Erdogan e o segundo século turco

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Na qualidade de presidente, juro proteger a existência e a independência do Estado, a integridade da pátria, a soberania incondicional da nação, o Estado de direito e o princípio de uma república laica", afirmou ontem Recep Erdogan numa cerimónia a que assistiram numerosos chefes de Estado e de governo, e também o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Mas muitas mais capitais, mesmo não tendo feito deslocar as suas principais figuras a Ancara, terão ficado discretamente satisfeitas com a reeleição há uma semana de Erdogan, mais não seja porque negociar com uma pessoa é sempre mais fácil do que com seis. Não esquecer que o candidato da oposição, Kemal Kilicdaroglu, apesar de oriundo do CHP, o Partido Republicano do Povo, só conseguiu 48% dos votos na segunda volta por contar com o apoio de uma aliança anti-Erdogan que integrava desde nacionalistas a autonomistas curdos, passando por dissidentes do AKP, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento.

Quem conhece a história da moderna Turquia - a república proclamada por Mustafa Kemal Ataturk faz 29 de outubro cem anos -, sabe que em termos de política externa os interesses nacionais estão bem definidos e não dependem de quem governa, seja os laicos do CHP, seja os islamo-conservadores do AKP, o partido de Erdogan, que ganhou as legislativas que coincidiram com a primeira volta das presidenciais, no dia 14 de maio.

Uma dessas prioridades é combater qualquer plano de criação de um Curdistão, e se com Erdogan nos últimos anos as tropas turcas entraram na Síria para contrariar a expansão territorial das milícias ligadas ao PKK, na década de 1990, época em que os militares tutelavam os governos laicos, era comum o exército turco entrar no Norte do Iraque para atacar as bases do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, mais conhecido pela sigla PKK. Mesmo a complexa cooperação com a Rússia, que parece bizarra sendo a Turquia um país da NATO desde 1952, tem similitudes com a política pragmática de Ataturk nos primeiros anos da república, quando a União Soviética, não sendo uma aliada, servia de contraponto às potências ocidentais, que tinham tentado esquartejar o que restava do Império Otomano, derrotado na Grande Guerra.

A situação geopolítica da Turquia, país que tanto está nos Balcãs como no Cáucaso e no Médio Oriente, é uma fonte de constantes desafios para a sua liderança, mas explica também a importância que o país tem na cena internacional. Não por acaso, com os últimos votos a ser apurados, na noite de 28 de maio Erdogan recebeu telefonemas de felicitações dos presidentes russo e francês. Mais importante ainda terá sido a conversa que Erdogan teve com o americano Joe Biden, pois foi abordada a questão da venda de F-16 à Turquia. Alguns senadores americanos têm tentado condicionar o negócio dos aviões ao sim da Turquia à adesão da Suécia à NATO. Ancara exige a Estocolmo tolerância zero com ativistas pró-PKK no país.

Depois de o Tratado de Lausana ter substituído o de Sèvres, Ataturk fez um esforço de ocidentalização da nova Turquia, procurando modernizar o país para o tornar mais forte. O islão foi remetido para a esfera privada, houve uma emancipação feminina notável e o alfabeto latino substituiu o árabe. Depois da Segunda Guerra Mundial, e perante a ameaça expansionista de Moscovo (com que os turcos lidam há séculos), a Turquia ligou-se oficialmente ao campo ocidental através da NATO. Tentou também a adesão à UE, antes e com Erdogan, mas enfrentou demasiados obstáculos, e de certo modo a complexa relação atual com a Rússia, de conflito e cooperação, tem aí algumas explicações. Mas é evidente a vocação ocidental dos turcos, por muito tentadoras que sejam opções como o panturanismo (uma utópica unidade dos povos túrquicos) ou o chamado neo-otomanismo, visível no apoio à Primavera Árabe, numa tentativa de reconquistar influência no Norte de África e Médio Oriente. Este último explicará o envolvimento militar hoje na Líbia e, em parte, na Síria.

A vocação ocidental da Turquia não pode ser desprezada pelos Estados Unidos e pela UE, por muitas críticas que possam fazer ao autoritarismo de Erdogan na segunda metade das suas duas décadas à frente do país. Estamos a falar de um país de 85 milhões de habitantes, uma das 20 maiores economias do mundo (11.ª em PPC) e o segundo exército da NATO). Os resultados eleitorais, com a recente vitória de Erdogan a ser a mais curta da sua carreira política como primeiro-ministro e presidente, são simultaneamente um sinal da força da sociedade turca e um alerta ao presidente que há correções a fazer - o próprio Erdogan falou já da necessidade de acarinhar a unidade nacional. Há pois que esperar para ver como vai o presidente preparar a Turquia para o seu segundo século de vida.

O seu apoio à Ucrânia mas sem fazer sanções à Rússia é um exemplo dos compromissos complicados da diplomacia turca, tal como o é ter na cerimónia de posse os líderes do Azerbaijão e da Arménia, mas é a soma de pragmatismo e de experiência de Erdogan que alimenta expectativas. Stoltenberg esteve em Ancara, Biden na América declarou-se convicto da adesão da Suécia à NATO. Provavelmente haverá desenvolvimentos antes da cimeira de Vilnius, em julho, mas sempre com os interesses nacionais turcos como pano de fundo.

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