Eduardo Catroga: "A fatia de leão dos apoios devia ir para as empresas"
Eduardo Catroga tem uma longa carreira política e empresarial. Foi ministro das Finanças no último governo de Cavaco Silva, teve um papel central na negociação do memorando da troika... e está no conselho geral e de supervisão da EDP, órgão a que já presidiu. Por estes dias lança um novo livro: Desenvolver Portugal - reflexões em tempo de pandemia, no qual apresenta uma visão para Portugal no mundo, num cenário de desglobalização, reindustrialização e da crise da pandemia.
No pós-pandemia vamos ter um processo de desglobalização?
Desglobalização enquanto abrandamento da globalização, que historicamente se produziu sempre por ondas. Houve uma grande a seguir à primeira Revolução Industrial, depois interrompidas pelas duas grandes guerras, e no pós-guerra tivemos um período de incubação e desenvolvimento. Depois, uma segunda grande onda, com a queda do muro de Berlim, que durou até 2008, e desde então assistimos a um período de estagnação e agora, em consequência da guerra comercial EUA vs. China, vamos assistir a um certo movimento de desglobalização: período de relativo declínio deste fenómeno global. Mas o fenómeno global em termos de fluxos físicos de comércio e investimento, porque nos digitais, com o desenvolvimento das tecnologias de informação, digitalização, internet, o mundo é cada vez mais global. Portanto, estamos numa fase em que alguns falam em desglobalização, mas eu diria decréscimo da intensidade dos fluxos de comércio, à espera de um momento propício, um novo impulso à globalização. A globalização é uma realidade histórica e que vai continuar com fluxos e refluxos.
A globalização é positiva?
A globalização e a intensificação dos fluxos comerciais e de investimento dão, sobretudo às pequenas economias, oportunidades de crescer porque o mercado para as pequenas empresas deixa de ser o seu pequeno mercado doméstico para ser o global. Por isso a globalização tem opositores acérrimos - que dizem que acarretou desindustrialização dos países desenvolvidos, diminuição do peso da indústria transformadora no emprego e travou a subida de salários - e defensores acérrimos que lembram o impacto em economias como Brasil, Índia ou China, nos países emergentes, que tirou da miséria mil milhões de pessoas. Portanto é um fenómeno com ganhadores e perdedores - entre países consoante as fases da sua história, entre pessoas, entre regiões, entre áreas. Mesmo Portugal só cresceu verdadeiramente quando se abriu ao mundo, na década de 1960 - entrámos na EFTA, começámos a exportar e na década seguinte começámos finalmente a atrair investimento estrangeiro. E o investimento estrangeiro teve um papel importantíssimo na economia reprodutiva do país, sua industrialização e desenvolvimento. Portanto, a globalização é positiva para quem dela sabe tirar partido, desenvolvendo estratégias vencedoras no quadro da economia global.
Essa desglobalização que aborda no livro pode ser um impulso à reindustrialização do país?
Esse fenómeno está a acontecer a nível europeu, porque a Europa deixou criar alguma dependência estratégica ao nível de algumas produções e os detratores apontam essa situação para defender o movimento de recuperar para a Europa negócios que tinham saído para mercados emergentes, Índia, China... No fundo, analisando o fenómeno, os países mais avançados beneficiaram da expansão para esses mercados, concentraram no seu território as fases de maior valor acrescentado das cadeias de valor e a queda do emprego industrial, mostram os estudos, está mais ligada à transformação e progresso tecnológico do que à globalização. Mas como na perceção de agentes políticos e opinião pública importa trazer para a Europa algumas indústrias - o que vai ao encontro das tendências sobretudo dos grandes países, França, Alemanha, que está a ter dificuldades por não ter conseguido fazer em momento oportuno a sua reconversão tecnológica, por exemplo na indústria automóvel, e receia perder algum comboio nas industrias de alta tecnologia e capital intensivo, quer virar-se mais para o mercado europeu. Isso é positivo e vai trazer oportunidades. Na reindustrialização da Europa há duas situações: aquele movimento de deslocalização da cadeia de valor em consequência de decisões racionais empresariais - que estava em curso mesmo antes da guerra comercial EUA vs. China e muito antes da crise do coronavírus, porque os custos em alguns países emergentes também estão a aumentar e já havia alguma pressão para trazer para mais perto dos locais de consumo certas atividades da cadeia de valor, o reshoring -; e agora veio o impulso para instalar aqui algumas indústrias sobretudo no campo da farmacêutica, equipamento médico e tecnológicas mais avançadas, no sentido de aumentar o valor acrescentado no quadro europeu.
Há oportunidades para Portugal?
As oportunidades para Portugal existem se conseguirmos criar condições de atratividade aos investimentos empresariais. Até tenho no meu livro, no campo dos incentivos às estratégias empresariais competitivas, um eixo estratégico de ação. Atrair empresas que têm de pensar não no mercado português, no mínimo no mercado europeu, por questões de escala. Estaremos em concorrência com os outros países europeus - Espanha, os de Leste - os da OCDE, e compete-nos criar condições de atratividade para estas empresas que tragam valor acrescentado nacional, exportações, progresso tecnológico e emprego qualificado.
Quais são as maiores dificuldades a essas oportunidades?
Organizações internacionais que analisam a competitividade relativa do país mostram onde temos de atuar: os investidores internacionais e essas análises apontam-nos pontos fortes como o clima, a segurança, o sistema de comunicações. Mas também temos face a outros pontos fracos: burocracia excessiva, morosidade de decisões dos tribunais administrativos e fiscais, falhas na concorrência e na regulação de mercados, rigidez no modo de organização do trabalho. E dizem que a nossa competitividade relativa fiscal é fraca. E goste-se ou não a competitividade fiscal é uma realidade no quadro europeu. Se queremos atrair investimentos nacionais e estrangeiros com potencial de crescimento, tecnológico e exportador, temos de criar condições de atratividade. Precisamos de IDE porque o capital português é insuficiente. O total de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) na economia compara mal com os nossos concorrentes também com os que estão em processo de upgrading, os chamados da convergência real. Portanto temos de aumentar o nível de investimento de qualidade e para isso temos de atuar sobre as vertentes de competitividade.
Este OE dá atenção suficiente às empresas?
O OE é um documento de previsão de receitas e despesas para o ano seguinte... Pode contribuir para a taxa potencial de crescimento se não aumentar despesas públicas fixas e aumentar as de qualidade, em fatores críticos que têm que ver por exemplo com educação, formação tecnológica. É o eixo prioritário porque tem que ver com capital humano, ou seja, as pessoas e o conjunto das suas capacidades e competências gerais e especializadas. Nós precisamos de aumentar essas competências especializadas, técnicas. Ora, o OE é cada vez mais um instrumento de negociação política entre os partidos e um documento mais conjuntural do que estrutural. Estrutural teria que ver com um conjunto de reformas que atuassem em todos os pontos fracos estruturais: redução drástica da burocracia utilizando digitalização ativa, reestruturando processos, robotização administrativa, Inteligência Artificial, reestruturando funções e estruturas. E o OE não se preocupa com isso, da mesma forma que não lhe encontro preocupação em reafetar verbas ao ensino técnico-profissional.
Os apoios previstos, sobretudo para os setores mais afetados, são suficientes ou seria benéfico já um helicóptero de dinheiro para evitar as falências e desemprego que se espera?
Eu separo entre um OE cíclico conjuntural e até com componente de apoios de emergência a empresas e famílias e um quadro plurianual de afetação de recursos do Estado e da UE no sentido de fazer transformações, renovar a nossa estrutura produtiva, investir nos setores de futuro, desenvolver o capital físico e humano, criar condições para melhorar a qualidade da alocação de recursos na economia. E o OE cada vez menos se preocupa com estas variáveis. Do que precisamos é de um plano que combine ações estruturais, reformas que atuem cirurgicamente nos pontos fracos estruturais: redução de burocracia, gestão do sistema de justiça para maior celeridade dos tribunais administrativos e fiscais, sistema anticorrupção no sentido de clarificar a mecânica do processo de decisão. Precisamos de um sistema de incentivos a estratégias empresariais competitivas e de aumentar o investimento público usando os fundos europeus e selecionando projetos prioritários.
O plano de recuperação europeia chega para revitalizar a economia portuguesa ou vai ser preciso mais?
Olhando para a nossa História, tivemos três quadros de apoio desde 1993, depois o QREN, depois o PT2020. E agora temos uma oportunidade de ouro, única, se soubermos aplicar os recursos. Não basta investir, é preciso fazê-lo com qualidade. Se não criarmos condições para a reprodutividade dos investimentos, para melhorar a qualidade do aparelho do Estado, a qualidade do investimento e os incentivos às empresas, o sistema fica imperfeito. Temos de atuar fazendo escolhas no sentido do objetivo principal: melhorar a produtividade e a competitividade. As variáveis determinantes do processo de desenvolvimento económico e social entroncam em três pilares estruturais fundamentais: o político-institucional, que exige melhor qualidade das instituições e do sistema de políticas públicas, o pilar económico-financeiro que tem que ver essencialmente com a eficiência da gestão operacional e dos incentivos ao investimento produtivo e o pilar social, que tem que ver com um conjunto de atividades que ligam o desenvolvimento das pessoas na sua formação com o sistema educativo, técnico e profissional, em que tem a maior relevância o sistema de saúde, o sistema de proteção social. Para desenvolver o pilar social continuamente é preciso que os restantes criarem condições para aumentar a riqueza nacional.
Há risco também para a banca? Devíamos tirar lições da última crise?
Esta crise económica não se transformou numa crise financeira ou de liquidez graças à bazuca do BCE, de que se fala pouco mas que é determinante. O BCE está a permitir que os países aumentem os seus défices públicos cíclicos, está a monetizar os défices, a criar moeda para financiar os défices - o que não aconteceu em 2011-2014. Portanto temos hoje condições únicas: a bazuca do BCE, a bazuca dos fundos europeus com três componentes: o quadro financeiro plurianual 2021-2027, o plano de recuperação económica e resiliência europeu e um saldo muito importante do PT2020 por aplicar. Temos aqui fundos como não houve outra oportunidade na história da democracia portuguesa. De 1986 a 2018 recebemos 136 mil milhões da Europa, a preços de 2011, e tendo o PIB aumentado apenas 120 mil milhões. Agora vamos receber, desses vários instrumentos, uma oportunidade de, em vez dos cerca de 4 mil milhões/ano, receber o dobro durante dez anos. Desta vez tem de ser diferente. Das outras, aplicámos o dinheiro nem sempre em atividades reprodutivas; houve uma primeira fase de infraestruturas físicas de apoio ao desenvolvimento - foi necessário comunicações, telecoms, energia, saneamento básico. E o tecido produtivo foi o parente pobre na aplicação destes fundos europeus. As empresas são a célula-base da atividade económica, as fontes de rendimento das famílias e do próprio Estado. Portanto, o tecido produtivo devia agora ter a fatia de leão dos apoios, o que implica um sistema adequado de avaliação, análise e seleção e hierarquização.