"Etiópia nunca reteve o Nilo e não o vai fazer. Egito não deve temer"

Da singularidade como único país de África nunca colonizado à condição de nação historicamente cristã numa região de maioria islâmica, a Etiópia foi tema de conversa com Worku Belachew, diretor do <em>The Ethiopian Herald</em>, jornal em língua inglesa de Adis Abeba, à margem do Fórum Internacional de Astana, realizado na capital do Cazaquistão. Também se falou de Portugal e do reino do Prestes João.
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É possível dizer que a Etiópia é um caso excecional em África porque foi o único país africano nunca verdadeiramente colonizado?
Claro que sim. A Etiópia manteve a sua independência durante pelo menos três mil anos. E podemos ver agora mesmo como a cultura, a religião e a economia são originais. A própria estrutura económica é, em geral, muito autóctone. Quando se visita a Etiópia, as coisas podem até ser um pouco estranhas. Se formos a outros países africanos, vemos que falam muitas vezes a mesma língua dos vizinhos. Pode ser uma região de língua portuguesa, uma região de língua francesa ou uma região de língua inglesa. Mas na Etiópia, apesar da diversidade, à medida que se cruzam as fronteiras locais, acaba-se por conhecer uma cultura única. Pode ser a cultura Amhara, pode ser a cultura Oromo, pode ser a cultura Afar, todas com a sua língua, modo de vida e estrutura económica únicos.

Mesmo com a tentativa de colonização por parte da Itália em dois momentos, o último deles a coincidir com a Segunda Guerra Mundial, não há hoje qualquer sinal de um legado colonial, pois não?
Na Etiópia, a herança italiana não existe. Porque não há descendentes de pessoas que falassem efetivamente italiano. Existem apenas algumas, poucas, infraestruturas que foram construídas durante o tempo dos italianos, para a instalação dos italianos durante os cinco anos de ocupação de Adis Abeba e de algumas outras cidades. Porque a Etiópia, durante os cinco anos de ocupação, defendeu a sua soberania. Não aceitámos a administração colonial como uma administração melhor do que a tradicional ou como uma alternativa. Foi um período de guerra justa, tanto de desobediência interna como de guerra. Por isso, não se pode pegar em qualquer herança que tenha sido deixada durante o período italiano. Foi curto e muito combatido.

O cristianismo ortodoxo também é importante para a identidade etíope, pois o país está numa vasta região onde o islão é a regra?
A ortodoxia cristã é muito importante e tem raízes muito antigas, pois desde a antiguidade que a Etiópia praticava o judaísmo. Aliás, o judaísmo é realmente observável na Etiópia mesmo atualmente. Diz a lenda que o rei Salomão enviou o seu filho Menelik I, juntamente com outras israelitas, para junto de sua mãe. Desde então, existe um povoamento antigo de judeus, aos quais agora se chama Falashas. São descendentes dos judeus etíopes que estão atualmente em Israel. O judaísmo estava lá e, no século IV, a Etiópia abraçou oficialmente o cristianismo.

É um dos primeiros países a converter-se, logo a seguir à Arménia.
Esta data do século IV é simbólica, e na realidade significa que a Etiópia já seguia o cristianismo desde o tempo de Jesus, mas só então se tornou oficial. Foi quando o monarca aceitou o Cristianismo que a Etiópia se tornou cristã, mas já antes disso era-o a nível do povo.

Atualmente, os cristãos ainda são cerca de dois terços da população de 120 milhões.
Sim. A grande maioria é cristã.

E este cristianismo etíope foi muito importante quando Portugal iniciou os Descobrimentos, pois os nossos reis estavam a tentar encontrar um aliado cristão entre os muçulmanos, o famoso reino do Prestes João. Há memória dessa presença portuguesa na Etiópia?
De facto, há. Nos nossos livros de História diz-se que o filho de Vasco da Gama, Cristóvão da Gama, veio apoiar o rei etíope. Os portugueses lutaram ao lado da Etiópia contra os muçulmanos durante o período otomano. Mas, para ser sincero, não me recordo de ver um memorial dedicado a Cristóvão da Gama.

Mas aprende-se na escola essa aliança com os portugueses no século XVI?
Claro que sim. Na escola, quando estava no 7.º e 8.º anos, estava incluído no nosso currículo. Por isso, lembro-me da lição que aprendemos sobre Cristóvão da Gama e da guerra que foi travada. Foi uma guerra decisiva e importante nessa altura para a nossa independência.

O imperador Haile Selassie foi derrubado em 1974, e com ele acabou a plurimilenar monarquia. Foi historicamente um momento importante para a Etiópia?
Sim, claro que sim. Na verdade, foi uma pena. O imperador não preparou a transferência de poder pacificamente e isso trouxe sofrimento para os etíopes, pois o fim da monarquia foi trágico. O novo regime comunista, de Mengistu, primeiro destruiu os três mil anos de história, depois fez o povo etíope perder a parte mais instruída da sociedade, a elite da sociedade. Muitas pessoas foram mortas pela junta militar. Mengistu acabou por fazer todo o tipo de horrores à Etiópia. Não há coisas boas que as pessoas falem hoje sobre Mengistu, que governou durante 17 anos. Não estou a dizer que tudo o que ele fez foi errado e mau, mas as coisas más superam as boas. Além disso, foi derrotado pelas forças guerrilheiras lideradas pelo TPLF. Na verdade, as forças da TPLF trouxeram mais 30 anos de tirania. Por isso, as origens de certos problemas de hoje podem ser muito diversas. Mas penso que se Haile Selassie tivesse transferido o seu poder pacificamente, antes da junta militar, o chamado Derg, atuar, e posto os assuntos da governação em ordem, a história recente da Etiópia poderia ter sido diferente.

Após a queda do regime liderado por Mengistu em 1991, foi realizado um referendo de autodeterminação e a Etiópia perdeu a Eritreia, que se tornou independente em 1993. Atualmente, a Etiópia é um país sem litoral. Isso prejudica o desenvolvimento nacional?
É bastante evidente, porque quando um país com mais de 120 milhões de habitantes fica sem acesso ao mar, não só a economia, mas também a paz e a segurança tornam-se muito vulneráveis. Porque tudo o que fazemos passa agora por outros países, e é afetado pela vigilância de terceiros, certo? Importamos e exportamos, como todos os países. Importamos e exportamos não só mercadorias, mas também produtos manufaturados e produtos alimentares. Por vezes, também se pode importar e exportar armamento. Por isso, é muito difícil para a economia neste momento contrariar esta falta de acesso ao mar. E também, neste momento, as nossas importações e exportações dependem muito dos portos no Mar Vermelho. Dependemos de Djibuti, de Port Sudão, de Berbera, na Somália, e por aí fora. Mas, de um modo geral, nos últimos anos dependemos de Djibuti, porque não estávamos a fazer negócios com a Eritreia, porque não utilizávamos o porto de Assab. Além disso, o porto de Berbera ainda não estava desenvolvido, por isso não o utilizámos e Port Sudão fica muito longe. Na verdade, há uma perspetiva de utilizar Port Sudão e o porto de Mombaça, no Quénia, mas só agora é que é possível. Portanto, tudo isso tem uma influência direta nos aumentos de preços, etc.

É possível dizer que a região envolvente é hostil à Etiópia? Mesmo o Egito, que não partilha fronteiras com a Etiópia, é hostil por causa do Nilo e da partilha das águas vindas das montanhas etíopes.
A questão do Egito é diferente. O povo etíope, se me perguntar agora pelas vozes populares, pela opinião pública na Etiópia, as pessoas não desenvolveram uma hostilidade para com o Egito. Porque se virmos os ortodoxos etíopes, há um santo que é muito venerado e celebrado na Etiópia que é egípcio. Portanto, estas relações entre os cristãos etíopes e a minoria cristã copta egípcia acabaram por aproximar a Etiópia e o Egito ao longo dos tempos. A Etiópia recebia até há pouco tempo os seus bispos do Egito. Por isso, o Egito ocupa um lugar único entre os etíopes. O problema com o Egito é, em primeiro lugar, a nível político. A liderança política no Egito, a comunidade académica no Egito, agora distorcem a história e factos científicos. Por isso, dizem às pessoas que a Etiópia está a reter o Nilo, mas a Etiópia nunca reteve o Nilo e não o vai fazer. Egito não deve temer.

Por causa da nova barragem?
Sim, mas o Nilo é um rio enorme, não se pode detê-lo, muito menos a Etiópia. Não creio sequer que os países mais desenvolvidos possam deter o caudal do Nilo, é um rio enorme. O que estamos a fazer agora é apenas produzir energia hidroelétrica. Portanto, faz-se girar a turbina com a água e o rio segue o seu curso, mas o que estão agora a contar às pessoas é uma versão distorcida da história. O segundo aspeto, na minha perspetiva, é que o Egito quer dominar a região. Por isso, se a Etiópia possuir esta barragem, pensam que o domínio será menor. É por isso que estão a tentar impedir a Etiópia de ter esta barragem. Na minha perspetiva, o Egito quer dominar a região do Nilo, não apenas a Etiópia, mas todos os 11 Estados do Nilo. Quer que sejam países pobres e vulneráveis. Assim, o seu domínio manter-se-á. Mas, na minha perspetiva, para os egípcios, é neste momento do seu melhor interesse haver Estados do Nilo bem desenvolvidos, porque o desenvolvimento desses Estados nunca ameaçará o Egito. O desenvolvimento dos Estados do Nilo melhoraria ainda mais as relações entre o Egito e os Estados do Nilo, na minha perspetiva.

Atualmente, no que diz respeito à economia etíope, a China é o principal investidor?
Os chineses, na verdade, não são os únicos grandes investidores, mas investem muito em infraestruturas, então é muito visível. De outra forma, podemos ter agora investidores turcos, árabes, indianos, europeus, e até americanos, como a Coca-Cola e outros. Os chineses investiram nos caminhos-de-ferro que ligam Adis Abeba a Djibuti. A China investiu na estação ferroviária de Adis Abeba. A China investiu imenso em estradas e pontes e está também a participar na construção de parques industriais. Tem o seu próprio parque industrial.

Eu era muito jovem em 1984/1985, mas lembro-me que nessa altura a Etiópia era sinónimo de fome, de pessoas desesperadas, a necessitarem da ajuda mundial e aconteceu o concerto Live Aid. Esse foi um momento especialmente terrível na Etiópia ou há uma crise regular que afeta pessoas pobres?
A fome infelizmente está em todo o lado. Mas nessa altura, a situação política na Etiópia e a tensão geopolítica entre o Bloco Comunista e o Ocidente - porque era a era Mengistu - exerceram pressão adicional sobre o governo, por isso exageraram a fome. Claro que houve fome, mas essa fome podia ter sido controlada, combatida com apoios do exterior, mas sem difamar o país. Quando era estudante tinha a definição de fome no dicionário e o exemplo era a Etiópia. De facto, isso estava errado. Mas as coisas melhoraram porque as épocas de seca passaram. Atualmente, a Etiópia é um dos exportadores de trigo, começámos a exportar trigo no ano passado porque estamos a produzir trigo duas vezes por ano. Uma com chuva e a segunda agora com irrigação.

Porque as vossas terras são muito férteis nas montanhas, certo?
Claro que sim.

E como é que os outros africanos olham para a Etiópia atualmente?
Essa é uma pergunta muito importante. Os outros países africanos têm relações muito históricas com a Etiópia. Por exemplo, a instituição continental, a Organização da Unidade Africana, atualmente União Africana, nos seus fundadores incluíram o imperador Haile Selassie. Ele fez pressão para que a solidariedade africana fosse real. A partir dessa altura, existem boas relações entre os países africanos. Os chefes de Estado e de Governo africanos não só visitam a Etiópia, como também tomam deliberações na União Africana e assim por diante. Por isso, as visitas são frequentes. A nível popular, as pessoas conhecem o trânsito aéreo através da Etiópia, porque existe a Ethiopian Airlines, que liga muitos países. A Etiópia é uma porta de entrada para o resto de África.

É possível dizer que, para os africanos em geral, a Etiópia continua a ser um país central?
Central, sim, mas tanto a nível cultural, como logístico. Há oportunidades para outros cidadãos africanos visitarem a Etiópia, saberem mais sobre a Etiópia, desfrutarem da Etiópia.

Este novo tipo de Guerra Fria e este confronto entre o Ocidente e a Rússia, por causa da Ucrânia, afetam a Etiópia, por exemplo, a nível económico? Como é que as pessoas na Etiópia encaram esta guerra?
A Etiópia era, mesmo na década de 1950, um dos membros do movimento não alinhado. Por isso, a política externa da Etiópia - a não ser que seja ao estilo Mengistu, apenas um lado em detrimento do outro - nunca escolheu amigos. A Etiópia só está do lado do seu interesse nacional em termos de soberania. Desde que se respeite a soberania da Etiópia e os interesses sociais, económicos e políticos da Etiópia, esta poderá estabelecer relações com o Leste e o Ocidente. Por isso, diz-se que a diplomacia etíope é daltónica. Não vê apenas isto e aquilo. Agora estamos bem, temos uma parceria estratégica e abrangente com os chineses, temos também uma boa parceria com os russos, com os Estados Unidos, com os alemães, com a União Europeia em geral e com os restantes países. Na Etiópia, tanto quanto sei, as relações tornam-se difíceis e tensas sempre que alguém começa a minar a soberania e os interesses da Etiópia.

Existe um problema de separatismo crónico na Etiópia ou é algo que se deve às rivalidades regionais?
O movimento separatista pode estar em qualquer lado, na Europa e até nos Estados Unidos. Mas esse movimento ressuscita e começa a expandir-se, começa a crescer rapidamente, quando consegue o nicho certo ou o clima certo.

Estamos a falar dos problemas no Tigray e noutras regiões?
Sim, de certa forma, porque existem alguns setores que querem o desmembramento da Etiópia e retiram benefícios em dividir a Etiópia.

leonidio.ferreira@dn.pt

O DN viajou a convite do Astana International Forum

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