Esta é a América de Childish Gambino: violenta e racista. O vídeo que está a dar que falar
A música começa em tom alegre, evocando os ritmos africanos. Mas, subitamente, Childish Gambino saca de uma arma e dispara sobre um homem de cabeça tapada. Atira para a nuca, como numa execução. E é aqui que tudo realmente começa, já em tom de hip hop, com a declaração: "This is America". Ou seja, isto é a América. Na América a violência é normal - é o que nos parece dizer a nova música (e o vídeo) do norte-americano Childish Gambino que, ao que tudo indica, está a um passo de conquistar o primeiro lugar do top dos EUA, o Billboard Hot 100, destronando Drake que lidera a tabela há 15 semanas, primeiro com God's Plan e depois com Nice for What.
Numa semana, o vídeo de This Is America teve mais de 91 milhões de visualizações no YouTube e mais 27 milhões de streams só no Spotify. De acordo com os dados da Nielsen, a canção teve até agora mais de 50 milhões de streams só nos Estados Unidos e 60 mil downloads pagos.
Childish Gambino é o alter-ego musical do também ator, comediante, escritor, realizador, produtor e DJ Donald Glover, de 34 anos. Aos 23 anos, foi contratado por Tina Fey como argumentista da série 30 Rock, participou como ator na sitcom da NBC Community e, entre muitos outros projetos, destaca-se a série Atlanta, de que é criador e principal intérprete (no canal FX, nos EUA). A 24 de maio, quando estrear Solo: A Star Wars Story iremos vê-lo no papel de Lando Calrissian.
Mas, para já, está a dar que falar com este This Is America - quatro minutos de um falso mas brilhante plano-sequência onde se fala da violência nos EUA e do racismo, do crime e da discriminação social, ao mesmo tempo que alguns dançam felizes.
Para se compreender completamente o que acontece naquele vídeo é preciso vê-lo pelo menos duas vezes. Uma vez, com o olhar fixo em Childish Gambino, no seu modo de dançar, na expressão do rosto, no modo como segura as armas e dispara. Outra vez, para ver tudo o que se passa atrás dele e à sua volta. Os miúdos com uniforme da escola em coreografias inspiradas nas danças tradicionais africanas e americanas (Sherrie Silver foi a coreógrafa responsável). Os polícias. O coro de gospel. Pessoas que correm de um lado para o outro, perseguições, galinhas, raparigas em bicicletas, dinheiro pelo ar, carros incendiados, assaltos, fumo. No piso de cima (fazendo lembrar a galeria de uma prisão), homens de cara tapada filmam o que se passa. Uma pessoa em cima de um cavalo. Um homem, com um saco enfiado na cabeça, a tocar guitarra. Uma rapariga em cima do capô de um carro (a rapariga é a cantora SZA)
O vídeo foi apresentado na semana passada, no programa de televisão Sarturday Night Live, no qual Donald Glover foi o convidado musical. Ao site TMZ, o músico recusou-se a explicar o que tudo aquilo significava: "Não me cabe a mim dizer". De então para cá, têm-se multiplicado as análises àqueles quatro minutos. E há interpretações que são consensuais. Por exemplo, que o cuidado extremo com que são manipuladas as armas (depois de usadas, alguém as vem recolher com um pano vermelho) é uma referência à legislação sobre o livre uso de armas nos EUA, ou que o ataque ao coro de gospel será uma referência ao massacre ocorrido na igreja de Charleston, em 2015, e representará, de uma forma mais lata, a violência de que os afro-americanos são alvo.
Que as imagens não nos distraiam da qualidade musical de This Is America e das palavras que Childish Gambino canta. Como na cena final, quando percebe que, se quer sobreviver, não lhe basta só "não adormecer", a única solução é mesmo fugir:
"You just a black man in this world
You just a barcode, ayy
You just a black man in this world
Drivin' expensive foreigns, ayy"
O videoclipe foi realizado por Hiro Murai, que é também o realizador principal de Atlanta, a série criada por Donald Glover (é produtor, argumentista, ator e também realiza alguns episódios) sobre a cena do rap na cidade de Atlanta, EUA. O primeiro episódio de meia hora foi para o ar a 6 de setembro de 2016 e até agora houve duas temporadas com um total de 21 episódios (mas já se fala na possibilidade de haver uma terceira temporada). Atlanta conta ainda com as interpretações de Brian Tyree Henry, Lakeith Stanfield e Zazie Beetz e já ganhou dois Globos de Ouro - para melhor série e melhor ator (Glover) - e dois prémios Emmy.
A par de Atlanta, Donald Glover tem mantido vivo o seu alter ego musical, Childish Gambino. Redbone, o tema mais conhecido do álbum Awaken My Love! (2016), era a banda sonora da abertura de Get Out, o filme de Jordan Peele que ganhou o Óscar de Melhor Argumento Original. Redbone também ganhou um prémio Grammy para R&B e chegou a estar nomeado para Melhor Gravação do Ano.
Se, em 2017, a revista Time colocava Donald Glover na sua lista dos 100 mais influentes do mundo, depois deste This Is America (e do álbum que irá sair ainda este ano) é quase certo que voltará a ser uma das figuras de 2018.