Já não se pode identificar Laurentino Gomes apenas como ex-jornalista, afinal a sua produção ensaística tem sido no âmbito da História, fazendo com que milhões de brasileiros (re)conheçam os factos do seu passado. Autor de 1808, 1822 e 1889, três datas fundamentais na formação do país que se seguiu à independência em 1822, após a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808 e ao fim da monarquia em 1889. Lançou já dois volumes de investigação sobre a escravatura, tema em que tem vindo a trabalhar nos últimos anos, após o sucesso dos anteriores livros de História..Desta vez, Lurentino Gomes não utiliza o estilo brincalhão que os leitores tanto apreciaram ao lidar com D. João VI ou D. Pedro, entre as muitas figuras portuguesas dos livros anteriores, porque o assunto não o permite: "Já me disseram que os livros anteriores eram muito divertidos, mas Escravidão parece outro Laurentino! Eu mantive alguns elementos da minha escrita, como uma linguagem acessível e fácil de entender, mas a escravidão não permite brincar como fiz com a corte de D. João. É um assunto muito sério. Pode ter situações pitorescas e curiosas, mas jamais podia usar a linguagem bem-humorada anterior. Houve uma mudança no meu estilo para evitar o desrespeito.".A escravidão, fenómeno que ainda permanece bem ativo no Brasil noutros contornos, foi uma prática constante no país durante mais 300 anos e realizados em vagas permanentes de navios negreiros que transportaram desde África até ao outro lado do Atlântico cerca de cinco milhões de negros, sendo o principal destino dos quase 12 milhões de seres a quem foi retirada a liberdade e colocadas marcas feitas com ferros em brasa - cinco diferentes em alguns deles - para os identificar na pele como se fosse um passaporte..Para Laurentino Gomes, que durante seis anos viajou por doze países e três continentes na sua busca por documentação, é como "se a escravidão fizesse parte do código genético humano", pois esta situação verifica-se desde há milénios no Antigo Egito, na Babilónia, na Grécia Antiga e em África, ainda antes da chegada dos europeus"..O primeiro volume desta trilogia chegou às livrarias há poucos dias e é de leitura obrigatória, quanto mais não seja por contribuir com esclarecimentos de um drama que está a ser debatido em Portugal de forma enviesada e ignorante na maioria das vezes. Uma situação é certa, os portugueses e os brasileiros foram os campeões do tráfico..A escravidão acabou oficialmente no Brasil em 1888... Esta História que está a escrever nega essa data? Sim, oficialmente a escravidão foi abolida no Brasil em 1888, mas o seu legado continua presente na realidade brasileira de uma forma muito visível e intensa. Os nossos grandes abolicionistas do século XIX, Joaquim Nabuco, Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, afirmavam que seriam necessárias duas abolições. A primeira, a que o Brasil fez ao parar de comprar e vender gente nessa data, mas segundo eles era necessário dar terra, trabalho, educação e oportunidades a esses escravos e descendentes. Isso, o Brasil jamais fez. A população brasileira de origem africana foi abandonada à sua própria sorte e nunca incorporada na condição de cidadãos de pleno direito..Diz que o resultado é visível. Dê exemplos. Quem viajar pelo Brasil e tiver um olhar atento observa a escravidão diante dos olhos. Basta ir aos "bairros nobres" da Zona Sul - Copacabana, Ipanema, Leblon -, onde mora a população branca descendente dos europeus; quem mora nos morros perto onde ficam as favelas, são maioritariamente descendentes de africanos, está completamente abandonada pelo Estado e sem condições. Portanto, a escravidão está presente na geografia do Brasil, que é um país segregado a esse nível..Uma segregação que também está presente nas estatísticas, pois só 4% dos políticos eleitos em 2018 eram negros. Exatamente, basta ver que entre os onze ministros do Supremo tribunal Federal não existe um único negro, ou que nenhum dos 27 governadores dos estados brasileiros é negro. No Senado e na Câmara dos Deputados é uma minoria inexpressiva, a exemplo de outras classes sociais: pilotos de avião, escritores, engenheiros ou médicos. É a população com menos oportunidades e a mais pobre. E a escravidão mantém-se presente sob a formo do racismo e do preconceito racial..Têm vindo a ser mantidos desde há séculos?.Sim, criaram-se mitos como o de sermos uma grande democracia racial, mas no dia-a-dia o noticiário encarrega-se de os desmentir. O Brasil é preconceituoso e racista. Gilberto Freyre criou um desses mitos no seu livro Casa Grande & Senzala (1933), em que dizia que o Brasil sonhava ser branco e europeu. Foi o primeiro a defender as virtudes da mestiçagem, mas ao mesmo tempo considerava que a escravidão portuguesa e brasileira teria sido mais boazinha, o que não é a realidade e os factos desmentem isso porque foi tão violenta como em qualquer outro lugar da Terra - nos EUA e nas Caraíbas. Pode dizer-se que a cultura portuguesa criou uma miscigenação racial que não houve noutros lugares, o que não significa que a escravidão tenha sido mais branda ou que o país se tenha tornado uma grande democracia racial. É um país de desigualdades, que não promove a inclusão, que é de castas e em que quanto mais escura a cor da pele mais pobre se é..A "importação" de imigrantes no século XX visou branquear o país? Sim, eu próprio sou um produto desse projeto de branqueamento porque os meus bisavós eram italianos e chegaram ao Brasil no final do século XIX para substituir a mão-de-obra escrava após a Lei Áurea. Era um grande plano do Segundo Império, de que o sangue africano tinha corrompido a identidade nacional e tornado mais preguiçosos e menos civilizados, ou seja, era preciso oxigenar o sangue brasileiro pela importação em massa de imigrantes europeus. Foram milhares de alemães, ucranianos, polacos, italianos e, também, portugueses. Isso funcionou no Sul, mas na Bahia não, cuja capital é a maior cidade negra do mundo fora de África. Diria que temos hoje dois brasis: o branco e o negro. Que têm grandes dificuldades em se entenderem..Este Governo também não ajuda! Não, este Governo é resultado de um projeto negacionista não só em relação aos séculos XIX e XX, ou ao meio ambiente, mas no que respeita às nossas origens e tem um discurso de supremacia branca. Este discurso deu votos nas últimas eleições, ou seja, a escravidão continua uma chaga aberta porque o presidente Jair Bolsonaro vendeu a ideia de que os culpados eram os africanos e não os colonizadores e ao querer vender essa ideia de que a culpa do tráfico negreiro era dos próprio africanos, daí ele não se preocupar com esse legado..Como está a ser o confronto com estes seus dois livros num país que mantém um altíssimo nível de racismo? Tem sido surpreendentemente boa porque o assunto está a ser cada vez mais importante no Brasil. Como é um país de construção autoritária, com diversos períodos de ditadura e regimes fortes, tem sido imposta uma mitologia como a da democracia racial. Agora, durante os 40 anos de democracia, é um acontecimento inédito e neste ambiente está a haver uma revolução muito intensa a respeito da identidade nacional. Dou três exemplos: no passado, dizia-se que o brasileiro era um povo pacífico e hoje está mais do que provado que é um dos povos mais violentos do mundo, pois os índices de criminalidade são dos maiores do planeta; no passado, dizia-se que o brasileiro era honesto e trabalhador, hoje veem-se os índices de corrupção, que são dos maiores do mundo; no passado, dizia-se que o brasileiro era tolerante do ponto de vista racial, e o noticiário encarrega-se de o desmentir. Então, há uma mudança em movimento importante sobre a nossa identidade: quem somos realmente? Quem fomos no passado e quem gostaríamos de ser no futuro?.O que pode mudar? O racismo tem sido parte dessa agenda importante da democracia brasileira, por isso o livro chegou em boa hora. Existem reações, como as do presidente da República ou do seu vice a dizerem que não existe racismo no Brasil, mas a maioria da sociedade, principalmente os formadores de opinião, os jovens, estão conscientes que o racismo e a herança da escravidão são um problema muito grave. Ou o Brasil aceita o facto de que temos uma questão racial a ser resolvida ou vamos continuar enganados e manter o negacionismo em andamento, fingindo que somos uma coisa enquanto na verdade somos outra..Demorou seis anos a preparar-se para esta empreitada e exigiu ter um olhar atento. Desde que começou e até agora mudou em si alguma coisa na interpretação desta realidade? Mudou. Entrei nesta investigação há oito anos muito imbuído das ideias tradicionais de que o Brasil seria mais tolerante do que outros países e que a questão racial seria um problema secundário, e que sermos um país desigual socialmente não teria essencialmente a ver com a escravidão, e hoje estou convencido do contrário. A escravidão é o assunto mais importante da história do Brasil e o fio condutor de tudo o que fomos, somos e seremos. Percebi que é aquele com que nos temos de preocupar atualmente, porque o Brasil africano revela-se na beleza, numa maneira de o brasileiro se comportar de forma bastante alegre - no Carnaval, na música -, mas também na feiura - a desigualdade social -, problemas por resolver e que atravancam a caminhada em direção ao futuro. O Padre António Vieira dizia que "o Brasil tem o seu corpo na América e a sua alma em África". A essência brasileira está em África e as riquezas da sua geografia na América, daí que hoje exista uma esquizofrenia entre o corpo e a alma brasileira porque é um país de personalidade cindida.Afirma que "África continua dentro do Brasil", forte e predominante, mas não é essa a realidade social atual. Como assim? Diria que me surpreendi nas viagens que fiz a África pela atenção que certos países dão ao Brasil, como em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Gana, Benim, mas não é recíproco. Sinto que em Portugal existe hoje uma atenção por África como jamais houve no Brasil. É como se a África não existisse; a última vez que houve uma aproximação foi no governo de Lula, mas com muitos casos de corrupção e envolvimentos promíscuos. África é um não-assunto no Brasil e ao mesmo tempo no que respeita à própria África que existe dentro do Brasil. Tende a ser esquecida, o que mostra que existe uma visão negacionista sobre a nossa história, que se estende à sociedade presente..Cada nova geração avança ou regride nessa relação? Apesar da análise pessimista que estou a fazer, tenho algum otimismo. Se analisarmos o Brasil da perspetiva do noticiário há muitas razões para o pessimismo, mas de um ponto de vista histórico o caminho tem sido grande. O racismo era um não-assunto durante todo o século XX e hoje não, é importante. Na televisão e na publicidade, por exemplo, já não são todos de pele branquinha como se estivéssemos na Suécia ou na Suíça. Isso significa que as empresas estão preocupadas com a questão, pois houve uma mudança de cultura e de perceção dos consumidores, que não aceita uma publicidade branca. Estamos, lentamente, a reencontramo-nos com as raízes africanas, mesmo que demore ainda umas quatro gerações a alterar o comportamento..Conseguiu uma contribuição de testemunhos dos que sofreram com a escravidão para este trabalho? Não, foi muito difícil. A bibliografia é enorme e variada, mas a história da escravidão no Brasil é contada sob o olhar branco e na sua imensa maioria os documentos são europeus. No entanto, há novas interpretações da história negra e africana de parte não só de historiadores brancos mas de historiadores negros, daí que tenha ficado muito atento a elas. É isso que me permite um olhar atento, o olhar branco, o olhar negro, que exigem discernimento porque as fontes originais são por norma brancas..O olhar negro confronta-se com o branco ou as narrativas históricas caminham no mesmo sentido? Existem contradições que parecem insolúveis. Em vez do Brasil tolerante de Gilberto Freyre, há o "genocídio negro" de Abdias do Nascimento. Esta é uma palavra muito forte mas bastante em vigor no país atual, e refere-se à exterminação em massa de povos, como aconteceu com os judeus durante o holocausto nazi. Durante algum tempo fui relutante em aceitar a ideia de que houvesse um "genocídio negro" no Brasil, porque o objetivo do tráfico negreiro não era matar as pessoas, contudo hoje aceito a ideia de que houve e ainda há em andamento um genocídio cultural. Não físico, mas de apagamento da memória, das instituições e da herança cultural histórica africana no Brasil. Embora exista também o genocídio físico na forma de milhares de jovens que são mortos pelas balas perdidas nas periferias do Brasil. São narrativas bem diferentes: um Brasil perfeitamente integrado e tolerante contra a de um Brasil em guerra civil e étnica consigo mesmo. Portanto, tendo a entender que a segunda narrativa é mais forte e real do que a primeira..O grande desafio é colocar a questão na agenda política atual? Sim, porque não é apenas uma curiosidade histórica ou intelectual, antes um desafio estratégico para o país ou este será sempre pobre e atrasado. Este Brasil nunca irá alcançar o seu lugar ambicionado se não resolver a sua herança esclavagista. Mais do que pagar uma dívida social, o desafio é fazer um investimento futuro, designadamente através das cotas para corrigir as desigualdades..Este é o seu quarto livro em busca da História do Brasil. Depois de em 1808 e 1822 ter destruído a colonização portuguesa, 1889 criticava a herança colonial e Escravidão está no mesmo sentido. O Brasil de 2021 já se livrou desta praga da herança colonial portuguesa? Diria que essa herança tem servido como desculpa para que o Brasil não resolva de forma madura e adulta os seus problemas. Existe ainda hoje no Brasil uma história de demonização de Portugal, de toda a culpa das nossas dificuldades se deverem aos portugueses. Isso vê-se nas redes sociais, onde se diz que os portugueses é que nos fizeram corruptos e esclavagistas, mas diria que não. O Brasil é uma continuidade da história, tradição cultura portuguesa na América, mas a responsabilidade para enfrentar os desafios da atualidade é genuinamente brasileira. Claro que existem raízes portuguesas, mas não diria "se nós tivéssemos sido colonizados por ingleses ou holandeses seríamos muito melhores", isso é uma ilusão porque nenhum brasileiro estaria lá hoje. Seria um outro país, uma Nova Zelândia ou uma Austrália e não um Brasil. Essa ilusão de que existe colonização boa e má, basta observar o Haiti, colónia francesa, que é o país mais pobre do mundo, ou a Árica do Sul, colonizada por ingleses e holandeses, num regime de segregação racial até recentemente, e conclui-se que não é verdade. É preciso maturidade por parte dos brasileiros para entender que existem passivos, dores e sofrimentos no passado que precisam de ser enfrentados no presente, mas isso não significa que a culpa seja dos outros e que nós, numa atitude infantil, vamos fugir das nossas responsabilidades. É uma questão de assumir a nossa identidade inteira e e não nos ancorarmos no passado, culpando os portugueses pelo que somos..- A história de um dos negócios mais rentáveis do mundo que foi também uma das maiores tragédias humanas.Laurentino Gomes.Porto Editora.413 páginas