A discussão já leva séculos de existência: qual deles o melhor, o ensino público ou o privado? Divide pais, professores e alunos, leva camadas de argumentos tão distintos entre si que a tornam sempre inacabada. Mas há certezas no seio dos especialistas na área da educação: ergue-se uma longa distância entre um setor e outro. E os quilómetros tendem a esticar mais ainda entre eles, desde que Portugal se debate com a atual pandemia de covid-19. Com o encerramento das escolas, em março, tanto as públicas como as privadas foram obrigadas a entrar numa maratona cujo destino e prazo ainda são desconhecidos, mas entre umas e outras houve quem corresse mais e, por outro lado, quem corresse melhor..Nos relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) divulgados ao longo de vários anos, Portugal aparece frequentemente referenciado como "um dos países onde há uma relação muito estreita entre os resultados [dos alunos] e o seu contexto social". Por isso mesmo, não há estranheza a colher quando o assunto é "a prevalência dos primeiros lugares do ensino privado nos rankings dos exames nacionais" de 2019, diz António Teodoro, diretor do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona..Contudo, importa lembrar que desde então as escolas debruçaram-se sobre o maior desafio da sua história - uma pandemia mundial que abalou o sentido de educar -, obrigando todos os alunos e professores a aprender e a ensinar à distância. E nem por isso o ensino público e privado ficaram em pé de igualdade, o que a investigadora e secretária-geral do Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa), Isabel Flores, considera não ser possível "numa sociedade extremamente desigual como é a portuguesa"..Pandemia só aumentou diferenças.Se no ensino privado os alunos "cujas famílias têm mais recursos tiveram acesso rápido a computadores, rede de internet, várias tipologias de software e a explicadores particulares", além da garantia da "qualidade das suas casas e no apoio emocional e escolar que receberam das suas famílias", o ensino público funcionou a várias velocidades. Ainda que, por outro lado, acrescenta António Teodoro, o setor privado se tenha deparado com uma "pressão" para fazer que "as famílias continuassem a pagar as mensalidades". O grande teste passou por encontrar estratégias imediatas para justificar o investimento dos encarregados de educação..Desde logo que a discussão se centrou na disponibilidade de acessos ao digital, um dos únicos meios de contacto entre alunos e professores (além do envio de fichas de trabalho por correio, através das autoridades de segurança ou juntas de freguesia, como aconteceu em determinados casos). E, para os alunos da escola pública, "a barreira digital foi muito maior, nomeadamente naquelas localizadas em meios mais desfavorecidos". Até porque, lembra o diretor do CeiED, a digitalização na educação estagnou desde que o governo de José Sócrates levou em 2008 os computadores Magalhães a toda a comunidade educativa, alcançando um rácio de um aluno por computador no 1.º ciclo (atualmente de sete). Para o ano letivo que se segue e que se espera ver começar entre 14 e 17 de setembro, os planos podem finalmente voltar a ganhar forma: o governo já demonstrou a intenção de injetar 400 milhões para a universalização da escola digital..No entanto, discutir a capacidade de dar um computador ou aulas através da televisão (com a transmissão do #EstudoEmCasa na RTP Memória) a um aluno não é suficiente para garantir equidade entre todos, reforça António Teodoro. "São sempre remendos" perante as dificuldades. O ambiente que os circunda é também parte integrante e significativa do sucesso - ou insucesso. Anota o exemplo do bairro da Jamaica, um dos mais mediáticos e pobres da zona da Grande Lisboa: "Como é que aquelas crianças têm condições para trabalhar à distância durante uma manhã com um professor? São, muitas vezes, crianças que não têm pais com alfabetização suficiente para as ajudar, como é também o caso das comunidades ciganas, com baixa escolarização." Mesmo as classes médias "tiveram o desafio de conciliar o teletrabalho com a ajuda aos filhos.".O também antigo secretário-geral da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) critica "a falta de hábito de discriminação positiva" em várias esferas da sociedade. A tendência, diz, "é dizer que as coisas têm de ser iguais para todos, mas há logo uma distinção para aqueles que não têm condições". Só com uma política de discriminação positiva, na sua opinião, há um motor para fazer bem o que se segue no ensino, no sentido de mitigar as diferenças entre classes sociais..Na resposta à pandemia, acrescenta Isabel Flores, "o que realmente vale é uma comunidade solidária capaz de encontrar pontes e pontos que possam unir os alunos, manter os laços vivos e as aprendizagens ativas". E continua. "Pessoas capazes de mobilizar pessoas para responder. Direções capazes de distribuir tarefas e utilizar as competências de cada um para se entreajudarem. Professores que se preocupam com os alunos e que não desistem de contactar. Os recursos materiais são apenas um complemento e o mais fácil de resolver.".A ditadura dos exames.No ranking do ensino secundário que avalia as escolas do território nacional com base nas classificações obtidas nos exames nacionais de 2019, o ensino público volta a perder pontos face ao privado, ficando excluído dos primeiros 40 lugares no ensino secundário - apenas surge nas três últimas posições do top 50. No que diz respeito ao ensino básico, há apenas uma pública no top 30, no 18.º lugar..O que reflete, aliás, a forma de funcionamento dos estabelecimentos privados, adianta António Teodoro. Estes estão focados, "em geral", na "preparação para os exames e na obtenção de uma determinada nota de entrada no ensino superior". "Há países onde a escola privada tem um efeito de diferenciação pedagógica. A esmagadora maioria das escolas privadas, no nosso país, reflete um ensino de preparação para exames, não se distingue da versão liceal. O que, aliás, está espelhado em muitos inquéritos de inflação de notas, porque a preocupação é que os alunos possam ter notas que lhes permitam aceder a cursos com médias de entrada elevadas, porque daí sai a reputação da própria escola", continua..Retira desta equação, no entanto, as escolas internacionais, que "também têm quotas próprias para entrar no ensino superior". E se há exceção à regra nas escolas privadas, essa existe "nos anos de educação infantil", com a aplicação de novas metodologias, porque "quando se começa a aproximar a hora do acesso ao ensino superior, buscam as estratégias mais pragmáticas e que permitam notas mais altas". Um universo, ainda assim, não restrito ao setor privado, garante. "Por exemplo, em Lisboa, há diversas escolas com culturas muito próximas do ensino privado, onde a preocupação não vai além da boa preparação para os exames. Até porque o ensino secundário é sempre aquele onde é mais difícil introduzir a interdisciplinaridade, devido à cultura de pensamento das famílias, dos estudantes e dos professores, em que domina a organização disciplinar do conhecimento e a importância das provas externas", explica..Contrariando este fado, num segundo ranking divulgado pelo Ministério da Educação, o ranking dos Percursos Diretos de Sucesso (que analisa a percentagem de alunos da escola que obtêm classificação positiva nas duas provas finais do 12.º ano, após um percurso sem retenções nos dois anteriores), é possível concluir que as escolas públicas dominam e veem o seu lugar reforçado neste ano, logo nas primeiras dez posições do secundário e do básico..Enquanto o ranking dos exames nacionais mostra "apenas que há uma maior concentração de bons alunos no ensino privado, o que não constitui um indicador de qualidade das escolas", neste indicador de sucesso as escolas públicas "têm oportunidade de mostrar o seu trabalho com uma seleção", considerando "apenas os bons alunos que não reprovaram e que obtiveram classificações positivas em ambos os exames. Lembra-o a investigadora Isabel Flores, também envolvida em diversos projetos para a qualidade do ensino em Portugal. "O que os resultados mostram é que quando se compara bons alunos no público com bons alunos no privado a escola pública revela que faz um bom trabalho e que estes alunos alcançam aprendizagens sólidas", diz..Numa análise global, continua a haver motivos para preocupação. Feitas as contas, a quantidade de estudantes que se inserem na categoria de percursos diretos de sucesso representam cerca de metade, quer do ensino público quer do ensino privado, "significando que os alunos que necessitam de mais trabalho para consolidarem as suas aprendizagens continuam a ser demasiados".