Entre a Miss Mundo, as folies bergère e o Super Bowl

O que é que a Victoria"s Secret tem? Marca de lingerie que se fez estrela vista por gente da moda e da pub. Desfile anual da marca é hoje, em Paris, e conta com a portuguesa Sara Sampaio
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"As mulheres mais bonitas do mundo a desfilar lingerie com asas." É, diz o ex-publicitário e escritor Pedro Bidarra, o que fica do desfile anual da Victoria"s Secret. "É um bocadinho pimba mas dá prazer. E é uma grande ideia. Tem muito valor porque vende muito. Conseguiram fazer do desfile um acontecimento mediático, pop, quase uma espécie de Super Bowl [final do campeonato de futebol americano]. Saíram da coisa pequenita dos anúncios, da funcionalidade e transformaram-se numa marca estrela, vedeta, como dizia o Séguéla [publicitário francês]."

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Um espetáculo, sem dúvida. Mas de que tipo? É moda? O produtor de moda Paulo Gomes, diretor da Manifesto Moda, acha que não. E não poupa desprezo pelo fenómeno. "É Las Vegas. Representa a moda no que tem de pior. É o suprassumo do universo da mais-valia da pura aparência e do estatuto, tudo construído à volta das modelos. Para nós, que trabalhamos em moda, é um concurso de misses. Ninguém se lembra de reparar no que estão a mostrar, até podem repetir as peças que ninguém nota." A também produtora de moda Isabel Branco, diretora do Portugal Fashion, concorda. "Aquilo é um espetáculo muito bem feito com mulheres muito bonitas, com corpos lindos. É Folies Bergère [cabaré parisiense]."

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Uma posição que se encontra com a crítica feminista ao desfile, exemplificada pela colunista do jornal britânico The Guardian Hadley Freeman numa coluna de 2014 intitulada "O verdadeiro segredo da Victoria? Fazer o concurso Miss Mundo parecer chique." E, em subtítulo, ia ainda mais longe: "O "desfile de moda" da marca de lingerie tem o ar de uma festa na mansão Playboy mas sem o velho tarado de roupão de seda." Criticando o facto de os media em geral, incluindo o The Guardian, cobrirem extensivamente algo que "nada mais é do que um gigantesco anúncio publicitário de uma marca mediana de roupa interior", comenta como "publicações femininas como a Vogue, que não se aproximariam do concurso Miss Mundo a menos de cinco quilómetros, publicaram infindáveis fotos do evento". E prossegue: "Não há realmente nenhuma diferença entre a Miss Mundo e o desfile da Victoria"s Secret, exceto que as mulheres podem falar durante o concurso e usam roupa. Cobri desfiles de moda para este jornal durante quase uma década e também assisti a uma edição da Miss Mundo e acho que sei melhor do que a maioria a diferença entre um desfile de moda e um concurso de beleza - e está na roupa e no foco. O foco no desfile da Victoria"s Secret está decididamente no corpo das modelos, porque é tudo o que tem para oferecer."

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Paulo Gomes assente. "Aquilo é basicamente um rating de modelos, uma coisa interna do mercado das modelos. É o carimbo, a certificação de que chegaram ao topo." Isabel Branco corrobora: "Todo o modelo quer fazer parte daquilo, e há uma série de fatores que contam para entrarem no casting, incluindo o número de seguidores, festas a que vão, até os namorados que têm."

É, afinal, a recriação, desta vez por uma marca, da noção de top model, uma categoria que existiu nos anos 1990 com uma mão-cheia de nomes - Cindy Crawford, Linda Evangelista, Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Elle MacPherson e Stephanie Seymour, a primeira modelo famosa da VS - que chegaram a ofuscar as estrelas de cinema. Mas com uma diferença: "Estas são as modelos mais comerciais", opina o diretor da Manifesto Moda. "Sexys, bombásticas, atléticas. E risonhas. Na maior parte dos desfiles as modelos não riem."

Pedro Bidarra, apesar de se confessar um apreciador - "mulheres lindas e lingerie, o que há para não gostar?" -, concorda que "aquilo é sempre a mesma coisa" e que "veio substituir o concurso de misses". É, conclui, "uma marca a vender uma ideia de beleza. E tornou-se um blockbuster, um campeão de vendas. Em termos publicitários, num mercado fragmentado como o atual, criou aquilo a que se chama uma imagem top of the mind". Ou seja, algo que fica, que ressoa, que toda a gente reconhece. "Para uma marca de lingerie mediana, popular, a exposição mediática é fundamental. Para o segmento de luxo não, porque funciona no passa-palavra. Aqui é, como dizia Wilde, não importa que falem bem ou mal, o que importa é que falem."

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