Na primeira página do mais recente romance de Mário Lúcio Sousa, O Diabo Foi Meu Padeiro, o escritor tem a seguinte frase: "Morriam-nos, para não nos matarem, este era o segredo." O tema deste livro está bem exposto logo aí e na capa, o campo concentração do Tarrafal, onde Mário Lúcio viveu quando era criança. Pode dizer-se que é um relato literário dramático, que muitas vezes o leitor é obrigado a interromper por incapacidade emocional de continuar, este de um tempo em que o escritor que ainda estava a décadas de saber que iria registar o que via e o sítio onde morava, brincava e agora descreve num romance muito ao seu estilo..Mário Lúcio de Sousa escreve um livro sobre um lugar onde foi feliz enquanto quase toda a gente foi infeliz, uma história que lhe era impossível contornar. Concorda que foi uma "exceção" naquela parte de Cabo Verde: "É verdade, mas para mim, em termos existenciais, no sentido de que a vida é o que nós fazemos dela, este era o livro que tinha de escrever. Se os outros fi-los por ser escritor, este é por ser humano e pelas circunstâncias que ditaram o meu destino.".O escritor recorda que ficou órfão e "com 10 anos comecei a viver dentro desse campo de concentração". Por isso, "conheço o lugar melhor do que todos os presos que lá estiveram porque não estava confinado; todos os cantos dentro da prisão, até a residência do diretor e os arredores, por ser do Tarrafal, ter convivido na minha infância com esses presos que calcetavam as estradas, pintavam as escolas"..O tema do romance surge de repente: "Cai-me uma frase do céu como acontece nos meus livros e a partir dessa primeira frase dou início à pesquisa. Neste caso, felizmente, essa investigação documental só era necessária para ser mais exato e fiel, porque o cenário era bem meu conhecido." Mesmo assim, Mário Lúcio Sousa procurou certificar-se do que estava na base do que iria ser este seu romance: "Todos os meus livros exigem muita investigação. O primeiro romance lançado em Portugal, O Novíssimo Testamento, que é sobre a vida de Jesus, passei anos a ler todas as versões da Bíblia, do Alcorão e várias biografias de Jesus. Ainda que apresente Jesus Cristo como uma mulher - vários historiadores estranham que ele não fosse uma mulher -, eu queria dar o pondo de vista dele. Depois, Biografia do Língua é baseado num facto verídico. Este, O Diabo Foi Meu Padeiro, resulta de vários livros de depoimentos, de testemunhos, de ensaios e teses de doutoramento, de cartas, romances e de poemas sobre o campo de concentração.".Lúcio Sousa explica que escreve da seguinte forma: "Desce-me uma frase e a partir daí paro de escrever para pode documentar-me." Tudo na cabeça, porque "não tomo notas, não sei o que acabei ou o que vou escrever a seguir. Não volto atrás para ler nenhuma página e desconheço o que virá na página seguinte, o meio ou o fim. E só escrevo durante três meses, 14 horas por dia". Remata: "Já não levava cadernos ou lápis para a escola.".Os presos nunca perderam a fé em sair de lá vivos mesmo que achassem que morreriam lá? Sim, o humano é um equilíbrio. Ou somos deuses ou somos bestas, e eles estavam a meio caminho, com momentos de euforia e outros em que nenhuma fé aguenta. Vivi diariamente com os presos portugueses, que eram em maior número, que sofreram e morreram mais, e enquanto escrevia este romance havia momentos em que parava por não ser capaz de continuar a escrever sobre aquilo. Tive vómitos, choros e desânimo ao escrever, agora imagine-se quem viveu isto..Esta memória está cada vez mais esquecida? A memória está relativamente esquecida e a pior parte desses esquecimentos é esquecer-se dos vivos. Há muitos desses presos, africanos - angolanos, cabo-verdianos e guineenses -, que morreram na miséria e alguns dos que estão vivos ninguém sabe quem são ou o que lhes aconteceu. Essa é uma injustiça tremenda quando se quer construir liberdades. Quanto à memória no sentido patrimonial, o esquecimento é multinacional. O campo está fisicamente no Tarrafal, mas a responsabilidade maior por esse campo é de Portugal, que o construiu e mandou para lá os seus filhos, além de que muitos deles morreram lá. E, de certo modo, deve a sua história democrática e moderna a esses mortos, portanto, esquecê-los é um ato de ingratidão para com o que temos. O abandono em que se encontra o capo de concentração do Tarrafal não é culpa de Cabo Verde, mas de todos os que lá têm uma memória a preservar..Alguém visita os que lá ficaram enterrados? Não. Os restos mortais dos portugueses foram trasladados para Portugal, bem como um angolano, enquanto outro ficou como um indigente porque não se encontra a campa; dois guineenses estão lá no cemitério, mas ninguém os visita com regularidade ou com o sentido de homenagem. Sei que a vida é uma transcendência e os restos mortais são simbolismos materiais de uma existência, pelo que nenhum cemitério tem o valor simbólico do caminho que se fez até à morte. Neste caso, a memória dos que morreram no Tarrafal está lá, os restos mortais são para os familiares fazerem o luto..Essa ideia de transcendência existia nos prisioneiros? Creio que pensavam nela. Há um momento em que a morte se transforma em pós-vida ou as pessoas perdem a esperança. É certo que existia um debate existencial muito forte entre muitos que eram comunistas e ateus e presenciavam milagres - como conto no livro -, tanto que de um momento para o outro há um desapego da vida para se apegar a alguma coisa mais: o que virá depois da morte. A liberdade em Portugal ou o poder ser lembrado como contribuinte para a luta pelas independências, por exemplo. E também há momentos de delírio, em que as pessoas chegaram a ter um contacto muito próximo com a morte, porque todas as experiências de quase morte mudam a nossa perspetiva da vida. Eles perceberam em várias ocasiões, como os presos que estiveram 40 dias em coma, que quando regressam à consciência sabem por experiência própria que a vida se resume só àquilo, que ali era o sofrimento, que havia alguma coisa inexplicável e isso dava-lhes uma certa liberdade de morte. No livro conto que muitos dos presos estiveram presos até entenderem que estavam presos por causa do apego, mas que se se apegassem à causa da morte e lamentassem menos a morte da causa podiam até desprezar o sofrimento e situar-se num campo maior da liberdade pela luta da dignidade..Este livro é contado por três presos com o nome de Pedro. Porquê? Deve-se a um acaso que não tem muita explicação. Hoje, analisando, acho simbólico porque Pedro - pedra - tem muito a ver com a construção e o alicerce das coisas. Mas se tivesse escolhido outro nome, talvez não houvesse em todas as levas de presos pessoas com o mesmo nome como foi o caso de Pedro, e eu quis que o livro fosse um romance só e não fragmentos de histórias ou uma coletânea de contos. Foi uma sorte que o narrador fosse em termos onomásticos o mesmo..Porque não se escrevem mais romances sobre esta história? No geral, Portugal ainda se dá muito mal com o que se passou em África e num livro tem de haver o luto e uma contenção como a que tento introduzir. Os portugueses, como seres humanos como nós, não nos devem nada e não nos têm de pedir perdão, quem tem de o fazer é o regime e o poder. Prefiro ter uma relação de gratidão para com os que morreram lá porque a morte deles hoje faz parte da minha condição de homem livre. Essa perceção ainda não é tida em Portugal. Quanto a testemunhos, os portugueses que lá estiveram presos contaram de forma parcial a sua parte, o mesmo se passou com os angolanos, os guineenses e os cabo-verdianos. Este é o primeiro livro que faz do campo de concentração um cenário para uma única narrativa e que abarca todos. Para mim foi mais fácil pois conheço bem o lugar e sempre me assumi como produto de todos esses acontecimentos históricos. É-me mais fácil lidar com a situação para quando há a aceitação de que os portugueses são importantes para mim e que os angolanos, guineenses e cabo-verdianos deram a vida por mim, e que lhes sou grato. Coloco-me desse ponto de vista da gratidão, de os tratar como meus precursores da liberdade e sinto-me à vontade para dizer tudo porque parto do amor em primeiro lugar. Já essa história de amor simplesmente não existe entre um escritor português e os angolanos e guineenses que lá estiveram, porque têm uma certa culpa em vez de saberem analisar o que aconteceu. Tem de se distinguir hoje, e isso é muito claro para mim, o facto de que muitos portugueses eram contra e por isso foram enviados para o Tarrafal. Muitos eram antifascistas e anticolonialistas, ou seja, o regime não representava todos os portugueses, tanto que sou grato aos que foram contra porque nos aliviaram e pouparam sofrimento. É essa abertura que lanço no livro para que todos se sintam livres de ter uma relação com os factos históricos do seu ponto de vista pessoal. É evidente que um escritor salazarista não vai ter a mesma perceção que um de esquerda tem, antifascista e anticolonialista, só peço que seja honesto e assuma..Temos tido em Portugal um grande debate sobre as palavras descobrimentos, escravatura e colonização. Já passaram 45 anos sobre o fim do anterior regime, acha que esse questionamento ainda está por fazer? Esse questionamento é importante, porque as palavras são importantes em todas as circunstâncias e deve-se encontrar uma convenção para o seu uso. Descobrimento não me parece mal porque os portugueses descobriram o que antes desconheciam. Não nos inventaram, isso é outra coisa! O termo colonização é usado num sentido de uma potência ter faculdades jurídicas sobre uma determinada religião, cultura e povo, e descolonização quer dizer o processo contrário. Não é tudo a preto e branco, de modo que devemos debater a metáfora na sua profundidade porque ela ainda é muitas vezes usada como veneno. Aliás, de tanto repetido lá longe, hoje também é repetido por quem foi envenenado. Aliás, a descolonização foi muito importante para a mentalidade dos portugueses e acabou por ser uma luta comum. Aceito que muitos portugueses morreram por mim no Campo do Tarrafal, o que falta aos portugueses em geral é aceitar que o 25 de Abril teve uma contribuição extraordinária dos africanos. Os que estavam na luta antifascista e que transformaram a forma de pensar daqueles que estiveram na guerra, basta ver a quantidade de capitães de Abril que estiveram na Guerra Colonial. África contribuiu também para descolonização mental em Portugal..Falou de um pedido de perdão. Acha que, como outros países, Portugal deveria pedir perdão a quem colonizou? Sou particularmente contra o pedido de perdão porque aqueles que devem perdoar já não estão cá e aqueles que devem pedir desculpa também não. Não se deve generalizar pela eternidade os erros históricos sobre sítios geográficos; ninguém terá culpa de ter nascido numa região ou de os pais terem sido o que foram. Devemos trilhar o nosso próprio caminho. Agora, o que deve haver do lado institucional é um reconhecimento de que poderes constituídos anteriormente, com legitimidade, nos causaram muito mal. Que poderá ir ao encontro de situações como o da preservação da memória coletiva e a reparações nos danos históricos. Mas o mais importante é a gratidão e, em vez de pedir perdão, Portugal deveria ser grato a África e ver de quantas coisas o país deveria ser grato. Mostrar essa gratidão é a melhor forma de fazer o luto..O Diabo Foi Meu Padeiro.Mário Lúcio Sousa.Editora D. Quixote.327 páginas