Há dez anos que católicos, evangélicos, hindus, islamitas, judeus, ortodoxos, budistas, adventistas, bahais e igrejas cristãs discutem o acompanhamento de doentes e a espiritualidade nas unidades de saúde..Em 2018, oito destas 11 confissões assinaram uma declaração sobre "Cuidar até ao fim com compaixão". O objetivo era tomarem uma posição pública sobre a eutanásia, conscientes de que o país vivia "um momento de grande importância para o nosso presente e futuro coletivos". Fora desta declaração ficaram as igrejas representantes do Conselho Português de Igrejas Cristãs (COPIC) e da comunidade Bahai, no entanto, e como sublinha o capelão Fernando Sampaio: "É um documento histórico, pois até agora ainda não foi conseguida uma posição consensual entre confissões religiosas tão abrangente como esta.".Nesta quarta-feira, em conferência de imprensa, reafirmam esta posição, porque a mensagem é a mesma perante a discussão dos projetos do BE, PS, PAN, PEV e IL, dia 20 na Assembleia da República, sobre a despenalização da morte medicamente assistida. "A vida humana é inviolável até à morte natural, perfilhamos um modelo compassivo de sociedade e, por estas razões, em nome da humanidade e do futuro da comunidade humana, causa da religião, nos sentimos chamados a intervir no presente debate sobre a morte assistida, manifestando a nossa oposição à sua legalização em qualquer das suas formas, seja o suicídio, seja a eutanásia.".Pode haver uma nuance: a possibilidade de discutirem e aceitarem um referendo sobre o tema - situação que tem vindo a ser colocada por movimentos Pró-Vida, partidos políticos, como o PSD, e até pela própria Igreja Católica. O bispo do Porto, D. Manuel Linda, afirmou recentemente que "a vida humana não é referendável, mas seria deplorável que os deputados impusessem os seus critérios à sociedade". Representantes deste Grupo Inter-religioso defendem que a prioridade agora é o debate de dia 20, mas não descartam a hipótese de discutirem e de aceitarem um referendo se "esta for a única forma de lutar contra a questão"..O que pensam católicos, evangélicos e muçulmanos sobre o referendo.Ao DN, o padre Fernando Sampaio, coordenador deste Grupo de Trabalho Inter-religioso Religiões-Saúde, e capelão do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, argumenta: "A vida humana não é referendável, mas a avançar com um referendo não se estaria a referendar a vida humana, mas sim a oportunidade de uma legislação sobre a morte assistida. Neste sentido, e não sendo possível outro modo de lutar contra a questão, acredito que este grupo aceitaria o referendo.".O capelão salvaguardou, no entanto, que a questão não foi discutida no grupo, mas acredita que as confissões que integram este grupo estão com os seus crentes, para nós a vida é sagrada, isto é consensual, mas se fosse esta a única forma de se debater a questão e de lutar contra ela, acredito que estaríamos em consenso em aceitá-la", referiu..Para o pastor Jorge Humberto, da Aliança Evangélica Portuguesa, a questão do referendo não se coloca agora. "Estamos noutro patamar. Agora, o importante é alertar os deputados e a sociedade portuguesa sobre esta ação inusitada", sublinhou. "É preciso que os deputados percebam que se está a discutir e a decidir uma questão sobre a qual não houve uma linha de debate profunda. Por isso, consideramos que esta ação da Assembleia da República é inusitada e até uma falta de respeito para com o povo português.".Mas o pastor Jorge Humberto não tem dúvida de que se a questão do referendo for colocada será trabalhada e analisada para se alcançar uma posição de consenso neste grupo inter-religioso, mas, sublinhando: "Há que ter em atenção que um referendo é sempre uma faca de dois gumes e que qualquer posição alcançada por esta via será muito mais difícil de desconstruir do que uma lei aprovada pela Assembleia da República que, a qualquer momento e com uma composição diferente, poderá ser revogada", alerta.."A nossa convicção é que este assunto ainda não foi suficientemente debatido pela sociedade, não está maduro, sobretudo quando não há ainda 'uma rede de cuidados paliativos que dê resposta adequada a quem necessita dela', relembrando que o Reino Unido decidiu não aprovar qualquer legislação sobre a morte medicamente assistida sem haver uma rede melhorada de cuidados paliativos." O representante da Aliança Evangélica Portuguesa sublinha "as situações gritantes que têm existido de ultrapassagem de critérios na aceitação de casos para a eutanásia"..O representante da comunidade islâmica concorda também que a questão prioritária é a reafirmação da posição assumida há dois anos num documento sobre como "Cuidar até ao fim com compaixão" e alerta sobre a discussão na Assembleia da República que irá ocorrer na próxima semana. O vice-presidente da comunidade e representante no Grupo Inter-religioso, Khalid Jamal, sublinha mesmo: "A questão da existência de um referendo não é uma prioridade, mas não excluímos a ideia de a discutir num futuro próximo em sede do grupo de trabalho, pois está a ser colocada em cima da mesa pela própria sociedade portuguesa.".Crentes e não crentes deveriam discutir com urgência a educação para a morte.Para o padre José Nuno Ferreira, um dos mentores da criação deste Grupo de Trabalho Inter-religioso na área da Saúde, que surgiu para dar forma ao Decreto-Lei de 5 de março de 2009, sobre a representação de todas as confissões nas unidades de saúde para um melhor acompanhamento espiritual dos doentes, a ideia de avançar com um referendo "tem de ser abordada com todo o cuidado pelas partes envolvidas, para que o tema não dê azo a episódios histéricos"..José Nuno Ferreira, que ainda integra este grupo e que durante quase 20 anos acompanhou doentes no Hospital de São João, no Porto, como capelão, afirma: "Dezoito anos à cabeceira dos doentes obrigam-me a dizer que temo a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, principalmente pela pressão insustentável, insuportável mesmo, que isso iria fazer recair sobre aqueles que, abandonados pelos seus e entregues ao seu sofrimento sem perspetiva de futuro, poderiam sentir que o único caminho possível fosse a morte.".Acrescentando: "Nunca vi ninguém pedir a eutanásia, por mais dores que tivesse, quando acompanhado. Mas tenho a consciência de que, se não forem encontrados caminhos de acompanhamento e de responsabilização de cada pessoa pelos seus familiares, em desespero por solidão poderá haver quem sinta a tentação da morte." Mas, para o sacerdote, o caminho é abraçar, não é abrir a janela legalizando a eutanásia e o suicídio assistido. Pelo contrário, este será "mais um passo na desumanização dos laços de que se tece a sociedade humana. É uma desresponsabilização coletiva"..Em conversa com o DN, o sacerdote coloca uma outra questão: "Atrevo-me a sugerir um tema, e de novo penso que crentes e não crentes poderão convergir nele, para o debate social que falta fazer com urgência: a educação para a morte, melhor, a educação para a vida em ambiente escolar: uma educação que envolvesse a educação sexual e para as questões de género, como a discriminação e a violência doméstica, a educação para a inter-generacionalidade e a educação para a morte, enquanto consciência da própria finitude, estratégias do luto e responsabilidade de acompanhamento dos próximos no processo de morrer. Isto seria sim uma educação para a cidadania.".Mas diante de um eventual referendo defende que "se centrarmos o debate suscitado pela questão da eutanásia em torno dos temas do indivíduo, não se encontrarão plataformas de entendimento. Se formos capazes de descobrir que esta problemática é, antes de mais, uma interrogação sobre a sociedade que somos e dermos prioridade a este enfoque, talvez possamos encontrar-nos na reflexão e no discernimento. O que está em causa é demasiado grave para que, pelo menos, não o tentemos"..Em 2018, duas confissões religiosas que integram este grupo de trabalho de religiões na saúde - o Conselho Português das Igrejas Cristãs (COPIC), que integra as igrejas Lusitana, Metodista e Presbiteriana, e a Comunidade Bahai - não assinaram o documento e a declaração que agora volta a ser divulgada. O DN contactou representantes destas instituições para apurar que posição mantêm agora, mas não obteve respostas em tempo útil..A questão de fundo é a discussão na generalidade de cinco projetos, do BE, PS, PAN, PEV e IL sobre a despenalização da morte medicamente assistida que poderá ter um desfecho diferente do de há dois anos. Nos projetos apresentados pelo BE, PS, PAN e PEV não passaram por poucos votos. O que esteve mais perto de conseguir fazer legalizar a eutanásia foi o do PS, mas não o conseguiu, exatamente por cinco votos..Na altura, dois deputados do PS juntaram-se a mais de 80 do PSD, 19 do CDS e aos 15 do PCP, para não deixarem passar a despenalização da eutanásia ao votarem contra. Na altura, e já como agora, tal como já referiu o líder dos sociais-democratas, será dada liberdade de voto aos deputados sobre esta matéria. Agora, tudo poderá ser diferente com a composição atual do Parlamento.