Em Kherson, "ninguém sabe como vai ser o minuto seguinte"
Nadia pára o carro junto ao primeiro posto de controlo das forças ucranianas, na estrada que liga Kherson a Bashtanka, viaja com os dois filhos, de 9 e 14 anos. Parece desorientada e pede-nos ajuda para chegar a Odessa. A fita branca que traz pendurada no retrovisor do automóvel deixa perceber a origem: Kherson, a cidade mais a sul ocupada pelo Exército russo. As autoridades de Moscovo obrigam os civis da cidade a utilizar uma fita nos carros e no braço, tal como os soldados russos, o que transforma os civis em potenciais alvos.
São 17h00. Nadia, uma mulher de 35 anos, revela ter saído de casa às 6h00. Contas feitas, foram quase 11 horas para percorrer pouco mais de 50 quilómetros. Há muitos postos de controlo. Há mais de um mês que Nadia queria sair de Kherson para se juntar ao marido, que estava a trabalhar em Izmail, uma cidade 250 km a oeste de Odessa, quando a invasão de Putin começou. Já não voltou a casa. Conta que Kherson está completamente bloqueada, "nem sequer nos hospitais há medicamentos. A comida também começa a faltar".
Durante o dia, os civis podem circular livremente em Kherson, mas nem assim Nadia conseguiu convencer os filhos a saírem de casa. "Quando lhes dizia para irmos dar um passeio, nunca queriam", conta a mulher, explicando que as crianças tinham medo dos bombardeamentos e disparos de artilharia que se ouvem constantemente, garante, nos arredores da cidade. "Ninguém sabe como vai ser o minuto seguinte. Os bombardeamentos vêm do lado russo e do ucraniano", acrescenta.
Os ocupantes impuseram na cidade um recolher obrigatório das 6h00 às 20h00. "Quem não o respeita desaparece", alerta. Nadia não sabe se há ou não atrocidades a serem cometidas pelo Exército russo. "Não vi nada. Mas há vários rumores a correr pela cidade." Ainda assim, teme que a cidade se transforme numa nova Mariupol.
O receio é partilhado pela diretora da Cruz Vermelha Internacional no Sul da Ucrânia. "Todos os dias a situação piora. Penso que ainda não é crítica. Os alimentos estão a ficar mais caros por causa da escassez. A situação só não é pior porque Kherson é uma região agrícola", relata Anastasia Marchuk. Pede, por isso, a abertura de corredores humanitários: "Temos os meios, mas precisamos que a situação nos permita entrar."
As equipas médicas e de ajuda humanitária prestam diariamente assistência humanitária às populações mais isoladas da região dentro das zonas controladas pelas autoridades ucranianas. Até porque há poucas semanas, no interior da cidade, uma equipa da Cruz Vermelha foi alvejada pelas tropas russas, que depois sequestraram os trabalhadores humanitários durante alguns dias.
Esta organização está também preocupada com a falta de água em Mykolaiv, um problema que a afeta há oito dias. "O número de pessoas em situação de vulnerabilidade está a crescer de dia para dia." Anastasia lembra o caso dos doentes hemofílicos: "Precisam de muita água potável para fazer os tratamentos. Há pessoas nos centros de refugiados coletivos que também precisam de água." Anastasia também teme que a degradação das condições em Mykolaiv leve a um aumento da pressão humanitária sobre Odessa, uma cidade de passagem para os refugiados, mas que ultimamente tem sido o destino final de milhares de deslocados.
A Cruz Vermelha Internacional está presente no Sul da Ucrânia desde 2014. Anastasia Marchuk acredita que, por isso, o trabalho da organização que dirige não foi afetado pelas acusações de cumplicidade com a Rússia, feitas por vários setores da sociedade ucraniana depois da visita do presidente do Comité Internacional, Peter Mauer, a Moscovo.
"Eu sou ucraniana, mas também sou uma trabalhadora humanitária. A ideia de neutralidade nem sempre é fácil de perceber. Para a opinião pública tudo é preto ou branco. Mas a integridade e a independência é o que nos tem permitido continuar a trabalhar ao longo de mais de 160 anos. Não nos cabe decidir quem é o agressor ou quem é a vítima. O nosso objetivo é ajudar todos os que precisam. E para isso temos de falar com todas as partes do conflito."
Por enquanto, a Cruz Vermelha é uma das poucas organizações presentes no Sul do território. A responsável assegura que a situação é muito mais grave do que a opinião pública pensa. E entende, por isso, que a zona não está a merecer a atenção que devia. "Todos olham muito para o Leste e Centro do país, mas na realidade esta região também foi muito atingida." Ainda assim, assegura que várias organizações internacionais já têm feito contactos exploratórios para se instalarem na região.