E se...? E se o 25 de Abril não tivesse acontecido? E se tivesse surgido uma ordem mundial que nos tirasse a liberdade? Sim, tudo isso acontece em Evadidos, a nova longa-metragem de Bruno Gascon, o realizador de Carga, atualmente, a meio da rodagem de um projeto que devolve o cinema português às belas paisagens de Barcelos. Estamos numa tarde quente de abril, nesta segunda-feira de muitos desconfinamentos e onde uma equipa de cinema experiente mas jovem roda o terceiro filme deste cineasta que acabou de vir do Festival Barcelona Sant-Jordi, onde apresentou o seu filme anterior, Sombra, drama duro sobre uma mãe que vê o seu filho desaparecer. Sombra só estreia em outubro, mas Carga, o seu filme anterior, já era outra amostra de dureza, sobretudo na descrição sobre as redes de prostituição de mulheres na Europa. Agora, a ideia é apostar num filme-conceito que nos leva até a uma distopia: uns anos 1980 corrompidos com uma ditadura que nos tira a liberdade de expressão. Atores, produtores e também o realizador sabem que é complexo explicar esta espécie de fantasia que imagina um passado recente com sombras de uma metáfora atual. Tomás Alves, o ator principal, é direto: "O Mário é um ex-professor com um sentido de justiça muito fervilhante. Quando a história começa já não é professor, é antes uma espécie de gestor de uma carpintaria, tendo ao mesmo tempo uma atividade em prol da liberdade. Estamos nos anos 1980 num regime bastante apertado, enfim, um regime fascista, mas que poderia ser nos dias de hoje, sobretudo com o que tem acontecido com a extrema-direita. É como se fosse um pesadelo real bastante pesado.". A sinopse que a distribuidora, a NOS Audiovisuais (que apenas tem combinado lançar o filme para o ano), providencia à imprensa fala de um conto sobre a perda da liberdade de expressão: "Conta-se a história de um homem em luta pela liberdade, seguindo o foco de Bruno Gascon na abordagem de temáticas sociais relevantes e promovendo assim o debate sobre as mesmas." Em pleno plateau, ouvindo atores e o realizador, percebe-se que a distopia em questão tem bases bem palpáveis com as atuais ameaças globais extremistas. Uma distopia que então é tudo menos ficção científica... Filme duro e desconfortável, conforme Tomás Alves vai avisando. Por seu turno, Bruno Gascon, também o autor do argumento, não tem medo de falar em olhar político: "O filme é uma metáfora sobre a falta de liberdade de expressão dos nossos dias. Claro que é uma distopia, mas muito realista. A ideia é mostrar que este pesadelo poderia ter acontecido ou ainda poder vir a acontecer. É um filme em modo e se...em plenos anos 1980! Passa-se em Portugal mas poderia, na verdade, ser no mundo inteiro. Nesse sentido, é universal.".Enquanto olha para o telemóvel e lê críticas espanholas positivas ao seu filme anterior, Sombra, de alguma forma inspirado no caso Rui Pedro, Bruno, vai dizendo: "Não sou um cineasta de ficar de braços cruzados. Aliás, antes de Sombra, já tinha escrito este filme. Quero sempre fazer mais e melhor. Este é diferente dos outros, é a minha forma de me desafiar." Ao mesmo tempo, ao lado dele, está Joana Domingues, a produtora que conseguiu convencer este elenco de ponta a embarcar num projeto com alguma ambição. Além de Tomás Alves, Evadidos tem também Vítor Norte, Ana Bustorff, Íris Cayatte, João Arrais ou João Vicente, tudo isto numa obra que não teve apoio cliché do ICA. "Acho que é interessante referir que já temos distribuição internacional assegurada! O filme vai estrear nos EUA! Isto tem que ver com acordos entre agentes de vendas e com o facto de Carga ter chegado a 30 países! Tenho expectativa que Evadidos consiga quebrar barreiras", refere.. Quanto mais fala sobre o filme, o seu criador, Bruno Gascon, mede as palavras. Sabe que este seu projeto tem spoilers que não podem ser revelados. Quanto menos se souber, melhor. "Até digo que esta pandemia acabou por mudar um pouco o guião, sobretudo na estrutura, não no conceito. O que acontece nesta história é um exemplo de a realidade ser cíclica, ou seja, este caminho para onde estamos a ir na Europa e no mundo não é propriamente saudável." E quanto à covid, no plateau, numa pequena casa de pedra em Midões, freguesia de Barcelos, toda a equipa tem os cuidados da ordem, ou seja, testes a toda a hora e máscara na cara. Um plateau tranquilo onde as filmagens que o DN visita correm a ritmo notável - às 18h00 há um assistente que já fala em hora do jantar, até o realizador se espanta com os horários em estado de graça, mesmo quando há uma vaca vizinha a estragar o som dos planos e uma avioneta que obriga a algumas interrupções. Nada que um dia de sol perfeito e a viola de Tomás Alves entre os takes não apazigue. Na verdade, é um ambiente de uma calma requintada aquele se vive nestas filmagens. Nesse sentido, a forma como a equipa foi recebida em Barcelos não é casual. A autarquia abraçou por completo o projeto e a produtora Joana Domingues menciona mesmo o termo "produção comunitária". De alguma forma, é uma cidade a puxar por um filme..Para Manuel Mota, da Câmara Municipal de Barcelos, o desígnio do cinema é algo natural para a sua autarquia: "A nossa cidade tem um conjunto de características físicas perfeitas para uma rodagem, quer do ponto de vista do lado urbano quer para o lado mais rural. Seja como for, estamos num contexto de pandemia e é uma pena não se poder explorar a interação entre a população e os atores. Por outro lado, com tanta gente com a paixão de representar, este filme potencia essa questão artística. É preciso sublinhar que projetos desta dimensão estão muito centralizados no Porto e, sobretudo em Lisboa...". Na idílica bolha em que a equipa ainda vai estar mais algumas semanas, o espetacular Seminário da Silva (sem seminaristas...), Bruno Gascon volta a dizer-nos muito calmamente que esta é uma obra com dimensão eminentemente política, mesmo sendo um thriller dramático: "Isto pode passar-se nos anos 1980 mas não deixa de ser uma porta para percebermos a realidade na qual nos encontramos. Estamos a caminhar para uma realidade que não é propriamente de liberdade." Enquanto isso, Tomás Alves, com a sua barba revolucionária, nos intervalos, vai fotografando os bastidores. Ele que estará em breve nos cinemas como protagonista de Salgueiro Maia - O Implicado, de Sérgio Graciano. Um caso de um ator com olhos azuis de fúria insurrecta. dnot@dn.pt