele ter saído de Rimini, portanto, já é uma imagem de nostalgia, um lugar que ficou no passado. Por essa altura, a cidade não era mais do que uma fonte energética para dar forma aos seus fantasmas..Por sua vez, os títulos mais populares, A Doce Vida e Oito e Meio, são já de uma fase em que Fellini começou a entrar numa escala mais onírica. Em que medida é que o termo "felliniano" traduz essa tão badalada dimensão dos sonhos? Essa associação que se criou vem da primeira definição inglesa, felliniesque, cujo conceito dá conta de uma exuberância criativa barroca feita de fantasmas e sonhos. Mas esta definição torna-se convencional, é uma etiqueta que não contém a complexidade dele. O onirismo de Fellini é uma coisa diferente, é uma linguagem muito específica. Ele foi o único realizador da sua altura a revolucionar a linguagem cinematográfica, fazendo tábua rasa da intriga dos filmes para criar sequências associadas - que é o que acontece quando sonhamos. E esta reestruturação da linguagem é uma maneira de dizer que sonho e cinema convivem, têm a mesma natureza, são duas realidades que se complementam para chegar a uma verdade última, que é a do inconsciente. Ou seja, a nossa vida acontece debaixo da luz do sol, mas também reverbera a luz da lua... A relação dele com o onirismo ficou mais evidenciada em Oito e Meio, a partir de dois elementos. Por um lado, Fellini projeta-se no protagonista, o seu alter ego - isto é algo que já tinha acontecido na literatura, mas não no cinema -, por outro, ele coloca o sonho como matéria de conto na pesquisa criativa. Nesse sentido, foi muito inspirado pela escola de pensamento e psicologia analítica de Carl Jung. A partir daí percebe que nada pode ser contado de forma convencional, o artista tem de se contar a si próprio, para não trair a sua criatividade nem o seu público. Fellini ajudou também o cinema a transitar do mundo do entretenimento e aproximar-se das artes como a pintura, a escultura, a arquitetura e sobretudo a literatura..Qual a importância que a faceta dele de desenhador tem no imaginário cinematográfico? Fellini é um realizador visual. Havia uma piada que ele costumava dizer: "Quando acabar a minha obra vou tornar-me um maddonaro" (alguém que desenha a giz no chão as figuras de Madonas das igrejas). A sua conceção dos filmes era sempre visual. O processo criativo começava com um esboço da personagem num papel, mas, ao contrário do que hoje se pensa com muita facilidade, os seus desenhos não eram caricaturas, eram sim "diagnósticos", isto é, desenhos que continham as alterações somáticas de uma alma representada. Como se a personagem fosse uma revelação do que o Fellini viu na alma dela... Se se consultar O Livro dos Sonhos, onde estão todos os desenhos dele, percebe-se o amadurecimento da sua obra pictórica, sempre na linha do expressionismo, em que passa da utilização do lápis e da caneta, no princípio, para a aguarela e tinta. No final da vida tornou-se mesmo pintor, e a uma das suas amantes chegou a dar uma coleção de 29 pinturas! São quadros de um erotismo exuberante, que falam do prazer que ela lhe tinha dado e que mostram já um verdadeiro pintor. Um dia também lhe pedi para usar uma das suas pinturas como cartaz de um festival de cinema de Salsomaggiore. Então ele pintou a cauda do pavão que aparece em Amarcord [1973]. É uma pintura famosa..E os palhaços? Fellini realizou um filme em homenagem a eles [Os Clowns, 1970]... Os clowns, como disse numa entrevista, foram "uma anunciação feita a Federico", quando em criança entrou na "barriga" do circo e viu os palhaços pela primeira vez. Ele é uma espécie de Pinóquio que se encontra com as outras marionetas e percebe que aquela é a sua verdadeira essência... Digamos que o clown é uma criança, um bobo, o arquétipo do ator, e representa a capacidade de fugir do controlo da sociedade. Fellini foi buscar criatividade também a esse lado infantil..Nestas reposições, há dois filmes com a mulher, Giulietta Masina: A Estrada e Julieta dos Espíritos. Como é que a história de amor de Fellini e Masina se cruza com a filmografia dele? Para falar da relação deles eram precisas as páginas todas de um jornal... Mas para perceber essa relação é fundamental ver A Estrada, que é considerado por ele, de maneira simbólica, o seu primeiro filme. Estreou-se na altura do neorrealismo e, pelo facto de fugir a essa corrente, confundiu as pessoas... Era já outra coisa que não o cinema socialmente comprometido; era uma favola truce (fábula negra, violenta). Desde logo, estrear um filme com personagens inventadas era contra a essência do cinema italiano naquela época. A própria Giulietta disse que as três personagens são três representações [o homem forte, a ingénua e o bobo] do Fellini. Já a história de uma rapariga pobre que foi vendida pela sua mãe a um homem da rua, violento, Zampanò [Anthony Quinn] associa-se à história de Masina, que aos 3 anos foi dada para adoção a uma tia. É certo que não viveu num cenário de miséria, porque a tia era burguesa, mas foi uma ferida que nunca sarou, e a atroz separação que teve da família está refletida neste filme. Um filme no qual se inscreve a relação deles de 50 anos, apesar das traições. Veja-se que nos obituários do Fellini se disse que ele celebrou os 50 anos de casamento com a sua própria morte [morreu no dia seguinte ao aniversário]. Como se quisesse mostrar que, apesar das referidas traições, aquela relação nunca poderia ser posta em causa..No derradeiro filme, A Voz da Lua, há uma enorme tristeza em relação à modernidade. Pode dizer-se que foi uma espécie de segundo filme-testamento, depois de Entrevista? .Entrevista, tal como Ginger e Fred [1986], mais do que um filme-testamento, é um adeus. O primeiro é um adeus ao cinema, o segundo é um adeus ao casal Giulietta e Federico. Por sua vez, A Voz da Lua foi um filme absolutamente incompreendido, a começar pelos dois protagonistas, os lunáticos. Estas são figuras que sempre fizeram parte do seu cinema, e através do olhar delas Fellini fala aqui do mundo enlouquecido em que já não se revia, uma sociedade moderna que não permite a harmonia... Ele foi o primeiro a ver em [Roberto] Benigni a imagem de um Pinóquio. E o filme é um pedido ao público para que voltasse a ouvir a voz do inconsciente, essa voz primordial que vem do fundo do poço e permite resistir à tempestade do mundo das aparências... Uma curiosidade interessante é a mulher-comboio que vemos no filme, a evocação de outra amante cuja memória lhe deu, mais uma vez, energia para terminar uma jornada. Neste caso, já não é um adeus, mas um testemunho que ele dá do seu cinema, um não baixar os braços perante a estupidez do mundo e de Berlusconi. A grande batalha de Fellini contra Berlusconi vem também do facto de este passar os filmes dele na televisão cortando-os com publicidade. Fellini lançou-lhe um processo, mas perdeu. Este episódio serviu apenas para dar sinais do perigo populista de Berlusconi..O que é que, no trato pessoal, recorda de Federico Fellini? .O primeiro encontro que tive com Fellini foi enquanto estudante. Estava a fazer uma tese sobre ele, no âmbito de história da arte... Eu não era do mundo do cinema. E, desde o primeiro contacto, o comportamento do Federico foi fraternal, não no sentido paternalista mas de irmandade. Depois de uma conversa, como era hábito nele, convidou-me para almoçar e aí perguntei-lhe, um pouco nesciamente, porque é que em 1968, quando todo mundo estava envolvido num movimento político tão forte, ele decidiu voltar-se para uma obra do século I d.C. como Satyricon. Fellini respondeu, descontraído: "eu faço aquilo em que me saio bem. Se todas as pessoas fizessem aquilo em que se saem bem, os problemas do mundo estavam resolvidos." Foi esse o seu grande ensinamento para mim.