Em dezembro passado, pouco depois de saber que estava nomeada para oito prémios Grammy, a cantora Lizzo foi assistir a um jogo de basquetebol dos LA Lakers e, no momento em que a claque dançava uma das suas músicas, não resistiu a levantar-se para dançar também, divertida, mostrando um peculiar vestido que tinha uma abertura na zona do rabo - do seu enorme rabo. As redes sociais, claro, não perdoaram. Foi criticada e gozada. Mas ela não se deixou intimidar: "Não quero saber o que dizem de mim, fico na minha bolha de positividade. Sabem quanto tempo levei a apaixonar-me por este corpo? O meu rabo era a parte de que eu menos gostava em mim e aprendi a gostar dele", explicou dias depois num programa de televisão. "Temos de ser nós próprios e não deixar ninguém dizer-nos o que devemos fazer, muito menos a internet.".Esta é Lizzo, a artista para quem as oito nomeações para os Grammy, os prémios da indústria musical norte-americana que serão entregues no domingo à noite, são apenas a cereja no topo de um ano em que tudo lhe correu bem. Em 2019 lançou o álbum Cuz I Love You, atuou em Coachella e em Glastonbury, foi ao programa de Ellen DeGeneres, cantou na cerimónia dos prémios MTV, foi elogiada por Elton John, Missy Elliot, Rhianna. "Eu já tinha a minha carreira, fazia as canções de que gostava, tinha os concertos lotados, vivia da música. Para mim já estava bom. Mas neste ano tudo mudou. Eu já era música, agora sou uma estrela", concluía, em dezembro, quando a Time a escolheu como entertainer do ano..É verdade que Lizzo, que tem 31 anos, não é uma novata na música. Melissa Vivianne Jefferson nasceu em Detroit e mudou-se ainda criança para Houston, no Texas. Fez parte do coro da igreja e da banda da escola, onde aprendeu a tocar flauta - era tão boa que chegou a considerar fazer disso a sua profissão e foi para a Universidade de Houston estudar Música. Mas acabou por desistir. Tinha 20 anos e a vida complicou-se. Escrevia letras de raps que ninguém queria ouvir, cantava a troco de comida, sentia-se infeliz, bebia e chegou viver no seu Subaru. Em 2011, sem nada a perder, mudou-se com a amiga Sophia Eris para Minneapolis. Formaram um grupo, as Chalice, que se tornou bastante conhecido na região e chegou aos ouvidos de Prince, que as convidou a participar em Boytrouble, um dos temas do seu disco Plectrumelectrum..Já com o novo nome, Lizzo começou então a sua carreira a solo. E já estava lá tudo. O tema Truth Hurts é de 2017: meio rap, meio canção, ao mesmo tempo lamento de um coração partido e um hino de empoderamento, equilibrando um humor atrevido, um pouco de sofrimento e muita autoconfiança. "Foi a primeira canção minha que eu achei cool. Fiquei orgulhosa dela", disse mais tarde Lizzo. Mas o tema foi um flop e ela pensou em desistir da carreira. "Senti que se deixasse de fazer música ninguém ia dar pela minha falta.".Desta vez não desistiu e 2018 correu-lhe bem: fez imensos concertos, recebeu boas críticas, tinha a agenda cheia e um público indie fiel. Em outubro, Lizzo publicou no Instagram um excerto de um concerto em que tocava flauta e dançava Big Shot, de Kendrick Lamar. O vídeo tornou-se viral. Foi a primeira vez que saboreou a fama, mas nessa altura ela só pensava no disco que estava a preparar: o primeiro single, Juice, saiu em janeiro..Em abril, no mesmo dia em que lançou Cuz I Love You, a Netflix estreou o filme Someone Great, de Jennifer Kaytin Robinson e com Gina Rodriguez e Lakeith Stanfield, que incluía na sua banda sonora o tema Truth Hurts. E foi aquela cena, quando a personagem de Rodriguez, com uma garrafa na mão e só de cuecas, está em casa a cantar "I just took a DNA test/ Turns out I'm 100 percent that bitch", que acabou por mudar a vida de Lizzo. De repente, uma canção com dois anos e que nem sequer estava no disco acabado de lançar era o maior sucesso do momento..Este é o meu corpo, e depois?.Com as suas oito nomeações para os Grammys - mais do que Billie Eilish e Lil Nas X, que têm seis - e com possibilidade de ganhar nas categorias mais conceituadas como melhor álbum (Cuz I Love You), melhor gravação e melhor canção (Truth Hurts, precisamente) e melhor artista novo, Lizzo é a figura musical do momento..E como se não isso bastasse, ela é também uma das maiores lições de body positivity. Depois de uma juventude inteira a sofrer bullying, de várias depressões e de muita terapia, Lizzo aprendeu a usar a música para resolver os seus traumas, muitos deles provocados por um corpo que sempre foi demasiado grande para os padrões convencionais. "Escrevi My Skin com 26 anos, portanto nessa altura eu já tinha chegado a um ponto em que me confrontava com o meu corpo e estava feliz com ele", explicou. As canções de Lizzo podem falar de amor e de desamor, mas são, quase todas, uma celebração e um grito de libertação para todas mulheres. Sobretudo as gordas. Sobretudo as negras. Sobretudo as que não são "padrão"..Em miúda, "via televisão e lia revistas e não me revia em nada. Quando não vês ninguém como tu começas a pensar que tens alguma coisa de errado, porque queres ser como aquelas pessoas, mas isso é impossível", contou numa entrevista à Vogue britânica. Lizzo aprendeu a aceitar o seu corpo e a não pedir desculpa por ser grande. Dança e salta em palco sem constrangimentos. Deixou as largas camisas de flanela e passou a usar roupas vistosas, justas e decotadas, mostrando as pregas da barriga e a celulite das pernas. "Eu sou a minha inspiração", canta ela em Water Me. Agora é ela que aparece na televisão e nas revistas, e só isso já é revolucionário..Mas ao mesmo tempo que canta a autoestima, Lizzo recusa-se a ser um exemplo. Não se trata de ser corajosa ou atrevida, mas sim de ser quem ela é. Apenas isso. Essa é a sua grande mensagem. Até porque este é um caminho que ela também está a percorrer e que tem altos e baixos. Às vezes, admite, não é fácil lidar com as críticas. Às vezes ainda é difícil aceitar as imperfeições. A fama é um fardo pesado de carregar e no último ano houve vários momentos em que se sentiu infeliz e deprimida. Lizzo já está um pouco farta de ter toda a gente a dar opiniões sobre as suas curvas, o seu peso, a sua saúde. "Aceitei a minha dismorfia e segui em frente. Mas eu sou muito mais do que um corpo", diz. No fim de contas, a única coisa que deveria ser importante discutir é a sua música. Afinal, é por causa dela, e não por causa da sua imagem, que está nomeada para os Grammys.