Podemos esboçar um brevíssimo inventário do último século através de algumas emblemáticas referências históricas: a morte da utopia comunista, do impulso leninista aos crimes de Estaline; a agressão nazi e a herança trágica da Segunda Guerra Mundial; a fundação de Israel e o equilíbrio nunca encontrado com o povo da Palestina; as convulsões individuais e coletivas da década de 1960, desembocando nos combates de maio de 68; a urgência de uma ecologia política, enfrentando a questão da sobrevivência do próprio planeta; o triunfo global de um aparato tecnológico capaz de alterar todas as relações humanas e, no limite, a própria definição do fator humano....Pressentimos as infinitas ramificações de todas estas coordenadas e, em boa verdade, não temos maneira de condensar o seu labirinto numa única forma de saber ou num domínio específico de investigação. Em qualquer caso, podemos avançar com um nome que se distingue como personagem e testemunha, viva e ativa, das respetivas peripécias: Edgar Morin, nascido em Paris, a 8 de julho de 1921..Assinalando o seu 100.º aniversário, Morin publicou o livro Leçons d"un Siècle de Vie (Éditions Denoël, Paris). A palavra "lições" é, por certo, elemento vital do título, quanto mais não seja porque Morin sempre foi sensível ao paradoxo de qualquer pedagogia: ensinar como forma de aprender. Mas importa sublinhar o facto de o autor não se bloquear na facilidade de um individualismo heróico: trata-se de abrir a sensibilidade e o pensamento a uma multifacetada experiência histórica, não tanto descrevendo uma vida de um século, antes percorrendo os contrastes e contradições de "um século de vida"..Para Morin, essa multiplicidade envolve qualquer coisa de visceral: "(...) sou francês, de origem judaica sefardita, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterrânico, culturalmente europeu, filho da Terra-Pátria." O que o leva a perguntar se é possível ser-se tudo isso ao mesmo tempo, respondendo: "Não, depende das circunstâncias e dos momentos em que uma ou outra identidade pode prevalecer.".Aliás, a sua identidade plural passa pelo nome, elemento sempre vital da nossa afirmação e das relações que podemos ou sabemos estabelecer com os outros. O autor de O Homem e a Morte (Publicações Europa-América) nasceu Edgar Nahoum, apelido do pai, Vidal Nahoum, judeu sefardita grego, originário de Salónica, a quem dedicou o livro Vidal e os Seus (Instituto Piaget). Adotou o apelido Morin enquanto elemento da Resistência na França ocupada pelo exército hitleriano, acabando por usá-lo a partir dos primeiros artigos que escreveu no pós-guerra, embora conservando legalmente o apelido do pai - essa duplicidade onomástica sempre lhe trouxe algumas confusões burocráticas, mas é uma opção absolutamente consciente. Em recente entrevista ao Philosophie Magazine (julho/agosto), resume assim a questão: "Conservando os dois nomes, senti-me ao mesmo tempo "filho do meu pai" e "filho das minhas obras""..Escusado será dizer que a consciência da pluralidade humana se espelha na imensidão das obras de Morin (que este texto não pretende sequer sugerir), salvaguardando sempre o labor de contínua redescoberta que alimenta essa consciência - é uma forma intransigente de humanismo. Assim, a palavra "complexidade" pontua todas as atividades de Morin, conduzindo-o da militância politicamente enquadrada à afirmação de um individualismo aberto às diferenças dos outros..O seu envolvimento com o Partido Comunista é revelador: militante a partir de 1941, em contexto de resistência ao nazismo, acabou por se distanciar do respetivo aparelho através da denúncia dos crimes estalinistas, sendo expulso em 1951. Daí a leitura, também ela "complexa", das heranças juvenis: "As transformações decorrentes da idade e da experiência não são necessariamente conquistas de lucidez. Assim, muitos comunistas, maoistas e trotskistas desiludidos converteram-se ao nacionalismo xenófobo ou à religião da sua infância. No que me diz respeito, conservando as minhas aspirações de juventude, rejeitando definitivamente as lógicas sectárias, converti-me à autonomia política total.".Há, por isso, em Morin um "duplo imperativo complementar do Eu e do Nós" que pode levar cada ser humano a oscilar, com maior ou menor felicidade, "do individualismo ao comunitarismo, do egoísmo ao altruísmo". Curiosamente, tal dinâmica encontraria uma forma exemplar de expressão nas relações de Morin com a experimentação cinematográfica..O cinema não ocupa um lugar dominante na escrita de Morin, mas é um facto que ele é autor de um dos clássicos absolutos da literatura cinematográfica do século XX: O Cinema ou o Homem Imaginário, publicado em 1956 (disponível no mercado português numa magnífica tradução de António-Pedro Vasconcelos, com chancela da Relógio d"Água). Aliás, o seu interesse pela dimensão "imaginária" dos filmes levou-o, um ano mais tarde, a escrever Les Stars (ed. Points)..Para Morin, o cinema foi uma continuação da investigação antropológica "por outros meios". Em 1997, esclarecia esse ponto no prefácio a uma reedição de O Cinema ou o Homem Imaginário: "(...) o estudo do cinema não foi um intervalo, um divertimento na minha bibliografia, apesar de corresponder a um período de refúgio. Fruto do acaso, acabou por ser absorvido pela necessidade. Ao estudar o cinema, não estudei apenas o cinema: continuei a estudar o homem imaginário. Além do mais, considero o cinema, não como um objeto periférico, acessório, ou mesmo risível (os meus colegas riam-se quando eu lhes dizia que ia "trabalhar" no cinema), mas como um objeto privilegiado para uma antropo-sociologia séria, porque coloca um nó górdio de questões fundamentais." Ou ainda, dito de forma poética - celebrando a "poesia" que ele exalta no seu livro mais recente -, tudo se passa "como se o cinema exprimisse a música implícita, a música subentendida das coisas.".A esse propósito, convém não esquecer que, na companhia de Jean Rouch, Morin é coautor do filme Chronique d"un Été (1961), marco simbólico na afirmação da Nova Vaga francesa, tradicionalmente apontado como matriz do chamado "cinema-verdade". A sua "reportagem" sobre o dia a dia de diversas personagens - com Rouch e Morin, no final, a discutirem os prós e contras do próprio projeto - explora uma duplicidade essencial: até que ponto sabemos dizer e explicar a vida que vivemos? Ou ainda: como é que a irredutível identidade de cada um "encaixa" nos valores do coletivo em que vivemos?.No dia do seu 100.º aniversário, Morin publicou no jornal Le Monde um artigo intitulado "Na torrente do século". Dir-se-ia uma variação ou resumo do "século de vida" referido no título do seu livro. Mas não só: a sua reflexão é eminentemente prospetiva, apostando em identificar os desafios radicais de uma humanidade assombrada pela covid-19..Para Morin, importa continuar a pensar a partir de uma atitude transdisciplinar, integrando contributos de todos os domínios de conhecimento, enfrentando a pluralidade dos acontecimentos históricos, afinal mantendo a postura que ele próprio define como fulcral na sua obra monumental, em seis volumes, La Méthode (Le Seuil, 1977-2004). O terceiro volume possui um título sintomático dessa exigência de permanente discussão do próprio ato de conhecer o mundo à nossa volta: "O conhecimento do conhecimento"..Morin faz o inventário de alguns momentos a que atribui um peso decisivo no momento global que vivemos, a começar pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroxima, em 1945, expressão de uma "potência" de destruição que ameaça reduzir-nos à "impotência". Refere depois o chamado Relatório Meadows, documento publicado pelo Clube de Roma, em 1972, "advertindo a humanidade para o processo de degradação do planeta, tanto na biosfera como na socio-esfera" - recorde-se que o título integral desse documento era "Os Limites do Crescimento (num Mundo Finito)". Destaca ainda, em 1989-1990, "a invasão do capitalismo na ex-União Soviética e na China comunista", ao mesmo tempo que, de modo espetacular, eclodiam - e passávamos a usar - os "meios de comunicação imediata.".É na sequência de tudo isto que surge "a crise provocada pela pandemia de covid-19", revelando "a fraqueza de uma ciência que considerávamos toda poderosa". Descobrimo-nos, assim, na encruzilhada provocada por "um vírus de que podemos analisar as moléculas constitutivas", embora continuando a ignorar a sua origem, "talvez produto microscópico que escapou a um doutor Frankenstein chinês...".Mas a cedência a uma qualquer teoria da conspiração não nos salva: há especulações bastante mais consistentes que nos alertam para os dramas potenciais do futuro próximo: "Saberemos mais tarde se a pesquisa de vacinas não desacelerou a pesquisa de remédios, se alguns remédios não foram secundarizados sob pressão de poderosas companhias farmacêuticas, influenciando as autoridades de saúde.".Podemos descrever o seu pensamento da conjuntura pandémica como um movimento de aproximação e recuo (dialético, sem dúvida) face às componentes científicas do nosso mundo. Porquê? Porque, como Morin argumenta na entrevista citada, o progresso técnico não pode ser encarado como um evangelho redentor: "Quanto mais o mundo é técnico, maior é o risco de acidente.".Morin recorda, em particular, os ensinamentos colhidos nos EUA, na década de 60, em plena "contracultura", junto de Heinz von Foerster (1911-2002), o cientista austríaco habitualmente identificado como fundador da "segunda cibernética". Segundo ele, os humanos são "máquinas não triviais", diferentes das que são geradas pelo progresso técnico: "A máquina trivial é a máquina artificial, por nós fabricada e da qual conhecemos o comportamento a partir dos programas que a comandam." Ora, porque as sociedades humanas não são máquinas triviais, importa reagir contra a ação dos tecnocratas que "acreditam que uma sociedade de algoritmos gerados pela inteligência artificial representaria um progresso harmonioso, quando, de facto, seria opressiva, para não dizer asfixiante.".Nesta perspetiva, a herança do filme Chronique d'un Été mantém uma perturbante e cristalina atualidade. Logo na cena de abertura, tal como Rouch e Morin explicam a Marceline Loridan (figura fundamental do universo do documentarista Joris Ivens), trata-se de questionar o nosso viver social, começando "apenas" por perguntar a cada um dos inquiridos "como é a sua vida". E também: o que cada um "faz com a sua vida"..Não há nada mais político: as ideias que formamos sobre o modo como vivemos definem, determinam e fazem evoluir a nossa pertença a uma determinada realidade social. No caso de Morin, para lá da experiência política e da investigação antropológica, a literatura (Dostoievski, Proust, etc.) sempre foi determinante no movimento de tais ideias. Daí o autorretrato muito didático que ele faz no Philosophie Magazine: "Sou um filósofo selvagem, não sou um filósofo profissional.".dnot@dn.pt