Em defesa do cosmopolitismo

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Existem fortes razões para o descontentamento com o curso da globalização iniciada no final dos anos 70. Com Thatcher, Reagan e Deng Xiaoping, o líder chinês que lançou as bases para aquilo que os amnésicos consideram paradoxal: ter um país chefiado por um Partido Comunista campeão da globalização em 2017. E isso, na mesma altura em que os herdeiros dos dois maiores impérios globalizadores anteriores, Grã-Bretanha e EUA, se retiram para uma perigosa zona sombria onde se ruminam grandezas perdidas. Na verdade, a globalização está ferida pela desregulação, que tem aumentado a injustiça e a desigualdade. Mas, pior do que esta globalização, são os remédios que os populismos nacionalistas propõem. Incluindo o senhor Trump e a senhora May, que, se deslocarmos a camada superficial de verniz (operação necessária só no caso da líder britânica...), resvalam para matizes mais ou menos acentuados de xenofobia e protecionismo, e uma mão cada vez mais pesada para manter a Escócia fiel a escolhas alheias. Não nos iludamos, o populismo nacionalista, como o da senhora Le Pen, só poderia impor a sua agenda com um aumento colossal de desordem económica, pobreza, e uma escalada de violência política que só um milagre evitaria derrapar em guerra aberta. Aqueles que nada fazem para mudar a lógica suicidária das patologias da globalização, como acontece na ausência de reformas na União Europeia, tornam-se cúmplices dos nacionalistas que dizem combater.

No passado dia 13 de maio tivemos dois exemplos magníficos da virtude central do cosmopolitismo, que deveria ser comum a qualquer modelo de globalização que seja compatível com a dignidade humana e o respeito pela nossa morada planetária: a aposta no indivíduo singular e na sua capacidade de assumir a responsabilidade de participar na construção do futuro comum. Em Fátima, escutámos o Papa Francisco reiterando o seu programa de uma globalização construída a partir das periferias para o centro, das pessoas para a economia, dos excluídos para as políticas de integração pacificadora, do espírito para a matéria. Foi notável ver como dentro da própria Igreja Católica, partindo da secular e controvertida historicidade de Fátima, existe um pluralismo teológico em torno do que uns chamam "fenómeno", outros "visão", e ainda outros designam como "aparição". Foi incrível, também, ver um jovem músico português, Salvador Sobral, arrebatar o troféu da Eurovisão, ganhando tanto nos júris nacionais como no "voto popular". Com uma canção em bom português, numa simplicidade aparente, mas dotada de uma qualidade técnica onde se esbatem notavelmente as categorias entre música erudita e música popular. Em ambos os casos, o de um Papa argentino que é hoje chefe moral de uma comunidade muito maior do que o catolicismo, transcendendo mesmo o arquipélago cristão, ou no caso do músico português que tocou no coração de centenas de milhões de cidadãos de uma Europa-Mundo, incluindo a Austrália, Israel, Geórgia e Arménia, o que vemos é a importância essencial da escala. O valor inestimável da existência de canais que permitem a respiração universal das pessoas, seja na cultura seja na economia, ou na política. Canais cosmopolitas fundamentais para que a grandeza individual não dependa do valor da tribo a que se pertence, mas cada vez mais do talento que cada um desenvolveu, pelo esforço e mérito próprios. Entre 1914-18 e 1939-45, os populistas e nacionalistas venceram em toda a linha. Nessa altura, o único "festival" global que se realizou foi o da carnificina. Com método e em escala industrial.

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