Exposição. Os "tesouros" que enterraram um conflito com a Alemanha

Exposição "Culturas e Geografias" reúne cerca de 250 peças de arqueologia oferecidas pela Alemanha a Portugal, em troca de uma coleção que os portugueses tinham "aprisionado" na Primeira Guerra Mundial. Este fim de semana há visitas guiadas gratuitas no Museu da História e Ciência Natural da Universidade do Porto
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Esta é uma exposição de objetos históricos que trazem coladas muitas histórias para contar. Entre elas, uma declaração de guerra da Alemanha contra Portugal, em 1916, que acabou de vez com a até aí encapotada neutralidade lusa na primeira Grande Guerra.

Para assinalar um ano da exposição "Culturas e Geografias", a Universidade do Porto abre portas, nas manhãs do próximo fim de semana (5 e 6 de dezembro), a visitas guiadas gratuitas que permitirão conhecer as histórias associadas a cerca de 250 peças de arqueologia, antropologia e etnografia que nos "levam numa viagem por vivências, rituais e manifestações culturais dos cinco continentes", conta Rita Gaspar, curadora das coleções de arqueologia e etnografia do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP) e comissária da exposição.

Mas comecemos pelo princípio, pela origem desta coleção e pela histórica declaração de guerra que lhe está associada. O que têm estas peças a ver com a guerra declarada pela Alemanha a Portugal? Tudo começa com o importante trabalho do afamado arqueólogo alemão Walter Andrae na região de Assur, a capital do antigo império Assírio, no Médio Oriente, nas primeiras décadas do século XX.

Com o prenúncio do barulho dos primeiros canhões da I Guerra Mundial no ar, a Alemanha aconselhou o regresso de todos os seus cidadãos expatriados. Entre eles, Andrae e a sua expedição. O arqueólogo encheu o navio de carga SS Cheruskia com os seus achados arqueológicos no Médio Oriente e "estava de volta a casa quando o início da guerra, em 1914, apanhou o Cheruskia e outras embarcações alemãs ao largo de Sagres", conta Rita Gaspar. Cerca de 70 navios da frota alemã ancoraram por essa altura no porto de Lisboa, que então se afigurava como o porto neutral mais próximo. Mas a neutralidade aguentou apenas dois anos.

"Os nossos aliados britânicos fizeram muita pressão para aprisionar os navios e acabámos por ceder em 1916", lembra a curadora da exposição. As mercadorias foram confiscadas pelas autoridades portuguesas, tendo sido "vendidas as mercadorias comerciais em hasta pública". A frota naval foi entregue na sua maioria aos britânicos. O SS Cheruskia, esse, foi tomado pela Armada portuguesa, que o rebatizou como Leixões, e as suas 448 caixas com achados arqueológicos de Walter Andrae ficaram aprisionadas na Alfândega. É na sequência desse apresamento que, a 9 de março de 1916, a Alemanha declara guerra a Portugal, levando o país a entrar definitivamente na I Guerra Mundial.

Não são, no entanto, esses tesouros de Assur aqueles que estão hoje em exposição no Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto. Mesmo depois de assinado o Tratado de Versalhes (1919) que pôs fim ao conflito mundial, a Alemanha continuou a fazer pressão para obter a devolução dos tesouros tomados por Portugal como prémio de guerra.

E, depois de vários avanços e recuos, de novas ameaças mais ou menos sérias dos alemães em bombardear até a cidade do Porto - para onde as peças tinham sido transferidas, como doação à Faculdade de Letras, por indicação do ministro Augusto Nobre, reitor da Universidade do Porto - e muita divisão nacional entre os defensores da retenção das peças e os que entendiam ser um dever devolvê-las, Alemanha e Portugal chegaram por fim a um acordo, em 1925.

O governo português assinou a devolução do conteúdo da embarcação - que entretanto, ironia do destino, já renomeada como Leixões, tinha sido abatida em setembro de 1918 por um submarino alemão - e, em troca, recebeu peças originais e réplicas em gesso de antiguidades oriundas de cinco continentes.

Portugal perdeu a coleção de Assur, que acabou por "permanecer pouco tempo na Faculdade de Letras do Porto", mas ganhou em troca "uma vasta e riquíssimo espólio didático" com quase 700 peças que permitem uma viagem por diversos períodos e civilizações. São "pedaços da História" que desenham um mosaico dos cinco continentes, refere a curadora.

Pedaços da história que nos remetem para horizontes tão ricos e longínquos quanto os da Melanésia ou da China, da Antiga Grécia ou do próximo Oriente, de África ou das Américas.

A coleção do antigo Egito, uma das mais relevantes, "faz já parte da identidade da Faculdade de Ciências do Porto" e ilustra praticamente toda a história do Egito", muito centrada, naturalmente, "no universo funerário". Há múmias, um sarcófago, máscaras funerárias, dois vasos de vísceras (já lá vamos com mais pormenor)... foram mais de 100 os objetos egípcios doados pelos alemães. "Não há aluno ou antigo aluno da faculdade que não se lembre de ter aulas em frente à múmia", refere Rita Gaspar.

Também impressionante, e rara, é a coleção etnográfica da Papua da Nova Guiné, composta por 130 artefactos -"a mais importante na Europa", sublinha a comissária da exposição. "É uma coleção fantástica, esteticamente muito bonita, e nós nunca teríamos a oportunidade de ter um espólio desta riqueza se não tivesse sido nestas circunstâncias", destaca.

No total, a oferta dos museus estatais de Berlim, chegada ao Porto em 1927, continha mais de 700 objetos. Estão catalogados atualmente na Universidade do Porto 689. E a descoberta é constante. "Ainda agora, quando estávamos a catalogar as peças para o livro desta exposição, descobrimos três peças que estavam mal catalogadas ao longo deste tempo todo", conta Rita Gaspar.

É uma larga amostra destes objetos (250), "reunidos por Walter Andrae após contactos com vários museus estatais de Berlim na época", que foi selecionada por Rita Gaspar e pela equipa do MHNC-UP para a exposição Culturas e Geografias, integrada nas comemorações dos cem anos da Faculdade de Letras - cuja coleção foi o primeiro destinatário destas peças, antes de a Faculdade de Letras ter sido encerrada em 1931 por ordem da Ditadura Militar e o espólio ter sido então distribuído por outros museus, nomeadamente o da Faculdade de Ciências da U.Porto (FCUP).

Para explorar a riqueza das histórias associadas a estes objetos - e fintar, também, as limitações impostas pela pandemia que desde março condicionou as visitas à exposição - foi criado um conjunto de podcasts, a que foi dado o nome de "Terras sem Fim". Uma iniciativa que surgiu "em boa hora", porque serviu, além do mais, "para ganhar novos públicos", refere Rita Gaspar, "que não propriamente os habituais visitantes das exposições".

São algumas dessas histórias, e outras, que os visitantes poderão ficar a conhecer este fim de semana nas visitas guiadas gratuitas organizadas para assinalar um ano da exposição. E três delas pode ficar já a conhecer aqui: a desafio do DN, Rita Gaspar destaca três dos objetos desta exposição "Cultura e Geografias" e revela-nos as histórias que lhes estão agarradas.

Vasos de vísceras do Antigo Egito

Estes vasos permitem antes de mais destapar a extraordinária vida do italiano Giuseppe Passalacqua, "um antigo criador de cavalos que no século XIX tentou ir fazer negócios de cavalos para o Egito". Não correu bem a aventura equestre do italiano, mas Passalacqua teve arte para dar a volta à situação: virou-se para as antiguidades egípcias.

"Tornou-se arqueólogo e construiu uma das coleções mais significativas daquela época sobre o Antigo Egípcio", conta Rita Gaspar. Tão significativa e valiosa, que o Museu do Louvre em Paris não teve sequer dinheiro para a comprar, quando Passalacqua a tentou trazer para a Europa.

Comprou-a o filho do czar da Prússia, Frederico Guilherme IV, que a doou ao museu de Berlim na época, em meados de 1800. E foi dessa coleção que saíram para Portugal, em 1927, estes vasos de vísceras, "um deles de alabastro", que podem ser vistos nesta exposição.

"Era vasos usados na hora da morte, para a recolha dos órgãos que, mais tarde, se iriam reencontrar com o morto no além", explica Rita Gaspar. "As tampas estão ornadas por duas cabeças de animais que representam divindades, as quais seriam as guardiãs dos respetivos órgãos. Estes eram retirados e mumificados, guardados dentro destes vasos até ao momento desse reencontro para a vida no além".

Nkisi, da Bacia do Congo

O Nkisi seria uma espécie de antepassado do vodu. Esta estátua, recolhida na bacia do rio Congo, tem o peito cravado de pregos e um recetáculo onde o feiticeiro colocava as "matérias médicas". Depois era preciso "ativar o espírito".

"Esta estátua era considerada uma figura de poder, uma espécie de mediador com o poder espírita", conta Rita Gaspar. "Através destas figuras, procuravam-se soluções para questões relacionadas com a doença ou a morte, mas também castigos para malfeitores, por exemplo. As figuras eram ativadas pelo feiticeiro da aldeia [Nganga], através de peças metálicas [daí os pregos cravados no peito".

Paralelamente, nas "caixas mágicas" que acompanhavam estas estatuetas - "uma espécie de relicário" - eram colocados materiais da natureza consoante o efeito do "feitiço" pretendido.

Estatueta de crocodilo, da Papua Nova Guiné

"A coleção da Papua Nova Guiné é uma das mais fantásticas que temos", realça Rita Gaspar. "Feita em materiais naturais, esteticamente é muito bonita". Entre as mais de 100 peças dessa coleção, encontra-se esta estatueta de crocodilo, que nos remete para um ritual de masculinidade e passagem à idade adulta.

"É uma espécie de ritual de iniciação que acontece na Casa dos Homens, onde nenhuma criança ou mulher pode entrar. Dentro desse espaço é tatuado o peito e as costas dos rapazes que viram homens, com tatuagens que reproduzem a pele de crocodilo", explica a curadora. O homem crocodilo refletido nesta estatueta é um homem "que ganhou maturidade e controla o caos". Ganha, por isso, "responsabilidades no controlo da aldeia".

Estas e outras histórias (e objetos) estão disponíveis para o público, de forma gratuita, este fim de semana. As visitas guiadas gratuitas efetuam-se sábado (5) e domingo (6) , às 10.00, 11.00 e 12.00, e "com integral respeito pelas regras de segurança". Para participar, basta enviar um e-mail para visitas@mhnc.up.pt.

A entrada para o Polo Central do MHNC-UP, onde está patente a exposição, faz-se pela entrada sul do edifício da Reitoria da Universidade do Porto, ao Jardim da Cordoaria.

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