Esperanças feridas, fúrias à solta

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Os efeitos da guerra, acutilantes como uma lâmina de aço, dilaceram também as crenças e valores. A guerra que lavra na Ucrânia já feriu duas esperanças: a de que os povos e as nações convergiam na urgência de travar a destruição da ecologia planetária; a crença de que depois de a Guerra Fria ter terminado pacificamente nenhum conflito bélico ousaria ultrapassar a linha vermelha do uso de armas nucleares.

Essas duas esperanças procuravam responder aos dois problemas centrais contemporâneos, resultantes da desmesura do nosso poderio tecnológico. Tanto na relação da civilização com a natureza, como nos conflitos bélicos entre sociedades humanas, registou-se uma metamorfose radical em vertiginoso tempo histórico. A natureza, que antes era uma ameaça para a humanidade, passou a ser ela a vítima da nossa tecnologia predatória. Na guerra, a questão milenar era a da escassez dos meios para infligir dano ao inimigo. Hoje, o problema reside no excesso de capacidade da tecnologia letal (overkill). Todas as guerras envolvendo potências nucleares passaram a constituir-se como exercícios de contenção. Foi o consenso entre Moscovo e Washington sobre a necessidade de evitar uma destruição mútua assegurada que evitou o holocausto atómico no final da Guerra Fria. Quando surgiu e qual o segredo desse incremento exponencial de poderio humano? Foi na Europa que a revolução da modernidade registou a sua patente, mas em escassos séculos o segredo do poderio europeu disseminou-se pelo orbe inteiro. A sua fórmula reside na combinação entre Estado, tecnociência e economia capitalista de mercado. Esse triângulo prometeu um poder ilimitado a quem o detivesse. Movidas pelo afã do crescimento veloz, da aceleração e do poderio sob todos os modos, as elites modernas foram buscar onde quer que pudesse ser encontrada, incluindo as profundezas da terra e do mar, a magia obscura dessa energia imensa do carbono fossilizado, sob as formas de carvão, petróleo e gás natural.

A guerra exerce violência sobre os corpos e os espíritos. A verdade e a lucidez tendem a ser substituídas pela vertigem do ódio. O cuidado com o longo prazo fica esmagado sob o peso da gratificação da vingança imediata, por mais sombria que ela seja. Só resistem os baluartes e fundações mais sólidas. Mesmo sem termos a medida total da tragédia em curso, parece improvável que a esperança de que a humanidade se poderia unir para se salvar a si mesma e ao planeta, ou a esperança de que jamais uma guerra poderia mergulhar no abismo da autodestruição universal, integrem esses baluartes.

Quatro meses de guerra transformaram em mera ficção, a promessa de que os Estados estão realmente empenhados em evitar que a Terra se transforme numa fornalha inabitável ainda neste século. Neste momento, a Europa volta ao carvão e por todo o mundo os projetos de expansão de petróleo e gás natural, incluindo a abertura de novas jazidas, vão, provavelmente, atirar para o rol das mais sinistras mentiras da história as metas de redução dos gases de estufa do Acordo de Paris. Quanto à esperança de que a humanidade seria capaz de evitar o aniquilamento nuclear, será mais pudente esperar pelo resultado do encarniçamento crescente do atual conflito. A Ucrânia está a ser devastada, mas como a Rússia e os EUA/NATO parecem já não partilhar o imperativo da contenção entre potências nucleares, uma escalada do conflito, cujos contornos estão para lá da adjetivação, permanece no horizonte do possível.

Professor universitário

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