Em 1953, a brasileira Elza Soares tentou a sua sorte como cantora no programa Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso na Rádio Tupi. Ao ver Elza, uma menina de 13 anos, vestida sem glamour, com a roupa que era da mãe presa por alfinetes para se adequar ao seu corpo magro, o apresentador quis ridicularizá-la e perguntou-lhe: "De que planeta você veio, minha filha?" Ela não se intimidou e respondeu: "Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome." E depois soltou a voz para interpretar o samba-canção Lama e acabou a receber aplausos e elogios. Essa sua primeira vitória profissional vai ser evocada no próximo disco de Elza Soares que, como foi anunciado na semana passada, irá chamar-se Planeta Fome e será lançado em setembro..Mas, até lá, a cantora de 89 anos (idade não oficial) não para: neste momento está em Portugal para apresentar, nesta terça-feira, a biografia Elza, de autoria de Zeca Camargo, e também para, na quarta-feira, mostrar em concerto o seu último disco, Deus É Mulher..Uma "história extraordinária".O livro de Zeca Camargo foi lançado no final do ano passado no Brasil. Ao longo de dois anos, o autor esteve mais de 42 horas à conversa com Elza Soares. "É uma história extraordinária de uma mulher que já teve tudo, já perdeu tudo e deu a volta por cima", comentou Camargo na altura. "Busquei ir além do que já sabíamos, mostrar outros ângulos dos factos mais conhecidos de sua vida, como o início da carreira, sua história com Mané Garrincha, a perda do filho deles", contou o jornalista..Elza Soares conheceu o craque do Botafogo em 1962 e iniciaram um romance, apesar de ele ainda ser casado. A relação nunca foi fácil - foi por causa dele que ela compôs o tema Eu Sou a Outra (1963). Em 1982, após 16 anos de um casamento preenchido com álcool, agressões físicas, ciúmes doentios, traições e humilhações, Elza pediu o divórcio. Mas a verdadeira tragédia aconteceu em 1986, quando o filho de 9 anos morreu num acidente de automóvel. Depois disso Elza Soares entrou em depressão e entregou-se aos comprimidos e à cocaína. A cantora já tinha perdido dois filhos, que morreram com semanas de vida devido à má nutrição..Na infância, Elza, filha de um operário que "tocava violão" e de uma mãe "lavadeira que cantava bem", não via problema em não poder entrar nas casas de patrões da mãe. Era obrigada a almoçar do lado de fora dessas residências. Casou aos 15 anos, ficou viúva pouco depois e começou a cantar em público aos 20. Quando passou a atuar em clubes, enfrentou a rejeição daqueles que não admitiam negros no palco. Nessa altura já não podia negar a evidência do racismo que a rodeava. "O desenvolvimento dessa consciência foi muito orgânico. Aos poucos, Elza foi entendendo o significado do racismo e descobrindo a sua maneira de lidar com isso", explicou Zeca Camargo.."Elza é extremamente maternal e carinhosa. É o que se observa de sua história com Garrincha, de sua relação com os filhos, os funcionários e também com este biógrafo", contou Zeca Camargo. "Mesmo na fase próspera que atravessa atualmente, ela se sente feliz pelo simples facto de ter comida na mesa para os filhos. Essa preocupação, ainda hoje, remonta à culpa por saber que os criou de maneira precária, mesmo ciente de que era o máximo que poderia oferecer", disse o jornalista..No livro, "ela fala de forma muito transparente e honesta dos relacionamentos que teve, já com mais de 70 anos, com rapazes bem mais jovens. Viveu amores que desafiaram convenções, nunca se intimidou ao expor o seu desejo"..A voz dos injustiçados.A carreira, tal como a vida, também tem sido cheia de altos e baixos: lançou o primeiro álbum, Se Acaso Você Chegasse, em 1960, e teve muito sucesso, mas nos anos 80 a música não estava a resultar e chegou a pensar em desistir. Nessa altura, contou com a ajuda de Caetano Veloso que a incentivou e a convidou a gravar o tema Língua no seu álbum, Velô (1984). "Ela, que fora a estrela da poderosa gravadora Odeon nas duas décadas anteriores, trabalhava agora para gravadoras menores e não conhecia nem sombra do antigo sucesso", recordou Ruy Castro numa crónica publicada no DN. Esteve na sombra durante alguns anos. E depois renasceu..Em 1999, Elza foi eleita pela BBC de Londres como a cantora brasileira do milénio. Em 2003, esteve nomeado para um Grammy Latino pelo trabalho Do Cóccix ao Pescoço. Quatro anos depois, emocionou-se a cantar o hino nacional à capela na abertura dos Jogos Pan-Americanos no Rio..Em 2013, uma queda em palco levou-a ao hospital. No ano seguinte, foi operada à coluna e desde então apenas se apresenta sentada. No entanto, foi nessas condições que conseguiu alcançar o maior êxito de sempre. Em 2015, Elza Soares lançou A Mulher do Fim do Mundo, o primeiro disco só com temas inéditos e também aquele que voltou a colocá-la nos palcos principais de todo o mundo. Com este álbum, a cantora recebeu o Troféu APCA da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prémio da Música Brasileira e o Grammy Latino de Melhor Álbum de MPB.."Canto sentada mas meto bronca", comentou, divertida. Nestes últimos anos, passou a rodear-se de músicos jovens, a incluir ritmos mais modernos na sua música vinda do samba e a dar voz a todas as suas revoltas, tornando-se porta-voz de injustiçados e discriminados, sejam as mulheres vítimas de violência doméstica ou os homossexuais.."Minha função neste momento é a de fazer o mundo melhorar. Tenho a obrigação de fazer isso. (...) A luta da mulher é incessante. Tem o machismo, o assédio, o racismo. Dói ainda ver o negro sendo xingado, marginalizado, sem ter o direito de ser gente", explicou numa entrevista no ano passado à revista Vogue. Numa outra entrevista, aprofundou: "Eu já nasci feminista, a lutar pelos direitos das mulheres. Sou feminista pela minha mãe, por mim. Para mim ser feminista é brigar, é lutar. Faço isso através da minha música e da minha fala e, embora ache que as novas gerações já estão muito mais conscientes, há muito trabalho a fazer.".O seu último disco, Deus É Mulher, integra temas compostos, entre outros, por Rodrigo Campos, Douglas Germano, Romulo Fróes, Tulipa Ruiz e Pedro Luís, que assina o tema Deus Há de Ser. É nesta música, que encerra o alinhamento, que se faz referência ao título do álbum: "Deus é mulher/Deus há de ser/ Deus há de entender/ Deus há de querer/ Que tudo vá para melhor/ Se for mulher, Deus há de ser.".O próximo disco será "focado na falta de consciencialização do povo", explicou ao Delas. "Nós temos de acordar, temos de reagir, está toda a gente a dormir. Claro que também irei falar das mulheres mas vou focar-me noutro tipo de temas.".A primeira música será conhecida a 16 de agosto e intitula-se Libertação. O tema é de de autoria de Russo Passapusso, vocalista da BayanaSystem, com arranjos do maestro Letieres Leite e interpretação da Orquestra Rumpilezz. E tem ainda mais uma convidada de luxo, Virgínia Rodrigues, que interpreta o tema com Elza Soares..Quantas vezes renasceu?, perguntou-lhe o DN em 2016: "Várias vezes, várias vezes, várias vezes. É preciso ter muita fé, muito amor. A vida tem sido para mim um jogo de xadrez, e sempre tenho uma dama do meu lado. A dama é a música.".Lançamento da biografia Elza Com Zeca Camargo e Elza Soares Terça-feira, 18.30 Livraria da Travessa, Lisboa Entrada livre.Concerto Deus É Mulher De Elza Soares Quarta-feira, 21.30 Capitólio, Lisboa Bilhetes: 25 euros