Numa casa com quatro "colunas inteligentes" ligadas à Alexa, a famosa assistente digital da Amazon, apenas uma começou a parar de tocar fosse o que fosse - música, som ambiente, podcast... - ao fim de uma hora de reprodução contínua. Todas as outras continuaram a funcionar normalmente. A resolução do problema demorou dois dias, com troca de e-mails para duas empresas nos Estados Unidos. A solução surgiu depois do segundo reset do aparelho (porque por qualquer razão o primeiro realizado na véspera não teve qualquer efeito). A origem do problema? Simplesmente ninguém sabe..O caso, real e ocorrido na semana passada, é de pouca importância, mas bem representativo do que é viver atualmente com a tecnologia digital. Quantas vezes o computador não "congela" ou o smartphone não deixa de responder sem motivo aparente? Em programas mais complicados ocorrem até situações de rotinas que funcionam impecavelmente várias vezes por dia, mas há um momento em que se recusam a funcionar sem que nem os seus programadores consigam saber exatamente porquê. E quanto maior for a complexidade da aplicação (app), maior a probabilidade de algo deste género acontecer..Para o dia-a-dia dos utilizadores estes pequenos episódios significam alguma perda de tempo, mas acima de tudo frustração. E mesmo quando tudo corre como previsto surgem custos inesperados ou descobrimo-los escondidos..Sempre soubemos que para podermos ter acesso "gratuito" aos serviços do Google ou do Facebook (só para dar dois exemplos) teríamos de o pagar com os detalhes privados das nossas vidas, mas até ao escândalo da Cambridge Analytica não tínhamos noção de quão profunda era a capacidade de estas empresas saberem tudo sobre nós. "Estavam a vigiar as pessoas já num sentido de prospeção, era aquilo a que chamei vigilância permanente", descreveu o ativista Edward Snowden na abertura da Web Summit 2019, em novembro, em Lisboa. "Faziam isto de qualquer forma, mesmo que as pessoas não tivessem feito nada e ninguém com poder fazia alguma coisa." Para concluir: "O modelo de negócio" para estas empresas "é o abuso". Foi muito aplaudido pela plateia, cheia a abarrotar..O mesmo público que minutos antes tinha aplaudido a apresentação de um novo serviço online que propõe às mulheres enviarem por uma app as datas dos ciclos menstruais e as medições da temperatura basal para ajudar a controlar o ciclo reprodutivo..Tudo é agora "tecnologizado".No atual mundo ocidental desenvolvido, "tudo se tornou tecnologizado". A observação é do consultor de comunicação digital norte-americano Joel Postman. "Há uma dissonância massiva entre a tecnologia básica, aquela que é verdadeiramente necessária para uma melhoria da nossa qualidade de vida, e a tecnologia de luxo/estatuto, que nos traz sobretudo complexidade, preços de difícil alcance e uma falsa sensação de estatuto", critica, em declarações ao DN..Os exemplos são muitos e do dia-a-dia. "Temos frigoríficos, sistemas de segurança em casa e aparelhos de climatização acionáveis e geríveis pela internet. Temos o FitBit para manter a forma... As pessoas convenceram-se de que não podem fazer nada sem tecnologia", diz Postman. Tecnologia que "neste aspeto se tornou um obstáculo. Quando a internet está em baixo, não conseguimos ter acesso à informação, escolas e locais de trabalho fecham ou param, as lojas não conseguem vender as suas mercadorias", lembra o autor de SocialCorp: Social Media Goes Corporate, livro pioneiro na análise de estratégias de como as empresas podem utilizar as redes sociais..A escola é, aliás, um dos casos mais evidentes de como as atuais tecnologias digitais são uma espada de dois gumes. Se, por um lado, qualquer estudante tem hoje no bolso, potencialmente, acesso a quase toda a informação mundial - algo inimaginável há umas quantas décadas -, por outro lado, todos os dias há professores que são confrontados com a arrogância de "investigadores da internet", alunos ou pais de crianças que acreditam saber mais do que os especialistas ou os manuais. O mesmo raciocínio aplica-se à saúde. O perigoso e até fatal movimento "anti-vax", contra a vacinação, não teria o alcance que tem se não existissem redes sociais.."Muitas vezes apenas os mais afluentes e instruídos conseguem tirar verdadeiro partido de alguns destes desenvolvimentos" tecnológicos, sublinha Postman ao DN, contando a história de "um executivo de tecnologia informática que deu uma palestra na África rural acerca dos benefícios da Internet das Coisas, numa aldeia onde apenas uma em cada dez casas tinha eletricidade"..Adaptar é humano.O mundo não voltará a ser o que era nem permanecerá como está durante muito mais tempo. Afinal "a única constante na vida é a mudança", como disse o filósofo grego Heráclito. Não é possível saber se de um dia para o outro o Facebook não é substituído por outra plataforma (que terá provavelmente outros problemas); ou se a profunda crise social que se adivinha trazida pelas alterações climáticas não nos fará mudar profundamente de prioridades. Certo é que apenas a ciência e a tecnologia nos poderão salvar do destino dos dinossauros no dia em que um asteroide entre em rota de colisão com o planeta..Entretanto, cabe aos profissionais das áreas afetadas pelas novas tecnologias adaptarem-se. Um professor de Matemática hoje já não pode dizer ao aluno desatento "não vais ter sempre uma calculadora contigo" como fazia antigamente, porque por causa dos telemóveis tal já não é verdade. Também por isso a forma de ensinar mudou muito nas últimas décadas - tanto que as gerações anteriores já nem percebem como é que os miúdos agora fazem contas. Ensinar a pensar tem de ser cada vez mais o objetivo da escola..Também nos hospitais e nas consultas de medicina familiar se sente uma grande diferença relativamente ao que eram as práticas de comunicação das últimas décadas do século passado. É notória a preocupação destes profissionais - especialmente dos mais novos - em explicar o que se está a passar com o paciente. Algo que, de certa forma, é também um efeito colateral de terem de tratar muitos "doutores Google"..O ser humano tem uma incrível capacidade de adaptação. Para os nossos avós era impensável serem incomodados com assuntos de trabalho a qualquer momento - dizia-se que era a "vida de médico". Nesse sentido, hoje somos todos médicos....E, em consequência, andamos todos também um pouco menos tranquilos..Velhas patologias com novos gatilhos.O psiquiatra João Miguel Oliveira descreve que "de facto, hoje em dia, fala-se muito em patologias ligadas às tecnologias", mas ressalva que os casos conhecidos "na sua maioria" são doenças "que já existiam anteriormente"..Ainda assim, a medicina atual já reconhece "patologias primárias relacionadas com as tecnologias", nomeadamente a perturbação do uso de videojogos pela internet. É a doença do género "mais estudada e reconhecida" e consiste "clinicamente numa situação semelhante ao uso de substâncias como o álcool ou a heroína, ou ao vulgarmente chamado vício do jogo, mas em que o objeto são videojogos online".."Nestas pessoas existe uma perda de controlo sobre o ato de jogar, passando crescentemente mais horas a jogar, não pensando noutro tema, prejudicando todas as outras áreas da vida (como socialização, trabalho ou escola) e ficando irritadas ou ansiosas quando não jogam", descreve o clínico, médico interno de psiquiatria no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL)..A medicina atual reconhece ainda outros "problemas semelhantes relacionados com o uso da internet em geral, de videojogos que não pela internet, do telemóvel, redes sociais, etc.", prossegue o especialista, em declarações ao DN. "Apesar de serem referidas como novas perturbações, na realidade são novas expressões do grupo de doenças que inclui as dependências e que se podem expressar em múltiplas formas, com ou sem substância, como dependência de compras, de açúcar, de pessoas, de jogo, de chocolate, etc.".Para ajudar estas pessoas "têm sido criadas várias estruturas de apoio, como a consulta de dependências comportamentais do CHPL", da qual João Oliveira faz parte..Se beber água a mais mata....Chama-se "hiper-hidratação" ao fenómeno fatal em que uma pessoa morre por beber água a mais. Simplesmente os eletrólitos do corpo diluem-se em demasia e as células do cérebro deixam de conseguir funcionar..Metaforicamente, o mesmo pode acontecer com o uso da tecnologia, arriscando matar ou, pelo menos, ferir gravemente as relações familiares ou em sociedade. "O estar sempre ligado, em especial ao smartphone, contribuiu para a degradação da interação pessoal e da vulgar cortesia", afirma Joel Postman..No fundo, tudo depende de encontrarmos o equilíbrio nas nossas vidas. Ouçamos o psiquiatra João Oliveira: "Tal como qualquer outra coisa, as novas tecnologias podem ser usadas de forma mais ou menos saudável, mais ou menos produtiva, mais ou menos prazerosa, e podem [até] ser a maneira que a pessoa encontra para lidar com o seu sofrimento". Tirar o melhor partido destas invenções está, em grande parte, nas nossas mãos.