"Ele disse que eu devia ir lá apertar com eles, dar-lhes um puxão de orelhas"
Fernando Barata "Mendes" tem 48 anos, dois filhos e foi presidente da Juventude Leonina (JL) durante quase 20 anos, até ter delegado a liderança da claque a Nuno Mendes "Mustafá", em 2011. A 15 de maio de 2018, dia do ataque aos jogadores do Sporting, entrou na Academia de Alcochete de cara descoberta e desde o início que é tido como uma peça-chave dos incidentes. Tudo porque, dois dias antes, na sequência de uma discussão com o jogador Marcos Acuña, as câmaras o apanharam no aeroporto da Madeira a prometer uma visita ao treino: "Falamos em Alcochete." Foi detido a 6 de junho, três semanas após os acontecimentos, e encontra-se em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Três dos 38 protagonistas do ataque atribuem-lhe a organização do esquema e Bruno de Carvalho também insinuou, em interrogatório, que faria parte da trama. Agora, Fernando Mendes responde, em 37 folhas A5 escritas à mão e complementadas uma chamada telefónica, às perguntas do comDiário de Notícias.
Esta é a primeira parte da versão completa da entrevista publicada na edição de domingo do Diário de Notícias.
Entrevistei-o em junho de 2017. Na altura, não morria de amores por Bruno de Carvalho. Qual era a sua opinião sobre o ex-presidente do Sporting mesmo antes do atribulado final da época passada?
No início, Bruno de Carvalho até fez um bom trabalho. Mas a derrocada começou a partir da sua última eleição para presidente, em que se viu reeleito com um recorde de votos. Não sei se foi por causa do excesso de poder ou não...
Eram amigos? Respeitavam-se? Ou não se podiam ver um ao outro?
Não me dava bem nem mal, mas respeitava-o como presidente. Não tínhamos relação de grande convivência ou proximidade. Penso que ele gosta menos de mim do que eu dele. Digo isto porque em 2011, quando ele se candidatou contra Godinho Lopes, eu apoiei a lista do Dr. Godinho Lopes. Nessa altura, em que a transição na liderança da Juve Leo (JL) passou de mim para o Nuno Vieira Mendes (Mustafá), eu conseguia angariar muitos votos dentro da JL. Ganhou o Dr. Godinho Lopes. Desde então, o Bruno de Carvalho nunca mais me viu com bons olhos.
Antes do jogo em Madrid para a Liga Europa, a 4 de abril de 2017, qual era a posição dominante na JL em relação aos jogadores? Havia queixas de falta de entrega? E em relação a Bruno de Carvalho?
Era de grande apoio. A prova está na magnífica deslocação que a Juve Leo fez a Madrid. Portanto, não foi por falta de apoio que os jogadores do SCP perderam. Penso que, no geral, não havia queixas de falta de profissionalismo e de entrega. Quanto a Bruno de Carvalho, toda a gente viu os posts que publicou no Facebook e as críticas que fez. Eu acho que o presidente é para liderar o clube, o treinador para treinar, os jogadores para jogarem, os adeptos para apoiarem...
O que acha dessas críticas aos jogadores no Facebook?
Penso que não o devia ter feito dessa maneira. Achei despropositado.
A proximidade que Bruno de Carvalho aparentava ter com a atual direção da claque era normal? Ele reunia-se consigo ou com Mustafá?
Sim, é normal. Até porque, ao contrário do que se possa pensar, as claques são muito ativas e é necessário resolver situações com urgência. Comigo foi sempre assim. Começou com o Sousa Cintra e acabou no Dr. José Eduardo Bettencourt. Sempre tive reuniões, telefonemas, encontros, almoços e jantares com todos eles. Veja bem quantos foram... e nem um problema com nenhum deles. Bruno de Carvalho, comigo, nunca se reuniu pessoalmente. Nunca! Com o Musta, não sei. Mas se o fez não vejo mal nenhum nisso.
O ex-presidente reuniu-se com o plantel, tendo telefonado a Mustafá para que este confirmasse aos jogadores que ele nunca lhe tinha pedido para bater nos jogadores. Isto é verdade?
Não estou na liderança da Juve Leo, logo não sei nada do que se passa em relação aos seus lideres e do que falam entre si. O que sei foi o que veio a público.
O que fizeram Rui Patrício e William Carvalho para terem sido os principais alvos da contestação dos adeptos já na partida contra o Benfica (com as tochas atiradas em direção da baliza de Patrício) e na partida contra o Marítimo?
Por amor de Deus, a situação das tochas contra o Benfica teve pura e simplesmente a ver com a interação da coreografia preparada para o jogo. Nada teve contra o Rui Patrício. Se pela escolha das balizas lá estivesse o guarda-redes do Benfica, diriam que tinha sido para o atacar? Contra o Marítimo, o Rui e o William não tiveram uma boa atitude de capitães no fim do jogo. Pois o Acuña veio na direção da bancada, onde estavam todos os adeptos do SCP, e teve uma atitude provocatória e de má educação, quando devia ter sido aconselhado pelos capitães a não fazer tal cena. Foi aí que falharam, ao não chamá-lo à atenção.
Nas imagens captadas pela CMTV no Aeroporto Cristiano Ronaldo, depois da derrota contra o Marítimo, parece muito exaltado. Porquê?
Foi quando fui ter com o Jorge Jesus para lhe dar conta da atitude do Acuña no final do jogo porque ele tinha estado muito mal em relação a todos os sportinguistas na bancada. O Acuña apercebeu-se de que eu estava a falar dele, não deve ter gostado, e chamou-me hijo de puta. É verdade, fiquei exaltado devido à falta de educação do Marcos Acuña. Ainda por cima, fazia naquele dia um mês do funeral da minha mãe. Devem compreender o meu estado de espírito.
O que lhe disse Jorge Jesus naquela conversa no aeroporto? Disse-lhe para conversarem em Alcochete? Marcou uma data?
É muito estranho que a CMTV tenha passado certas frases e não a totalidade. Aliás, até chegou a legendar várias vezes a palavra "impercetível". Não se percebeu tudo? Porquê? Estava a conversar com o Jorge Jesus e com o William sobre o comportamento do Acuña no final do jogo. Battaglia veio em defesa do seu compatriota, o que eu até compreendo até certo ponto, e também me ofendeu verbalmente. Por isso a reação que todos viram. Não se marcou data. Eu disse-lhe que ia na terça-feira e ele disse "OK".
Quando disse "falamos em Alcochete" tinha já em mente ir à Academia falar com os jogadores?
Sim, tinha em mente ir falar com o Jesus, e ao mesmo tempo era para acabar com aquela situação no aeroporto. Não era para falar com os jogadores.
Arrepende-se?
Não estou arrependido porque não vejo mal nenhum na frase. Até estava a avisar que lá ia! E espero que não me prejudique, pois não vejo nenhum crime em ter dito isso.
A acusação diz que há registos de chamadas entre si e Bruno de Carvalho na noite da derrota na Madeira. Confirma? Se sim, do que falaram?
Sim, falei. O Bruno de Carvalho ligou-me no sábado [12/5/2018] pelas 21.00/22.00. Eu liguei-lhe no domingo para lhe dar conhecimento de que tinha ido ao aeroporto falar com o Jorge Jesus e a chamada teve a duração de um minuto. Aliás, os dados da minha operadora mostram que de 4 a 30 de maio há somente uma chamada de mim para o Bruno de Carvalho. Que é essa. Depois, ligou-me ele, umas cinco ou seis vezes já na madrugada de domingo para segunda-feira. Atendi uma das chamadas e estivemos mais de uma hora ao telefone.
O que foi discutido nessa conversa?
Eu disse-lhe que não era admissível um jogador com oito meses de Sporting não ter a mística do clube e que ia na terça-feira a Alcochete continuar a conversa com o Jorge Jesus. Ele disse que eu fazia bem, que devia ir lá apertar com eles, dar-lhes um puxão de orelhas. E eu respondi-lhe que não precisava de lhes dar puxão de orelhas nenhum, que queria apenas esclarecer aquilo com o treinador. Hoje sei que ele já sabia que na terça-feira não havia treino. Mas não me disse. Então, tenho pensado com os meus botões se ele não alterou a data do treino com base nessa conversa... mudou-o para terça-feira porque sabia que eu lá ia e calculou que atrás de mim fosse mais gente.
Como foi a sua segunda-feira depois desses incidentes no aeroporto e antes da invasão da Academia? Reuniu-se com elementos da Juve Leo?
Foi uma segunda-feira normal. Vim por volta das 12.00 da Madeira e cheguei ao aeroporto da Portela cerca das 14.00. Depois, fui almoçar e lanchar com os meus colegas, e por volta das 20.00/20.30 estava a chegar a casa. Fiz uma vida normalíssima. Não me reuni com elementos da JL para além dos que vieram comigo da Madeira.
Quem teve a ideia de ir a Alcochete confrontar o plantel e a equipa técnica?
Não faço a mínima ideia. Eu já tinha dito que lá ia no aeroporto da Madeira ao Jorge Jesus. Agora, não sei quem teve a ideia de ir para abordar o plantel e a equipa técnica.
Quando é que teve conhecimento de que o treino fora marcado para a tarde de terça-feira, dia 15?
O Jesus disse-me que ia falar com o Acuña e resolver a situação. Pediu-me para acabarmos ali a conversa, pois já havia algumas pessoas a tirar fotografias e a filmar. Eu acatei. Disse-lhe então que falávamos em Alcochete, e ele respondeu: "Está bem." Não houve marcação de uma data em concreto. Eu é que disse que ia na terça-feira, ao que ele disse "OK". Para mim, era lógico só haver um dia de descanso, que seria segunda-feira. Não me passava pela cabeça haver mais dias de descanso nas vésperas de um jogo tão importante como o da final da Taça de Portugal.
Como teve conhecimento da iniciativa dos elementos da claque de ir a Alcochete naquele dia?
Eu não sabia da combinação do que quer que fosse. Fui lá só para falar com o Jorge Jesus.
Falou com algum elemento da direção do Sporting entre o jogo da Madeira e o momento da incursão à Academia? Estava a par da criação de grupos de WhatsApp para combinar o ataque? Fez parte desses grupos?
Não. E não fiz parte da criação de grupos WhatsApp ou de outros grupos, pois o meu telemóvel ainda é de teclas, não consegue aceder a qualquer grupo. Nunca tive qualquer aplicação de redes sociais. O meu filho chama-me "homem das cavernas" a nível de telemóveis e redes sociais.
Quem o foi buscar para ir à Academia? É verdade que estava a dormir quando o foram buscar?
Eu pedi uma boleia a um amigo meu. Não tinha carta de condução naquela altura, estava inibido de conduzir pelo tribunal. E não estava a dormir. Tinha almoçado com o meu filho antes de ele ter ido para a escola.
O oficial de ligação aos adeptos, Bruno Jacinto, disse no seu depoimento que soube na segunda-feira, um dia antes da invasão, que membros da JL iriam a Alcochete. Quem o informou?
Não sei. Não estive com ninguém nem em contacto com o que quer que fosse para ser informado sobre isso.
Sabiam antecipadamente que iriam conseguir entrar na Academia?
Eu não sabia de nada em relação a isso. Até porque desde que a Academia foi inaugurada foi-me sempre dada autorização para entrar. E olhe que foram muitas vezes...