O primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, venceu o Prémio Nobel da Paz em 2019 por ter feito as pazes com a vizinha Eritreia. Mas, dentro de fronteiras, o cenário é bem diferente. Desde 4 de novembro que está em curso uma ofensiva contra a região de Tigray, no norte da Etiópia, cujos líderes são acusados de planear uma revolta. A guerra civil, que já fez centenas de mortos e milhares de refugiados, ameaça espalhar-se pelo Corno de África..À entrada para a terceira semana do conflito, ambos os lados alegam estar a fazer avanços militares. O Governo etíope promete que os combates vão chegar rapidamente ao fim, apesar de a Frente de Libertação Popular do Tigray (TPLF) dizer que está a conter os avanços das forças governamentais..Abiy Ahmed defende que a "justiça vai prevalecer" no país, tendo rejeitado os apelos da comunidade internacional para pôr fim aos combates e dialogar com a região de Tigray. "A Etiópia é mais do que capaz de alcançar os objetivos da operação sozinha", indicou num comunicado durante o fim de semana. .O líder da TPLF, Debretsion Gebremichael, disse, por seu lado, que as suas forças estão a infligir "pesadas derrotas em todas as frentes contra as forças que nos vieram atacar", e pediu a todos os habitantes locais, incluindo crianças, que se juntem à luta "em massa para expulsar os invasores"..As Nações Unidas alertam para a crise humana que se está a desenrolar, indicando que todos os dias pelo menos quatro mil etíopes fogem do conflito para o Sudão, havendo já mais de 36 mil refugiados..O detonador da tensão que se tem vindo a acumular desde que Ahmed foi eleito primeiro-ministro, em 2018, foi um ataque contra uma base militar etíope em Mekelle, a capital regional de Tigray, na qual morreram vários soldados e foram roubados equipamentos militares e armas..Ahmed acusou as milícias locais de estarem por detrás do acontecimento e ordenou, a 4 de novembro, o início da ofensiva contra a região, enviando tropas e autorizando bombardeamentos aéreos..A TPLF, que durante anos dominou a política na Etiópia e que governa a região de Tigray, negou que o ataque tenha ocorrido, alegando que o primeiro-ministro usou a história como pretexto para uma invasão. E respondeu com ataques de rockets contra vários alvos, incluindo na capital da vizinha Eritreia..A Amnistia Internacional denunciou entretanto o massacre de centenas de pessoas, que terão sido esfaqueadas e mutiladas na noite de 9 de novembro, na região de Tigray. A organização não conseguiu verificar quem foram os autores do massacre, mas testemunhas culparam as forças de Tigray. Já o TPLF apontou o dedo ao Governo etíope. As Nações Unidas dizem que podem estar em causa crimes de guerra..Estima-se que pelo menos 500 civis já tenham morrido, mas a falta de comunicações com a região está a tornar mais difícil perceber o alcance do conflito..Os tigrínios são um grupo étnico que representa cerca de 6% dos 110 milhões de etíopes (havendo também população no sul da Eritreia), sendo o mais famoso o atual diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, que o governo etíope acusa de andar a pressionar a comunidade internacional para que force Ahmed a sentar-se à mesa de negociações..Tedros já negou no Twitter: "Tem havido notícias a sugerir que eu estou a escolher um lado nesta situação. Isto não é verdade e quero dizer que estou apenas de um lado nisto, no lado da paz.".Apesar de minoritários, os tigrínios dominaram durante anos a política da Etiópia através da Frente Popular de Libertação de Tigray. A TPLF foi criada na década de 1970 e liderou o movimento armado de libertação da Etiópia (a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope), que com o apoio dos aliados da Frente Popular de Libertação da Eritreia acabou com a ditadura comunista de Mengistu Haile Mariam em 1991..Desde então, a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (que além da TPLF incluí o Partido Democrático de Oromo, o Partido Democrático de Ahmara e o Movimento Democrático do Povo do Sul da Etiópia) governa o país, vencendo as várias eleições (com denúncias de fraudes nos últimos anos)..Em março de 2018, no meio de protestos, o então primeiro-ministro e líder da Frente Democrática, Hailemariam Desaleg, anunciou a demissão, e pela primeira vez houve disputa pela liderança entre os quatro grupos que compõem a Frente Democrática..Abiy Ahmed, um oromo (grupo étnico que representa cerca de 45% da população), acabaria por ser eleito, prometendo uma reforma política aos etíopes. Uma das suas medidas foi dissolver a Frente Democrática, criando uma nova força política , o Partido da Prosperidade, ao qual a TPLF não quis aderir, passando efetivamente para a oposição..Desde então, a TPLF acusa o primeiro-ministro e os oromos de perseguição aos tigrínios e de os afastarem de cargos no executivo e nas forças de segurança. Nos últimos meses, tem havido várias demissões e detenções entre empresários locais, que Ahmed diz fazerem parte da luta contra a corrupção..Em setembro deste ano, a TPLF desafiou o Governo de Ahmed e realizou eleições regionais em Tigray. As eleições tinham sido suspensas pelo executivo etíope por causa da pandemia de covid-19. O primeiro-ministro não reconheceu os resultados eleitorais, aumentando ainda mais a tensão, e os deputados votam a suspensão dos apoios federais a Tigray..Por seu lado, as autoridades de Tigray deixaram de reconhecer a legitimidade do Governo etíope, considerando um "ato de guerra" o corte aos apoios..O ataque à base acabou por ser a gota de água, levando os dois lados para o confronto direto..Tigray, uma das dez regiões semiautónomas organizadas em redor de grupos étnicos que formam a República Democrática Federal da Etiópia, fica no norte do país, fazendo fronteira com a Eritreia e com o Sudão..A Eritreia conquistou a independência da Etiópia em 1993, depois de décadas de conflito, com os dois países a voltarem a pegar em armas um contra o outro entre 1998 e 2000, por causa de disputas territoriais. A TPLF e a sua poderosa força militar lideraram a guerra contra os vizinhos, que tecnicamente só acabou em 2018..Abiy Ahmed ganhou o Nobel da Paz em 2019 precisamente "pelos seus esforços em alcançar a paz e a cooperação internacional, em particular pela iniciativa decisiva para resolver o conflito fronteiriço com a vizinha Eritreia"..No domingo, a TPLF admitiu ter disparado rockets contra o aeroporto de Asmara, a capital da Eritreia, alegando que as forças etíopes estão a usá-lo para lançar ataques contra Tigray e que as forças do presidente Isaias Afwerki (no poder desde 1993 na Eritreia) estão a ajudar, algo que Ahmed nega..O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, felicitou a Eritreia por não ter respondido ao ataque. "Agradecemos a moderação da Eritreia, que ajudou a prevenir que o conflito se espalhe mais", indicou em comunicado..Na outra fronteira, com o Sudão, o problema é humano. Pelo menos 36 mil refugiados já entraram no país, que também enfrenta os seus próprios problemas económicos e de segurança. O Governo de transição, que chegou ao poder após o golpe de 2019 contra o ex-ditador Omar al-Bashir, está a tentar recuperar de décadas de sanções norte-americanas e de má gestão do homem que esteve à frente dos destinos do país desde um golpe militar em 1989..A região que faz fronteira com Tigray tem sido palco de cenas de violência tribal nos últimos meses, temendo-se o que a chegada de tantos refugiados possa provocar. As autoridades já pediram ajuda à comunidade internacional para lidar com o problema..As Forças de Defesa Nacional da Eritreia têm cerca de 140 mil homens e muita experiência a combater os militantes islamitas na Somália, assim como grupos rebeldes em regiões fronteiriças, tendo estado envolvidas durante anos também nos combates com a Eritreia..O problema é que muitos oficiais seniores seriam de Tigray, tendo as forças da TPLF liderado na guerra contra o vizinho do norte. Estima-se que as forças de Tigray possam incluir 250 mil homens (entre soldados e milícias), não sendo claro quem controla o Comando Norte, cuja sede é em Mekelle..O Governo etíope bombardeou vários locais para destruir material que pudesse estar nas mãos das forças de Tigray, sendo certo que a TPLF diz controlar o Comando Norte. Contudo, não se sabe se as tropas continuaram fiéis às Forças de Defesa Nacional ou se passaram também para o lado das forças regionais..O Governo tem também recorrido ao apoio das forças e das milícias da região de Amhara, a sul de Tigray, o que poderá aumentar o risco de violência étnica. Os amharas representam cerca de 27% da população da Etiópia..A nível aéreo, o poderio parece estar do lado de Ahmed, que conta com caças russos (15 Sukhoi e oito Mig), além de helicópteros. A TPLF alega que já abateu um caça etíope, mas o Governo negou.