A estátua mostra um homem de capacete na cabeça e espada à cintura, braços cruzados e atitude imponente. A placa em baixo identifica-o como Gaspar Corte-Real, navegador português que chegou à Terra Nova no século XVI, "no início de uma era de grandes descobertas". O monumento está localizado em frente ao Confederation Building (a sede do governo) em St. John, capital de Terra Nova e Labrador, no Canadá, tendo sido doado por Portugal em 1965, como "agradecimento pela hospitalidade" daquela região aos pescadores portugueses, lê-se também na placa. É essa a estátua que agora está a ser contestada por um grupo de cidadãos que não quer ter ali um monumento a um homem que, de acordo com os documentos da época, terá estado envolvido na escravatura de 57 indígenas. Será esta alegação suficiente para deitar abaixo uma estátua?."Não sabemos se ele terá de fato escravizado indígenas, quem seriam esses indígenas e quantos seriam ao certo. Mas sabemos que quando a estátua foi erigida em 1965 essa informação fazia parte da narrativa oficial sobre aquela personagem e não foi tida como suficientemente relevante ou grave para que ele não fosse considerado um herói", explica ao DN o historiador Gilberto Fernandes. "Ou seja, a estátua foi feita para celebrar um homem que se pensava que tinha realmente escravizado indígenas.".E se isso era irrelevante em 1965, hoje em dia é relevante. "Sendo ou não sendo verdade que ele assim o fez, a narrativa oficial celebrada pela estátua é a de um homem que escravizou", diz este historiador que, não sendo especialista em História dos Descobrimentos, como ele próprio faz questão de sublinhar, é talvez aquele que mais sabe sobre a estátua de Gaspar Corte-Real..Licenciado em História Moderna e Contemporânea no ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa, Gilberto Fernandes mudou-se em 2004 para o Canadá onde fez o mestrado na Universidade Toronto e depois o doutoramento na Universidade de York, dedicando-se ao período após a Segunda Guerra Mundial, investigando sobretudo as questões ligadas às migrações. A sua tese de doutoramento foi publicada em 2019 com o título This Pilgrim Nation: the Making of the Portuguese Diaspora in Postwar North America e aborda a história das comunidades portuguesas no Canadá e nos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria e da Guerra Colonial portuguesa..Quem foi Gaspar Corte-Real?.O açoriano João Vaz Corte-Real terá sido um dos primeiros navegadores a chegar à América do Norte, ainda durante o século XV. Os seus filhos, Gaspar, Miguel e Vasco Anes Corte-Real seguiram-lhe as pisadas..De acordo com testemunhos da época, Gaspar Corte-Real participou numa primeira expedição à Gronelândia em 1500 e, encontrando o mar gelado, terá tentado voltar numa outra expedição que partiu de Lisboa em 1501 com duas ou três embarcações, uma delas comandada pelo irmão Miguel - enviados por D. Manuel I em busca da Passagem do Noroeste, que os poderia conduzir à Ásia..Os irmãos terão, eventualmente, chegado à Terra Nova. Miguel regressou a Lisboa, trazendo um grupo de nativos capturados, enquanto Gaspar continuou a explorar a costa de Labrador. Gaspar Corte-Real não voltou a casa e ter-se-á perdido no mar, pouco se sabendo sobre a sua viagem..Os documentos que referem a existência dos nativos capturados nesta viagem são três cartas escritas por italianos a morar em Lisboa (um deles era o embaixador de Veneza, Pietro Pasqualigo) que referem a chegada a Portugal de duas embarcações da expedição de Corte-Real que trariam escravos indígenas - uma delas traria 7 e outra 50 indígenas (homens, mulheres e crianças). Existem muitas dúvidas sobre o número exato de indígenas, sobre o local onde terão sido capturados e até sobre o objetivo com que foram trazidos - acreditando-se no entanto que seriam feitos escravos..Antes de ter uma estátua em St. John, Gaspar Corte-Real foi incluído no Padrão dos Descobrimentos, inaugurado em 1960, ao lado de outras figuras históricas, como Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque ou Gil Eanes..Uma estátua como arma diplomática.No entanto, de acordo com Gilberto Fernandes, professor da Universidade de York, a história da estátua é ainda mais interessante do que a história de Gaspar Corte-Real. Este historiador tem investigado a forma como, na segunda metade do século XX, as estátuas têm sido usadas pela diplomacia portuguesa como forma de fazer política internacional - aquilo a que se chama geralmente soft power. "Um país tão pequeno e com tão poucos recursos naturais e económicos acaba por usar muitas vezes os recursos culturais, como a história ou a língua, para se promover politicamente", explica..Isso era assim no Estado Novo e continua a ser assim na atualidade. "Não é por acaso que existem estátuas de exploradores portugueses por todo o mundo, incluindo aqui na América da Norte", diz, dando como exemplo não só a estátua de Gaspar Corte-Real como também a Rocha de Dighton (com uma inscrição de Miguel Corte-Real), a estátua de Juan Rodriguez Cabrillo (um outro navegador) na Califórnia e várias estátuas do Infante Dom Henrique.."Muitas destas iniciativas foram promovidas pela elite das comunidade luso-americanas e luso-canadianas como forma de elevar o seu perfil cultural, apresentando-se como herdeiros da epopeia civilizacional dos portugueses no mundo", diz. Ao mesmo tempo que se apresentam publicamente como europeus e brancos, que estiveram supostamente na fundação de países como o Canadá e os EUA, distinguem-se da comunidade hispânica..Noutros casos - como o da estátua de Gaspar Corte-Real - trata-se de uma iniciativa institucional. Na década de 1960, Portugal estava envolvido em guerras na África e sofria intensa pressão das Nações Unidas porque era uma das últimas ditaduras europeias. "O governo federal canadiano era um dos poucos aliados da NATO que eram fortes opositores do império de Portugal, exigindo a concessão gradual de independência às suas colónias.".As estátuas serviam o Estado Novo para, num período de Guerra Fria, sublinharem a presença portuguesa no mundo e integravam-se num "discurso luso-tropicalista" que defendia a superioridade do "modelo imperialista português" por assentar na miscigenação..Mas além disto tudo, havia ainda neste caso as motivações económicas. Portugal queria ter o privilégio de continuar a pescar nas águas da Terra Nova e, para isso, alegava o seu direito histórico - uma vez que já ali pescava desde o século XVI. Uma das ações de propaganda do regime foi, portanto, a promoção dos irmãos Corte Real, Gaspar e Miguel, como figuras fundadoras importantes na colonização da América do Norte, legitimando assim o papel de Portugal na história do Canadá e a sua presença naquelas águas..O embaixador português no Canadá era Eduardo Brazão (filho do conhecido ator com o mesmo nome) e foi ele que promoveu a figura de Gaspar Corte-Real, não só por meios diplomáticos mas também publicando dois livros sobre a chegada dos portugueses à Terra Nova. A sua tese sobre a prioridade portuguesa contrariava a versão oficial canadiana, que atribuía o feito ao veneziano Giovanni Caboto, ao serviço de Henrique VII de Inglaterra.Em 1963, Brazão fez uma visita oficial a St, John, onde foi recebido com pompa e circunstância pelo premier (chefe do governo regional) Joseph Smallwood. Foi aí que o embaixador anunciou que Portugal iria oferecer a St. John uma estátua para celebrar a ligação do país com a Terra Nova. Smallwood recebeu com entusiasmo a proposta e "prometeu colocá-lo em frente à nova assembleia legislativa em St. John, cercá-lo com solo português e proclamar um dia anual de Portugal na província", explica o investigador, especialista em história da Diáspora portuguesa e em imigração na América do Norte. Smallwood até convidou António Salazar para participar na inauguração, o que acabou por não acontecer. "Para Portugal, foi uma tremenda vitória ter esta proclamação formal oficial", conclui..A peça foi esculpida por Martins Correia, artista frequentemente utilizado pelo gabinete de propaganda do Estado Novo, que tinha já participado na Exposição do Mundo Português e nas Exposições de Arte Moderna do S.P.N./S.N.I.. São de sua autoria, por exemplo, os monumentos a Camões (em Goa) e a Garcia de Orta (Instituto de Medicina Tropical, Lisboa, 1958),.Havia várias nações europeias que reivindicavam direitos históricos para continuar a pescar nas águas territoriais do Canadá. Nem todos o conseguiram mas, em 1965, quando a estátua foi inaugurada, Portugal já tinha conseguido os privilégios que queria no mar da Terra Nova e as relações diplomáticas entre Portugal e o Canadá acabaram por esfriar. "Acho que este é um bom exemplo de como a história foi usada para conseguir proveitos políticos", conclui Gilberto Fernandes..Que memória devemos celebrar?.Uma estátua é só uma estátua, dirão alguns. Uma figura de pedra que é quase sempre ignorada por quem por ela passa. Muitas vezes nem sabemos quem são aquelas figuras ali representadas. Mas uma estátua também é um símbolo, sublinha Gilberto Fernandes. "As estátuas são statements [afirmações] quase sempre oficiais. Mais do que sobre o passado, as estátuas dizem-nos mais sobre o presente e sobre as ideias que queremos que perdurem para o futuro. São afirmações políticas. Que tipo de sociedade queremos ser? Que tipo de memória devemos celebrar?" São estas as questões que estão a ser levantadas hoje um pouco por todo o mundo - quer seja com o derrube da estátua do traficante de escravos Edward Colston em Bristol, quer seja com a vandalização de uma estátua de Padre António Vieira em Lisboa.."Estas estátuas celebram acriticamente narrativas simplificadas de pessoas e eventos do passado, e têm como objetivo transmitir ideias sobre a nossa sociedade, cultura etc. que os governos (ou aqueles que as inauguram) desejam fixar em bronze para o futuro", escreveu Gilberto Fernandes na sua conta de Twitter. "Elas dizem mais sobre o presente e as esperanças para o futuro do que sobre o passado. É por isso que as estátuas e outros monumentos históricos são relevantes e muito contestados, como devem ser. Isso também significa que o significado atribuído a esses monumentos pode mudar ao longo do tempo."."Não sei se o Corte-Real atinge o limiar da vilania histórica que justificaria a queda da estátua, mas se é para celebrar a ligação histórica que existe entre os portugueses e a Terra Nova, a memória afetiva e real que existe entre os pescadores, então eu diria que é má ideia fazê-lo com a estátua de um homem que está ligado a uma longa história de colonialismo e de supremacia branca", afirma o historiador..Talvez fizesse sentido reinstalar a estátua num outro local e criar um centro de interpretação - contextualizá-la e transformá-la num objeto de museu, em vez de ser um objeto de homenagem pública, defende. "A verdade é que não há estátuas de vilões, estando ali naquele local ele é sempre visto como um herói", diz. Não é necessário destruí-la, mas talvez seja o momento de olhar para ela de outra maneira..Foi também isso, afinal, que disse o atual premier de Terra Nova e Labrador, Dwight Ball: "Há vários monumentos na região que não refletem o que somos hoje. Temos de estar abertos a uma mudança, trabalhando com as autoridades, grupos públicos, historiadores e com o próprio governo. Façam a pesquisa, a análise. Estamos preparados para fazer a mudança".