Face Oculta. Manuel Godinho volta a tribunal por crimes cometidos em 2017

Empresário de Ovar que foi condenado no Face Oculta, mas permanece em liberdade, será julgado por querer apropriar-se, diz o MP, de quase 57 mil euros que as Finanças devolveram a uma das suas empresas insolventes.
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Manuel Godinho, o empresário de Ovar que está no centro do processo Face Oculta, vai começar a responder por crimes em mais dois julgamentos. Declarado insolvente em 2016 e com dívidas fiscais superiores a 27 milhões de euros, Godinho é acusado de, em 2017, ter procurado desviar para o seu património uma verba de 56 mil euros reembolsados pelas Finanças a uma das suas empresas, inativa e com as quotas penhoradas. Em causa estão crimes de abuso de confiança e de branqueamento de capitais, em que a namorada de um filho de Godinho e uma advogada também são arguidas por terem disponibilizado contas bancárias para o circuito deste dinheiro. O julgamento será no Tribunal de Santa Maria da Feira e ia iniciar-se quinta-feira, dia 9 de maio, mas foi adiado para junho. O outro julgamento decorre em Bragança, a partir de 5 de junho, e resulta de uma certidão do processo Face Oculta, com sete arguidos, alguns já condenados no julgamento de Aveiro, a responderem por crimes de corrupção, burla e falsificação de notação técnica.

O julgamento em Santa Maria da Feira resulta de factos ocorridos em 2017, numa altura em que o sucateiro de Ovar estava já condenado, sem trânsito em julgado, no Face Oculta e tinha sido declarado insolvente em 2016. Este processo, promovido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), começou com a identificação suspeita de uma ordem de transferência bancária em 13 de janeiro de 2017. Nesta data, um banco comunicou às autoridades, por via das regras de prevenção do branqueamento de capitais, que uma das empresas de Manuel Godinho tinha ordenado a transferência de uma verba para a conta de uma outra sociedade gerida pela namorada de um filho do empresário.

Antes, já se tinham passado situações que mereceram depois a atenção dos investigadores. Assim a primeira tentativa de abertura de conta foi feita sem a presença de Manuel Godinho e da mulher, o que foi rejeitado pelo banco. No dia 6 de janeiro, o casal apresentou-se na agência bancária e abriu a conta em nome da referida empresa. No mesmo dia, foi depositado nessa conta um conjunto de 21 cheques da Autoridade Tributária e Aduaneira, emitidos à ordem da empresa, no valor total de 56.665,16 euros. O banco detetou que a empresa era alvo de penhoras das quotas da sociedade, devido ao processo de insolvência, e bloqueou os movimentos.

Para a comunicação dos factos ao MP contribuiu muito que no mesmo dia 6 de janeiro de 2017 a namorada de um filho de Manuel Godinho tenha aberto na mesma agência bancária uma conta em nome de uma empresa em que é única administradora. A 10 de janeiro, Godinho, por telefone, ordenou ao banco a transferência do exato valor que havia depositado para a outra conta da empresa da namorada do filho.

Os cheques da Autoridade Tributária diziam respeito à devolução de excessos que tiveram origem na anulação de liquidações de IVA e juros compensatórios, por sentença proferida, em 2016, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro. Com Manuel Godinho declarado insolvente e com a empresa em causa inativa e com dívidas fiscais, o DCIAP concluiu pela existência de um esquema orquestrado para sacar o dinheiro da empresa e, através da conta aberta pela namorada do filho e mais tarde pela conta de uma advogada, o fazer chegar a Manuel Godinho. Os indícios eram vários: ambas as contas terem sido abertas no mesmo dia, na mesma agência, a hipótese de a empresa inativa de Godinho ter alguma dívida com a outra empresa que justificasse a transferência a crédito, e ainda que não tenha sido apresentado qualquer documento ou qualquer razão para essa operação.

Dívidas ao Fisco chegaram a 27 milhões

O DCIAP optou por deixar a transferência ocorrer, congelar depois a conta da empresa da namorada e esperar para ver o que fazia Manuel Godinho. Contudo, quando isso ia ser posto em prática o banco comunica que Godinho mudou de ideias e ordenou a transferência para uma outra conta de um banco diferente, sendo esta conta titulada por uma advogada, com inscrição suspensa na Ordem. O que se verificou, com conhecimento do MP. Godinho solicitou que a conta da sua empresa fosse encerrada logo depois, alegado insatisfação com o serviço. A mesma justificação que a namorada do filho deu para encerrar também a conta que tinha aberto em nome da sua empresa.

Para o MP, ficaram evidentes os indícios que Manuel Godinho se queria apropriar da verba pertencente à empresa que acumulou dívidas e tem vários credores. Para isso, contou com a colaboração da namorada do filho e da advogada, ambas arguidas neste processo. Em causa estão crimes de abuso de confiança e branqueamento de capitais. A advogada tentou justificar que o dinheiro era referente a serviços de assessoria jurídica que havia prestado à empresa de Godinho, o que não teve acolhimento no MP. O banco BIC, um dos maiores credores de Godinho, constituiu-se assistente no processo.

Num acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em que a advogada recorria da suspensão de movimentos decretada sobre a sua conta, os juízes transcrevem a justificação do DCIAP para as medidas tomadas. É possível saber assim que Manuel Godinho tinha, em 2017, dívidas ao Fisco no valor de quase 28 milhões de euros, concretamente 27.777.524,17 euros. Nos sites de bens penhorados verifica-se que decorrem leilões de propriedades de empresas de que Godinho era sócio. Além disso, é referido pelo DCIAP que Manuel Godinho, a mulher e a sua empresa foram investigados em oito inquéritos que envolvem os crimes de branqueamento de capitais e corrupção, sendo um deles o processo Face Oculta e outros certidões.

Em Bragança por burla à Refer

No Tribunal de Bragança, irá decorrer outro julgamento que resulta de uma certidão extraída do Face Oculta, e está relacionado com um concurso público para a alienação de 16 lotes de resíduos dispersos por diferentes estações da Refer, atual Infraestruturas de Portugal, em 2009. A empresa é assistente no processo. Além de Manuel Godinho, os outros arguidos são o seu sobrinho Hugo Godinho, a ex-secretária Maribel Rodrigues (ambos condenados no Face Oculta) e o filho Marco Paulo. Entre os restantes arguidos estão colaboradores de Manuel Godinho e Manuel Guiomar, ex-funcionário da Refer, que se encontra a cumprir pena de prisão resultante do processo Face Oculta e aqui está acusado de um crime de corrupção passiva para ato ilícito, além de burla e falsificação de notação técnica. O julgamento teve já duas datas de arranque mas acabou por ser adiado, ficando 5 de junho como nova data para início.

De acordo com a acusação, uma empresa de Manuel Godinho comprou seis lotes, mas só declarou cerca de metade dos resíduos valorizáveis que foram levantados, causando um prejuízo à Refer de cerca de 87 mil euros. A maior parte do prejuízo, cerca de 54 mil euros, resultou do levantamento dos resíduos depositados nas estações de Tua e Mirandela, realizada em julho e agosto de 2009. A empresa de Godinho declarou ter removido 246 toneladas, mas em consequência da adulteração de pesagens foram efetivamente levantadas 480 toneladas.

Recursos e prescrições impedem prisão

Este é o quarto processo em que Manuel Godinho é julgado, na sequência do Face Oculta. No principal inquérito, o empresário de Ovar foi inicialmente condenado a 17 anos e meio de prisão, depois reduzidos a 15 pela Relação do Porto. O Supremo Tribunal de Justiça acabou por condená-lo a 13 anos de prisão por 44 crimes, incluindo corrupção ativa, burla qualificada, furto qualificado, tráfico de influência, perturbação de arrematações e falsificação de notação técnica. Mas alguns destes crimes, como o de perturbação de arrematações, foram declarados prescritos pela juíza de Aveiro o que implica que a pena terá de ser reformulada em novo cúmulo jurídico. Contudo, o MP recorreu desta decisão de prescrição e é aguardada a decisão da Relação do Porto.

Esta não é a única condenação de Manuel Godinho a prisão efetiva. Em novembro, o tribunal de Aveiro condenou Godinho a três anos de prisão efetiva, numa audiência de cúmulo jurídico referente a dois processos que resultaram de certidões extraídas do Face Oculta. Em 2016 Manuel Godinho tinha sido condenado pelo Tribunal de Aveiro a dois anos de prisão efetiva, por um crime de corrupção ativa. Também foi condenado em Beja num processo em que o antigo sucateiro de Ovar foi punido com dois anos e meio de prisão, por ter subornado um ex-funcionário da antiga Refer. O Tribunal da Relação do Porto decidiu suspender ambas as penas, uma delas com a condição de pagar quase 39 mil euros à Refer. A pena efetiva do cúmulo jurídico também motivou um recurso de Manuel Godinho. E assim escapa à cadeia. Armando Vara, Manuel Guiomar (ex-Refer) e João Tavares (ex-funcionário da Galp) são arguidos deste processo que estão atualmente a cumprir penas de prisão.

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