Eram heróis no combate ao tráfico pela PJ. Agora são julgados por corrupção

Dois antigos inspetores do tráfico de droga da Judiciária, onde se distinguiam pelo número de apreensões, começam a ser julgados por associação criminosa e corrupção. São suspeitos de receber dinheiro de colombianos
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Carlos Dias dos Santos tinha fama de obter bons resultados como coordenador de investigação criminal, no combate ao tráfico de estupefacientes da Polícia Judiciária. Esta terça-feira começa a ser julgado por corrupção, dois anos após ter sido detido na Operação Aquiles que leva agora a julgamento 29 arguidos, em que se incluem ainda o ex-inspetor-chefe da Unidade Central de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ, Ricardo Macedo, e o cabo da GNR, José Baltazar da Silva, do destacamento de Torres Vedras. Os três elementos das polícias, que estão em liberdade, são acusados de colaborarem com traficantes de droga sul-americanos a troco de dinheiro.

O julgamento já esteve para ser iniciado em março e em setembro, mas problemas relacionados com agendas de advogados e de um juiz do coletivo levaram a que fosse adiado para esta terça-feira, às 09.30 no Campus da Justiça, em Lisboa. Depois de ter ido a instrução, o juiz Carlos Alexandre manteve a quase totalidade das acusações formalizadas pelo Ministério Público. Houve duas mudanças relacionadas com a "alteração da qualificação jurídica dos factos", em que arguidos deixam de responder pela coautoria dos crimes, passando a ser por cumplicidade. Um dos arguidos que beneficiou da alteração foi o cabo da GNR José Baltazar da Silva.

Os dois ex-elementos da PJ são acusados de tráfico de droga agravado, associação criminosa com vista ao tráfico e corrupção passiva para prática de ato ilícito, devido a ligações a poderosos traficantes de droga colombianos, recebendo dinheiro em troca de informações sobre as operações da polícia, segundo o MP. A acusação, concretizada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), refere ainda que Dias dos Santos e Ricardo Macedo aproveitavam as informações que obtinham dos traficantes para apreender droga e deter suspeitos que integrariam outros grupos ligados ao tráfico. Assim conseguiam manter uma imagem de agente empenhado e obter o reconhecimento dos superiores.

Suspeitas desde 2006

O inquérito em causa foi aberto em 2013, com detenções consumadas em 2016, mas as suspeitas sobre este coordenador, já reformado, datam de 2006. Na acusação da 'Operação Aquiles' lê-se que, em outubro de 2006, a PJ estava posse de informações que evidenciavam "fortes suspeitas" de ligações do então coordenador de investigação criminal a uma rede de traficantes de droga colombiana.

Foram elementos da Unidade de Prevenção e Apoio Tecnológico da PJ que, entre outubro de 2006 e janeiro de 2007, transmitiram informações à hierarquia da PJ, obtidas através de vigilâncias e recolha de informações, que "evidenciavam fortes suspeitas de ligações ao mundo do crime" de Carlos Dias dos Santos. Concretamente faziam a ligação de Carlos Dias dos Santos com o sul-americano Jorge Manero de Lemos, um conhecido das polícias pela sua atividade de tráfico de droga. No mesmo período, um agente encoberto da PJ, numa conversa com um suspeito de nacionalidade paraguaia, ficou a saber que a organização criminosa que exportava cocaína "tinha um informador na Polícia Judiciária" que revelava as movimentações da polícia no combate ao narcotráfico.

Mas os alertas não eram só nacionais. As autoridades norte-americanas que investigam o tráfico de droga (a DEA) informaram a PJ, em 2007, que um dos seus elementos que colaborava com as organizações criminosas da América do Sul tinha a alcunha de "la maquina". Isto fez soar alarmes e, segundo o MP, elevar as suspeitas sobre Dias dos Santos - é que este investigador era conhecido na PJ por usar muitas vezes a expressão "és uma máquina". A DEA estava convencida que uma operação conjunta entre as duas polícias acabou frustrada por uma "dica" que chegou aos traficantes, que cancelaram o embarque da droga para a Europa.

Já decorriam investigações à atuação de Dias dos Santos - que acabaram incorporadas neste inquérito - quando em 2013 uma testemunha foi decisiva. Trata-se de António Benvinda, um ex-inspetor da PJ que depois se ligou ao mundo do crime, que entrou em contacto com a Judiciária para expor factos que constam agora da acusação. Benvinda, e a família, estava ser ameaçado por um cartel colombiano, por causa de carregamentos de cocaína que não tinham chegado ao destino, e decidiu contar o que sabia em troca de proteção. A revista Sábado noticiou que António Benvinda esteve no programa de proteção de testemunhas. É um dos 29 arguidos do processo.

Arguidos em paradeiro desconhecido

No rol de arguidos constam vários traficantes de droga e alguns nunca foram ouvidos nem se conhece o seu paradeiro pelo que não estarão em tribunal quando começarem a ser julgados. É o caso de Franclim Lobo, considerado um dos maiores traficantes de droga portugueses. No ano 2000 chegou a ser condenado a 25 anos de prisão mas o julgamento foi anulado e na repetição acabou por ser absolvido. Existe um mandado de detenção internacional pendente. O narcotraficante tinha residência em Espanha mas é casado com uma marroquina e as autoridades não o conseguem localizar.

Os dois elementos da PJ, e o militar da GNR que auxiliava Ricardo Macedo, são as peças centrais de corrupção nos organismos policiais. Diz o MP que, além de darem informações às organizações criminosas que protegiam, através dos contactos com os pretensos informadores, por vezes recebiam informações das mesmas organizações relativamente ao tráfico desenvolvido por organizações "concorrentes". E faziam as detenções e apreensões que permitiam manter um estatuto de competência na PJ. No caso dos elementos da PJ, foram detetados vários depósitos em numerário, que a acusação diz terem origem nos subornos, assim como o recurso a contas bancárias de familiares e a venda de uma casa no sul de Espanha por Dias dos Santos que os investigadores acreditam ter sido paga com o dinheiro colombiano. Ricardo Macedo é suspeito de ter ido a Marrocos informar um narcotraficante de uma operação da PJ com vista à sua detenção que saiu frustrada devido à ação do ex-inspetor.

Neste processo, o MP acusou 29 arguidos por crimes de tráfico de droga, associação criminosa e corrupção com vista ao tráfico e corrupção passiva para prática de ato ilícito. No decurso da investigação, revelou o DCIAP, foram apreendidos mais de 900 quilos de cocaína e mais de 30 quilos de haxixe, bem como diversas viaturas e outros valores, designadamente dinheiro, no montante de várias dezenas de milhares de euros.

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