Eutanásia, morte assistida, suicídio assistido. Não é um tema fácil, qualquer que seja a parte do planeta onde o assunto se discuta origina debates fervorosos entre os que estão a favor e os que estão contra. Até na Holanda, o primeiro país do mundo a aprovar a eutanásia - e que a tolerava mesmo sem a cobertura legal que chegou em 2001 e entrou em vigor em 2002 - o tema fez, e faz, correr muita tinta. Se recuarmos a 1973 chegamos ao caso da médica Geertruida Postma que teve de responder em tribunal por ter ajudado a mãe a morrer com a administração de uma dose letal de morfina..Mesmo que a mãe da médica tenha reiterado os pedidos para a filha lhe acabar com a vida, Geertruida Postma teve de se sentar nos bancos do tribunal e ouviu uma condenação por homicídio. A sentença foi, contudo, leve - pena de prisão de uma semana suspensa e liberdade condicional por um ano. O defensores do "não" realçam do debate que o caso Postma gerou em 1973 o choque provocado na opinião pública; os que estão pelo "sim", preferem vê-lo como o primeiro passo e destacam o apoio público que gerou e que levou ao abrandamento de jurisprudência até à despenalização da eutanásia três décadas depois. À época da aprovação da eutanásia, a Holanda não esteve imune aos protestos, embora as sondagens apontassem para que 90% da população apoiasse a medida. A inexistência de uma rede robusta de cuidados paliativos era um dos argumentos dos contestatários à lei, recorda Maria Margarida Teixeira, médica oncologista do IPO de Coimbra, também ela contrária à eutanásia. Que explica ainda que a despenalização desta prática médica pelos holandeses surge depois de ser conhecido o relatório de J.P. van der Maas, publicado no New England Journal of Medicine, em 1996 - segundo este estudo, entre 1990 e 1995, cerca de mil holandeses tinham sido eutanasiados sem ter dado o seu consentimento expresso e voluntário. "Foi um escândalo completo", sublinha a médica. "Os holandeses estiveram quase 30 anos a discutir a eutanásia. Legalizaram a prática em 2001, impondo que a primeira baliza para acabar com a prática não consentida seja administrada a doentes que tenham dado o seu consentimento explícito e voluntário por escrito. Mas a prática sem consentimento explícito mantém-se", denuncia a oncologista..Por cá, a eutanásia será discutida no Parlamento no próximo dia 20 de fevereiro, por iniciativa de PS, BE, PEV, PAN e Iniciativa Liberal, e depois da votação na generalidade descerá à especialidade. Enquanto isso, os dois lados da barricada esgrimem argumentos, com a Igreja Católica a assumir protagonismo pelo "não" e há mesmo uma iniciativa popular a recolher assinaturas para levar a matéria a referendo. Se Portugal aprovar a eutanásia, será o quinto país europeu a permitir que por iniciativa de um doente terminal ou em sofrimento insuportável lhe seja posto fim à vida - além da Holanda, é permitida na Bélgica, no Luxemburgo e na Suíça, neste último país o que se pratica é o suicídio assistido, levado a cabo em associações como a Dignitas e a Exit, o que leva o Estado helvético a granjear a classificação de "turismo da morte". A Espanha também está a dar os primeiros passos políticos e legislativos com vista à aprovação da eutanásia. No resto do globo, o estado australiano de Vitória foi o último a aprovar, no ano passado, legislação que permite o suicídio assistido a cidadãos nacionais com mais de 18 anos. Também cinco estados norte-americanos permitem o suicídio assistido, num deles, Oregon, a prática remonta a 1997, muito antes de a Holanda ter avançado com a eutanásia. Em 2016, o Canadá também legalizou a eutanásia. A Colômbia e o Uruguai adotaram igualmente legislação para o que definiram como "homicídio piedoso". A eutanásia - do grego "boa morte" - implica que seja um médico a administrar a dose letal para acabar com a vida do doente; na morte assistida, passa o medicamento, mas não necessita de ser o clínico a administrá-lo; no suicídio assistido, o doente tem a ajuda de uma terceira pessoa para morrer..O primeiro julgamento na Holanda.No ano passado, o país que se tornou pioneiro a legalizar a eutanásia e é visto como um dos mais liberais nesta matéria assistiu ao primeiro julgamento de uma médica por ter eutanasiado uma mulher de 74 anos com Alzheimer que tinha escrito que queria morrer antes de ir para um lar - isso foi quatro anos antes de a doença lhe ter sido diagnosticada. O Ministério Público holandês considerou que devia ter havido "uma discussão mais aprofundada com a paciente demente" antes da decisão de lhe pôr termo à vida, até por haver indicações de que a paciente poderia ter mudado de ideias. A médica foi considerada inocente, com o Tribunal Distrital de Haia a determinar que cumpriu todos os critérios exigidos pela lei. A prática de eutanásia em doentes dementes é atualmente uma questão polémica na Holanda. No estudo "Pedidos de eutanásia em casos de demência; quais são as experiências e necessidades dos médicos holandeses?", que ouviu diversos profissionais daquele país, é referido que a maioria dos pedidos de eutanásia costumam vir da família, nomeadamente dos filhos, que alegam que a vida dos pais perdeu dignidade e querem que o sofrimento lhes seja aliviado..Os participantes do estudo disseram que a demência é considerada uma doença que retira qualidade de vida. Um dos médicos citados no estudo referiu mesmo: "O foco da Holanda está muito na eutanásia, mas há questões que deveríamos discutir - como lidamos enquanto sociedade com a demência? Por que razão a maioria das pessoas que sofre de demência vive em casa e continua a viver? Somos uma sociedade amigável para com estas pessoas e de que maneira os cuidados e apoios a estas pessoas estão organizados? Pouco foi organizado, de maneira que eles e seus cuidadores familiares precisam de enfrentar a situação sozinhos." "Há uma diferença entre o que está na lei e o que se passa no terreno, vemos que morrem mil holandeses por ano sem terem dado o seu consentimento explícito e isto após a despenalização da eutanásia. São verdadeiros homicídios", acusa Maria Margarida Teixeira, acrescentando que na Bélgica os casos são "duas ou três vezes superiores"..Rostos que fizeram história.São vários os rostos que têm apaixonado a opinião pública na defesa ou na recusa de procedimentos médicos que ponham fim à vida a pacientes que o pedem devido ao sofrimento psíquico ou físico atroz: Ramón Sampedro (Espanha), Terri Schiavo (Estados Unidos), Aurelia Brouwers (Holanda), Eluana Englaro (Itália). Alguns deles são casos antigos, anteriores à aprovação da eutanásia no primeiro país do mundo. Espanha está prestes a aprovar legislação sobre a matéria, 22 anos depois da morte de Ramón Sampedro, que colocou o tema da eutanásia nas bocas dos espanhóis... e do mundo..Ramón ficou tetraplégico quando tinha 25 anos, depois de um mergulho na praia. Lutou três décadas pelo direito a morrer - considerava-se "uma cabeça sem corpo" e não queria continuar a viver sem dignidade. A lei espanhola nunca lho permitiu - acabaria por conseguir alcançar os seus intentos, ajudado por uma amiga que lhe deu cianeto de potássio..Ramona Maneiro foi detida nos dias seguintes, mas não chegou a ser julgada por falta de provas. Sete anos depois, já com o crime prescrito, Ramona admitiu ter facilitado a Ramon o acesso ao veneno e ter gravado o vídeo em que este diz as últimas palavras..A história deste pescador e escritor da Galiza foi contada no filme Mar Adentro, com Javier Bardem a fazer de Ramón, e ganhou o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005..Apesar de só nesta semana o congresso espanhol ter aprovado a lei proposta pelo governo socialista de Pedro Sánchez que abre o caminho para a aprovação da eutanásia, já em 1995 o caso de Ramón Sampedro contribuiu para que as alterações ao Código Penal reduzissem as condenações em caso de eutanásia e de suicídio assistido. "Em Espanha não poderia fazer-se uma lei sobre a eutanásia que não incluísse casos como o dele, porque a maioria da população entende que uma pessoa como ele teria todo o direito a decidir quando e como morrer", referiu a Associação Espanhola Direito a Morrer..Terri Schiavo e o caso americano.Terri Schiavo. Mais um caso que apaixonou o mundo e que galvanizou os movimentos mundiais pelo direito a decidir o fim à vida nos Estados Unidos, país onde a eutanásia ativa e o suicídio assistido são, em regra, proibidos e criminalmente punidos - o primeiro como crime de homicídio. E diz-se em regra porque há cinco estados norte-americanos onde o suicídio assistido é permitido: Oregon (1997); Washington (2008), Montana (2009), Vermont (2013) e Califórnia..Neste caso, o pedido para morrer não vinha da própria, mas sim do marido. Terri deixou de viver em 2005, ao fim de 15 anos em estado vegetativo irreversível provocado por um ataque cardíaco que lhe causou graves danos cerebrais. O marido, que era o seu representante legal, pediu que lhe fosse retirada a sonda de alimentação em clara oposição aos pais e aos irmãos que exigiam que Terri continuasse a ser alimentada e hidratada. As duas partes envolveram-se numa forte batalha nos tribunais - Michael Schiavo ganhou por três vezes o direito de lhe ser retirada a sonda, mas por duas vezes essa decisão foi revertida. Em março de 2005, à terceira vez, a sonda foi tirada definitivamente e Terri Schiavo morreu. O caso tem sido considerado como uma prática de eutanásia, mas também como a suspensão de uma medida terapêutica que não seria desejada pela paciente e que não lhe trazia melhoras. Ganhou ainda maior relevância nos tribunais porque o marido de Terri garantia que a mulher lhe tinha dito várias vezes, quando ainda estava consciente, que não queria ficar em estado vegetativo - se houvesse um documento escrito, a decisão teria respaldo nas leis americanas..Bélgica: morte de crianças sem limite de idade.A Bélgica foi o segundo país do mundo a aprovar a eutanásia, em 2002. Mas com uma diferença substancial em relação à Holanda - em 2014 passou a permitir a eutanásia em crianças, independentemente da idade, enquanto os holandeses só o permitem a partir dos 12 anos. Esta decisão levantou polémica em todo o mundo, com 250 especialistas de 35 países reunidos num congresso sobre cuidados paliativos na Índia a pedir ao governo belga que reconsiderasse a posição. As normas legais dizem que se pode pôr termo à vida de uma criança que sofra de dores físicas insuportáveis, a pedido da mesma e com a aprovação explícita dos pais e de uma junta médica de pediatras e psiquiatras que, por exemplo, avalia o QI do doente. Os pais podem sempre recusar o pedido da criança. Praticar eutanásia em crianças independentemente da idade não poderia deixar de suscitar um aceso debate no país - uma sondagem publicada então no jornal La Libre Belgique revelava, contudo, que 74% da população apoiava a medida. Quem se opôs, dizia que uma criança não tem maturidade para tomar uma decisão desta natureza e que a iniciativa visava responder mais a propósitos políticos do que a resolver um problema real. E sublinhava a falta de critérios para determinar em que situações as crianças têm capacidade para decidir sobre a sua própria morte e a influência que os pais poderiam ter sobre os filhos..A Igreja afirmou que se estava a ultrapassar todos os limites e mais de uma centena de pediatras tomou uma posição pública, em que referiam que há meios para controlar a dor física e a asfixia na hora da morte. A favor, argumentou-se que a lei afetaria um número pequeno de crianças e que essas, provavelmente, até já estariam na adolescência. Em 2018 soube-se que a Bélgica aplicou este procedimento a três crianças, com 9, 11 e 17 anos. Segundo o relatório divulgado então pela Comissão Federal para a Avaliação da Eutanásia, as crianças receberam a injeção letal entre janeiro de 2016 e dezembro de 2017. A mais nova tinha um tumor no cérebro e a de 11 anos sofria de distrofia muscular e estava em "sofrimento insuportável"..Os traumas do passado alemão.Na Alemanha, a discussão da eutanásia ainda se embrenha nos traumas do passado e do genocídio nazi. O país - que permite a eutanásia passiva, ou seja, o direito de recusar medicamento ou tratamentos - criminalizou recentemente o incentivo ao suicídio com fins lucrativos, para impedir as associações de oferecer medicação letal. A Igreja assume um discurso duro, para traumatizar: argumenta que a última vez que o Estado permitiu a eutanásia foi com as execuções de milhares de deficientes físicos e mentais pelo regime nazi. Em 2015, o Bundestag proibiu a assistência "organizada" ao suicídio, punível com três anos de prisão. Mas dois anos depois o Tribunal Administrativo de Leipzig, a mais alta instância administrativa alemã, tomou uma decisão inesperada: os juízes consideraram que "em casos excecionais" o Estado não pode impedir o acesso de um paciente a medicação que lhe permita suicidar-se "com dignidade e sem dor". Voltemos à Holanda. Aurelia Brouwers morreu depois de um médico lhe dar um veneno. Foi em 2018 e o caso gerou polémica porque a mulher não sofria de uma doença terminal. "Tenho 29 anos e escolhi ser voluntariamente submetida à eutanásia. Escolhi isso porque tenho muitos problemas de saúde mental. Sofro de maneira insuportável e sem esperança. Cada suspiro que dou é uma tortura." Na maioria das mais de seis mil mortes por eutanásia na Holanda, em 2017, as razões foram doenças graves físicas, mas em 83 casos a causa avançada era do foro psiquiátrico. Os médicos de Aurelia recusaram o seu pedido, mas ela recorreu à clínica privada Fim de Vida. A questão que muitos colocaram foi esta: se tinha problemas psiquiátricos, tinha discernimento para decidir morrer?