Teatro dentro do teatro que era cinema. Opening Night, de John Cassavetes, 1977, filme que uma imensa minoria de portugueses esgotou lotações quando Paulo Branco o repôs nos cinemas nos anos 1990. Agora, Martim Pedroso leva-o para o teatro mas recupera os grandes planos de Cassavetes não só com o texto mas com uma câmara que filma os atores em situações paralelas. Cinema dentro do teatro que não é bem cinema. A complexidade disto é profundamente bonita e subjuga-se muito para além do nosso desejo de curiosidade de espetador: "como é que Dalila Carmo vai ser a Myrtle de Gena Rowlands"? ou "como João Reis pode ser o encenador de Ben Gazarra"?. Esta Noite de Estreia é também movida por uma enormíssima Dalila Carmo, que obviamente foge da imitação de Gena Rowlands, mesmo estando loura..Também atualmente nos palcos está Perfeitos Desconhecidos, a partir do filme Amigos Amigos, Telemóveis à Parte, de Paolo Genovese, uma encenação de Pedro Penim extra Teatro Praga para a Força de Produção, que reuniu um elenco fortíssimo composto por Filipe Vargas, Cláudia Semedo, Ana Guiomar, Jorge Mourato, Sara Barradas, Martinho Silva e um espantoso Samuel Alves. Tal como na comédia italiana aqui o humor ganha um lado de desconforto mais explícito à medida que um grupo de amigos entra em estado de dissolução a partir do momento em que joga um jogo onde os telemóveis de todos ficam expostos. É como se a mera rábula do filme ganhasse um peso mais dramático, mais universal... E aí o trabalho de Penim parece cirúrgico a calibrar a passagem da gargalhada para o amargo de boca. Desde a estreia em abril que o Teatro Maria Matos tem tido lotações esgotadas, previsivelmente do mesmo público que em 2017 encheu os cinemas com a uma ideia de um só cenário que já evocava o espaço teatral - Genovese fez um filme a piscar o olho ao teatro e hoje o seu texto está a ser um êxito teatral global..Para Martim Pedroso, adaptar para teatro John Cassavetes foi aventura feita com todos os receios e cuidados: "o cinema é uma linguagem muito própria e, à partida, difícil de transpor para teatro. O tempo do teatro é diferente do tempo do plano ou do realismo do cinema. A adaptação que fiz levou-me a 24 cenas. Muitas delas mínimas que nem sequer têm tempo de se instalar no palco..A grande questão agora era: como adaptar o tempo do cinema para o teatro? Como trabalhar todas estas dimensões da realidade e da ficção que o cinema explica muito mais facilmente do que um espetáculo de teatro ao vivo? A forma melhor de encontrar todas estas soluções é esquecermo-nos, a determinada altura, do filme. O filme já estava traduzido e adaptado no papel, agora era passar do papel para o palco. Penso que foi esse desprendimento do próprio filme que me permitiu continuar a acreditar em toda esta loucura..Mas claro que nunca me esqueci que estava a tratar de uma obra cinematográfica, que esse registo tinha de ser convocado. O cinema não como tema mas como objeto de arte.. O grande telão do cinema tinha de estar presente. O close-up dos atores também. Eu quis que a linguagem cinematográfica se mantivesse no espetáculo. A premissa foi : como o Cassavetes vai buscar o teatro para fazer o seu cinema, eu vou buscar a linguagem do seu cinema para fazer o meu teatro". Antes, a tendência era ao contrário: o cinema ir buscar as peças para delas fazer cinema. Ainda agora temos o exemplo fresco de O Pai, peça de Florian Zeller, adaptada pelo próprio ao grande ecrã. Em Portugal foi João Lourenço no Teatro Aberto quem a encenou. Logo ele, o encenador que entre nós mais tem feito cinema no palco, sobretudo quando há uns anos no espetáculo Noite Viva filmou um pequeno filme que incorporou no espetáculo e agora vai voltar a fazer cineteatro com Começar, de David Eldrige, ainda com estreia prevista para este ano. "O que vou fazer em Começar é também algo de cinema que terá vida para fora da peça, será uma curta-metragem que ultrapassa o texto teatral. Não será audiovisual, é mesmo cinema!", refere ao DN João Lourenço, que já sabe que O Filho, a peça de Florian Zeller integrante de uma trilogia iniciada com O Pai, está prestes a ser adaptada ao cinema por...Zeller. "Se a vou encenar? Não sei, tenho que ler outra vez a peça...", confessa com um sorriso ameaçador. Filipe Vargas, um dos atores de Perfeitos Desconhecidos, também acredita que no teatro cabe a possibilidade do cinema, ele que antes de ser escolhido para este elenco tinha falado com Sara Barradas para tentarem adaptar esta mesma peça. O ator acredita que poderá continuar a repetir-se esta tendência do teatro ir buscar inspiração ao cinema: "o Malcom & Marie poderá vir a ser uma peça de teatro. Uma peça muito boa! Tem diálogos muito bem escritos e com um ótimo jogo de atores...". E remata: "isto do cinema poder ser teatro é normal. Há coisas que se podem contar num set de cinema e num palco, ficam iguais...".Curiosamente, neste carrossel de cineteatro ou teatro-cinema, tanto Noite de Estreia como Perfeitos Desconhecidos propõem à plateia um ecrã em cima do palco onde há imagens que irrompem pelo espetáculo. Duas peças que não caem na preguiça de "encenar" sequências de cinema...