O Parlamento português ainda não legislou sobre a influência das redes sociais na política, ao contrário de outros países europeus, como a Alemanha, a França ou a Espanha. Mas decidam o que decidirem os deputados, as regras podem não chegar a ser cumpridas. Esse é um dos mais surpreendentes resultados de uma visita dos responsáveis do Facebook a São Bento, na última semana..Em várias reuniões com os partidos políticos e organizações públicas, o Facebook pretendia mostrar o seu "esforço de transparência" - sobretudo a organização, e publicitação, da biblioteca de anúncios políticos, bem como os critérios para classificar um anúncio desses. Mas a rede social foi logo confrontada com um problema concreto. Em Portugal os anúncios políticos pagos são proibidos a partir do dia em que são marcadas as eleições. Ou seja, quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciar publicamente a data das próximas legislativas (com a antecedência mínima de 60 dias) ninguém pode comprar publicidade política em Portugal..Será mesmo assim? O Facebook insistiu, no Parlamento, que isso é uma matéria complicada. O argumento da empresa norte-americana é que essa proibição contraria os seus "padrões da comunidade". Dito de outra forma: a lei portuguesa tem uma importância relativa para o Facebook..Publicidade direcionada em Portugal.O Facebook Portugal considera que os seus utilizadores têm o direito de comprar publicidade, desde que obedeçam às regras recentemente criadas pela empresa para tornar transparente esse mercado: identificar-se e dar a sua morada, por exemplo. Isso bastaria para cumprir a lei portuguesa, bloqueando qualquer anúncio comprado em Portugal durante a interdição legal. Mas essa posição não obteve qualquer acolhimento dos responsáveis do Facebook que estiveram no Parlamento. Ali, a posição da plataforma parecia a de Marcelo Rebelo de Sousa no último referendo do aborto - satirizada pelo Gato Fedorento - "é proibido, mas pode-se fazer...".A "territorialidade" é o ponto central desta discussão. Como sabemos, a publicidade no Facebook é tanto mais eficaz, quanto mais definido é o seu público-alvo. Nos EUA, por exemplo, a campanha de Donald Trump apostou quase tudo nos estados "indecisos", como a Florida..E mesmo os anúncios políticos portugueses mostram isso. Todos os exemplos que daremos, em seguida, são legais, porque as eleições ainda não foram marcadas..O deputado Cristóvão Norte, do PSD, só quer fazer campanha no distrito por que se candidata: Faro. Ali teve 100% da sua audiência. Já o ex-líder do CDS, José Ribeiro e Castro, comprou um anúncio para o país inteiro, embora mais visto em Lisboa e Porto..A publicidade que o Facebook vende aos políticos é direcionada. Ou seja, tem destinatários concretos - em locais precisos, e destinatários com género e idades escolhidas. O último anúncio pago pelo PS, por exemplo, destinou-se a um público com mais de 55 anos (72% dos destinatários). Ao mesmo tempo, a candidata do Livre, Joacine Katar Moreira, publicou uma mensagem destinada aos mais jovens (62% da audiência tem menos de 44 anos)..Um negócio pequeno e mal catalogado.Por isso, este tipo de publicidade levanta muitas questões sobre a forma como altera as regras conhecidas das campanhas políticas. A mensagem genérica, para o conjunto da sociedade, torna-se muito menos relevante na estratégia política. A mensagem quase individualizada torna-se possível..No entanto, o negócio da publicidade política, em Portugal, não justifica, aparentemente, essa posição de força do Facebook. Portugal continua a ser um dos (poucos) países europeus onde os anúncios políticos propriamente ditos são uma raridade. Os montantes são muito baixos (e ainda serão, na realidade, mais baixos, se descontarmos os anúncios erradamente classificados como políticos pelo Facebook): 143 348 euros..O site do BE (Esquerda.net), o PS (e alguns dirigentes a título individual, como António Costa e Ana Catarina Mendes), a Iniciativa Liberal, o deputado Cristóvão Norte (PSD) e o Livre são os únicos exemplos, na última semana, de anunciantes políticos no Facebook, em Portugal..Mas a catalogação que o Facebook faz desses anúncios é pouco rigorosa. Quando o DN analisou o primeiro relatório publicado pela rede social, em Maio, encontrou vários problemas: contas de desinformação que espalhavam fake news sobre religião, por exemplo, e marcas que não têm nada que ver com política catalogadas como tal..Dois meses depois, alguns dos problemas persistem. Entre os anúncios políticos catalogados pelo Facebook, na última semana, em Portugal, estão a Glamour Store (roupa) e a Piramidal (decoração de interiores)..O documentário e a multa.Parece um contrassenso: a empresa tecnológica que mudou o mundo, e tem mais de dois mil milhões de utilizadores, é capaz de prever o que fazemos - e como pensamos politicamente - mas parece incapaz de classificar o que é uma mensagem política..Este não é um assunto trivial. A publicidade política, que alimenta com muitos milhões o negócio do Facebook, é o centro do escândalo que afeta a empresa desde que, em 2016, se começou a conhecer o caso Cambridge Analytica. O acesso de uma empresa de dados, especializada em montar campanhas políticas direcionadas, que teve um papel determinante na eleição de Donald Trump, nos EUA, e na vitória do Brexit no referendo do Reino Unido, é explicado, com grande detalhe, no documentário Nada é Privado, que estreou na quarta-feira na Netflix..No mesmo dia - por coincidência - o Facebook aceitou pagar perto de cinco mil milhões de euros de multa à Comissão Federal do Comércio dos EUA, por não ter sido capaz de proteger a informação privada dos seus utilizadores, precisamente no escândalo Cambridge Analytica. Tudo isso teve um efeito imediato no valor da cotação da empresa: caiu na bolsa de Nova Iorque para o valor mais baixo da semana..Dois dias depois, na sexta, o The New York Times publicou um relatório independente da Mozilla, a criadora do sistema Firefox, que é uma comunidade de software livre, e analisou a biblioteca de anúncios políticos criada pelo Facebook em março. A conclusão é má: os dados estão mal armazenados, há bugs e restrições técnicas. A "transparência" que o Facebook anunciou não passa, por enquanto, de uma boa intenção.