"É Nuno Álvares Pereira que empurra D. João I para dar combate em Aljubarrota"
Este texto foi publicado a 25 de agosto de 2019 e faz parte de uma seleção de entrevistas, realizadas pelo DN durante o último ano, para voltar a ler neste verão. É republicada no dia em que passam 635 anos sobre a Batalha de Aljubarrota [14 de agosto de 1385]
Tem alguma memória da primeira vez que entrou aqui no Mosteiro da Batalha, provavelmente numa visita escolar como tantos portugueses?
Tenho, e foi com o meu pai ainda antes da escola primária. Ele fazia frequentemente um périplo por Alcobaça e pela Batalha. Nós morávamos aqui perto, o meu pai era professor de História e, naturalmente, impunha-se vir aqui. A memória mais antiga é uma fotografia que tenho na Sala do Capítulo, com 5 ou 6 anitos.
São de onde?
Nasci numa aldeia chamada Opeia, um nome estranhíssimo que não existe em mais lado nenhum, a oito quilómetros de Leiria.
Morando perto e com o pai professor de História, já não é aquela visita ocasional do estudante de Lisboa ou de Setúbal...
A Batalha faz parte da minha infância por tudo aquilo que representava na história portuguesa e também como uma obra-prima do gótico. E nessa altura ainda sobressaia mais no nosso imaginário identitário, com a valorização que se fez destes monumentos no contexto da ideologia do Estado Novo. Foram aproveitados ao máximo.
imagemDN\\2019\\08\ g-f74ced5d-7a5b-432f-8cc6-ccd33163bb1a.jpg
A batalha de Aljubarrota era muito falada nas aulas.
Muito. E havia aquele contexto mais mítico, legendário, muito vinculado nas Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano e que marcou toda uma geração de miúdos e graúdos. A narrativa está tão bem escrita de tal modo que entrou na nossa perceção como realidade histórica, e é curioso que ainda hoje encontro muitas pessoas que assumem o enredo dessa narrativa como realidade histórica, e ficam muito surpreendidos quando dizemos que afinal não foi bem assim.
Quando miúdo entra aqui com o pai professor de História, à partida tem logo uma compreensão completamente diferente. Olhando para aqueles túmulos de D. João I, de Filipa de Lencastre, do infante D. Henrique. É daquelas coisas que marcam, não é?
Muito. Há duas coisas no Mosteiro da Batalha que nos marcam ainda miúdos: a Sala do Capítulo, porque aí está o Soldado Desconhecido e a homenagem em permanência, com o render da guarda de hora e hora; é algo que impressiona desde tenra idade. Como miúdos acabamos por interiorizar muito bem essa mensagem. Mas, sobretudo, destaco os túmulos na Capela do Fundador. Mesmo miúdo, lembro-me da surpresa ao saber que estava ali D. João I e o infante D. Henrique. Outros túmulos, como o do infante D. Fernando, que todos sabíamos desde a terceira classe ter morrido como mártir em África. Era entrar num livro de História. José Mattoso contou numa entrevista que teve consciência de querer conhecer o passado, de fazer História, foi aos 10 anos, quando na Sala do Capítulo o seu professor da primária lhe contou de uma forma vívida e emocionante a narrativa de "A abóbada não caiu, a abóbada não cairá", do mestre Afonso Domingues, o arquiteto do mosteiro, na altura tida como realidade histórica. E de algum modo isso aconteceu comigo também.
Com que idade é que entra no Mosteiro da Batalha já como diretor?
Aos 53.
Era um objetivo de vida ou foi uma casualidade?
Não foi objetivo de vida. Fui professor de História durante 17 anos na Batalha. O meu percurso profissional, a maior parte dele, foi feito na Batalha. Apesar de não viver aqui, passei por todos os cargos e funções, fazia também teatro com os alunos e criei uma relação forte com a comunidade. Nesse contexto fui convidado para ser presidente de um centro de património da Estremadura, que integra os concelhos desta região, e penso que fizemos um trabalho com sentido estratégico e de algum modo reconhecido, o que me deu alguns elogios pelo meu trabalho na defesa e promoção do património. Nesse âmbito acabou por confluir a possibilidade de eu assumir, em regime de transição, a direção do mosteiro. É um convite inicialmente ao professor de História que tinha já algum trabalho reconhecido de dinâmica e defesa do património da região. Nunca me passou pela cabeça ser diretor do mosteiro, mas quando esse convite surgiu para ser temporariamente diretor enquanto não se fazia concurso, assumi-o com grande entusiasmo pessoal e profissional. Era, no fundo, a concretização da possibilidade de fazer um trabalho que intimamente eu gostaria de fazer. Entretanto abre concurso no final desse ano. Já com a experiência de oito meses como diretor, acabei por ficar. Passados três anos, houve novo concurso...
imagemDN\\2019\\08\ g-aa7bbb81-f0bc-48cd-addf-fc631a6bf81a.jpg
Se contarmos com os oito meses de transição, há quanto tempo está cá?
Há oito anos.
Houve alguma transformação, que se deva ou não a si diretamente, importante nestes oito anos?
A dinâmica de abrir o espaço a determinados eventos, a que chamo abrir o espaço à comunidade, também à arte contemporânea, por exemplo. Desde o início que fez parte do meu plano de ação dinamizar um conjunto de eventos culturais que de algum modo deem a ideia de um monumento vivo e que possa ser vivido. Porque também tinha esta facilidade. Fui professor durante 17 anos na Escola da Batalha e tinha consciência do que devia ser feito e de como num monumento destes, além de garantir a sua conservação, também exigia outras prioridades estratégicas. Tudo isso acabei por dinamizar logo no primeiro ano. E temos obtido bons resultados, havendo um crescendo de visitantes a partir daí, também naturalmente porque o fluxo de turismo aumentou em todo o país.
Está no top dos monumentos mais visitados?
Sim, dos serviços da Direção-Geral do Património Cultural é o terceiro mais visitado, a seguir aos Jerónimos e à Torre de Belém. Mas a aposta que coloquei como prioritária no meu plano de gestão foi o serviço educativo, porque é fundamental que as novas gerações reencontrem o seu património, que o conheçam e que um dia o possam proteger.
E como é que isso se concretiza?
Quando cheguei ao serviço, uma das primeiras iniciativas que implementei foi, no âmbito do serviço educativo, retomar o contacto com as escolas de todo o país e com os alunos para promover o monumento à sua visita. Mas sabíamos que era necessário tornar estas visitas aliciantes e marcantes, não podiam ser visitas convencionais. A primeira coisa que fiz foi convidar um grupo de teatro a fazer encenações versáteis: com três atores no máximo, duas ou três peças encenadas que os professores pudessem escolher de acordo com o nível etário.
Os miúdos quando vêm cá não veem só as pedras...
Não, veem visitas encenadas e as "pedras a ganhar vida" porque são peças muito bem escritas por um dramaturgo de Leiria, Luís Mourão, e apresentadas pelo grupo de teatro O Nariz. Tudo isso provocou um aumento gradual de visitas escolares. Uma das encenações recuperou um pouco o texto de William Beckford que aqui veio no final do século XVIIII, tendo ficado deslumbrado com o monumento, ao ponto de nele se ter inspirado, para a construção da sua grande mansão em Inglaterra.
imagemDN\\2019\\08\ g-2403a1a2-fa55-4813-9cca-3a7aabe9045b.jpg
Filho de professor...
Neto de professor e com pai e mãe professores.
O caminho de ser professor foi natural?
Estava rodeado de livros ao mesmo tempo que crescia como um miúdo do campo, o que para mim foi excecional. O meu gosto pela História foi desde cedo até porque o meu pai me aliciava a gostar de História e tinha muitos livros. O meu pai criava-nos uma grande emoção. Foi um grande professor, ainda hoje recordado por alguns dos seus ex-alunos. Na adolescência comecei por gostar imenso da mecânica do relógio e tirei um curso de relojoaria, aos 13 anos, mas as minhas paixões mesmo foram duas: a arqueologia e o cinema. Quando terminei o sétimo ano, fiquei muito indeciso entre ir para Cinema ou Arqueologia. Tendo em conta que o meu pai tinha falecido, ainda tinha uma irmã a estudar e eu ia começar a universidade, pensei que o cinema não seria de fácil carreira e teria de viver mais uns anos à custa da minha mãe, e acabei por decidir por Arqueologia, que daria em última análise uma carreira de professor, que foi o que aconteceu.
Foi em Coimbra que estudou?
Sim. A minha paixão pela arqueologia não teve sequência porque quando cheguei a Coimbra os cursos estavam em reformulação e não havia Arqueologia nem História da Arte e só no segundo ano é que surgiram essas licenciaturas. Então fiz licenciatura em História. Nem segui a paixão do cinema nem a da arqueologia. E rapidamente vi que não me aliciava a carreira de investigação. Comecei a namorar com a minha mulher, Fernanda, colega de História também, e o que sentimos foi a urgência em tirar o curso, casar e começar a trabalhar.
Tem filhos?
Sim, uma filha, com 33 anos. Tirou Direito, mas ainda balanceou um pouco para o lado da História.
imagemDN\\2019\\08\ g-e8a4b2c8-eb44-4761-86c9-d7c9366770d8.jpg
Antes de começar a dar aulas na Batalha fez aquela vida itinerante de professor?
É mais complicado. Acabei o curso, casei-me no pressuposto de que brevemente iria ser colocado. Para meu azar, quando pensava que aos 23 anos, em 1983, já ninguém me chamaria para a tropa, fui compulsivamente obrigado a ir para os Comandos.
Os Comandos? Foi voluntário?
Não, não! Aquilo foi uma experiência. Tinha feito a inspeção e, quase uma década depois do fim da Guerra Colonial, um número massivo de mancebos eram dispensadas. Mas naquele ano deve ter havido um projeto experimental do Estado-Maior do Exército, tendo chamado para os comando 60 licenciados, uns já pais de filhos, alguns até administradores de empresas, outros professores...
Mas hoje é uma experiência que lembra bem...
Acabei por ficar 16 meses, foi um curso que deu que falar porque no final ficámos cerca de 20 e, desses, 15 recusaram a boina. Fizemos um curso com boas classificações, fomos sendo selecionados até ao fim e depois recusámos. Não nos enquadrávamos naquele espírito de formação vinda da Guerra Colonial.
Foi uma forma de protesto?
Foi. Porque tendo concluído a formação e tendo passado todas as eliminatórias, recusámos este tipo de formação militar. Não é que fôssemos contra, mas não a queríamos. Eu, então, casado há pouco tempo e a ver colegas a passar-me à frente porque foram dispensados da tropa. Fiquei prejudicado. Quando saí da tropa tinham seguramente passado à minha frente mais de 300 colegas. Acabei por andar cinco anos em escolas ao redor de Coimbra:Penela, Penacova, Figueiró dos Vinhos... e depois efetivei. E foi uma experiência fantástica também, essa primeira fase da minha vida profissional, em que estive com a minha mulher no ensino especial. Do ponto de vista pedagógico e humano foi uma experiência única. Apoiávamos vários miúdos em várias escolas e com vários tipos de deficiência. Se já por natureza éramos sensíveis a essa realidade, esses anos foram excepcionais. Assim como a tropa acabou por ser. Tento sempre retirar o que é mais positivo das experiências de vida e na tropa aprendi que em situações-limite, em que pensamos que literalmente vamos morrer de cansaço, ainda temos muito para dar e acabamos por superar muitas dificuldades que nos pareciam fora da nossas capacidades.
Quando encontra alguém que foi comando tem a tentação de dizer que também foi?
Tenho. Todos nós acabámos o curso. Eu digo que fui comando, porque terminei o curso, mas, esclareço que o fui num "célebre curso" em que maior parte de nós recusou a boina.
Mas sente orgulho por ter superado aquele desafio?
Sim. Se na altura não entendi bem porque nos chamaram a fazer uma recruta não havendo guerra, hoje reconheço que devemos valorizar as nossas Forças Armadas e devemos estar minimamente bem preparados como país que somos e se queremos manter a nossa independência enquanto nação. Não recuso a experiência, mas recusei o modelo. Ainda hoje oferece muita contestação o seu modelo de preparação. Têm acontecido mortes, tal como podiam ter acontecido no meu curso, e não aconteceram por acaso. Não se pode deixar morrer um recruta por exaustão. Não se compreende. Quem está à frente de uma formação de comandos tem que ter a consciência dos limites de cada um dos seus recrutas. Era precisamente essa falha que no meu tempo já contestávamos.
Quem são os seus heróis da história de Portugal?
Muitas vezes os heróis não são as pessoas que combateram. O meu herói é Camões. Teve uma vida excecional e representa a nossa história da época. Admiro também bastante D. João I e D. Nuno Álvares Pereira.
Está a ser bairrista com D. João I e com o Condestável, heróis da batalha de Aljubarrota, travada contra os castelhanos a umas centenas de metros daqui em 1385.
Estou. Agora conheço melhor D. Nuno Álvares Pereira e quando vemos o percurso dele e a forma como conduz os exércitos, um estratega excepcional e motivador de homens... quase obriga D. João I a dar combate aqui em Aljubarrota. Não será bem assim, mas de algum modo é D. Nuno que "empurra" D. João I, porque ele tinha as suas indecisões e Nuno Álvares Pereira parece saber o que é preciso fazer para motivar as tropas e o próprio rei a dar combate de acordo com a sua estratégia. E é tão bem implementada que Aljubarrota é uma grande vitória.
Quando dava aulas sentia que havia uma figura da história por quem os alunos se interessavam mais?
D. Afonso Henriques, por ser o primeiro rei de Portugal, e depois a luta pela independência, em 1383-85, a morte de D. Fernando, a sua filha herdeira do trono com o rei de Castela e a defesa da nossa causa nacional em Aljubarrota. E depois todos os filhos que desse casamento de D. João I com Filipa de Lencastre surgiram. Hoje uma figura que eu enquanto miúdo não podia apreciar porque era desvalorizada, mas é uma figura que quanto mais se conhece mais vemos as suas capacidades, é a do príncipe D. Pedro. É uma figura que a história pôs de lado. Teve um fim trágico, morreu em Alfarrobeira, no contexto duma corte de Avis minada por vários interesses, mas hoje é inquestionavelmente a grande figura desta ínclita geração.
imagemDN\\2019\\08\ g-116e9da5-4655-4625-9bb7-def260dfa4dc.jpg
Essa ínclita geração, como Camões a chamou, deve muito à mãe inglesa. A Filipa de Lencastre vem com umas ideias de grande preparação intelectual para os filhos...
A ideia de uma educação excelente para os filhos. Filhos bem preparados sob o ponto de vista moral mas também cultos. Depois D. Pedro fez um périplo pela Europa, enquanto o infante D. Henrique, por exemplo, não saiu daqui. Até isso de diferente entre os dois: de um lado um infante - d. Pedro - que percorreu as cortes europeias e do outro, o infante D. Henrique, que nos habituámos a ver como o grande homem dos descobrimentos mas que não é tão culto como isso. Na Capela do Fundador está bem refletido a força do casal real, na construção de um túmulo conjugal, que acontece seguramente por influência de D. Filipa. E a ideia de que o casal deve manifestar o seu amor, a sua unidade, mesmo depois da morte, está ali expressa. O primeiro túmulo conjugal no nosso país, é este, na Capela do Fundador. E também por influência de Dª Filipa, a escolha de um lema de vida, o mote, ou a divisa. Pela primeira isso é bem explícito nos túmulos da Capela do Fundador.
Os portugueses têm noção do que estão a visitar aqui no mosteiro? Os estrangeiros têm só curiosidade ou têm também uma ideia?
Muitos portugueses têm, porque o estudaram e as personagens são fáceis de identificar. Os estrangeiros estão mais alheados da nossa história. Claro que a grande figura que ali é reconhecida é o infante D. Henrique e são raros os que não ouviram falar do seu nome. Mas temos aqui sepultado também D. João II e os visitantes brasileiros raramente o associam à importância que ele teve na história do Brasil. Se existe o Brasil com a configuração geopolítica que hoje tem, deve-se a D. João II e ao tratado de Tordesilhas.
E os espanhóis têm noção de que o monumento celebra uma derrota castelhana?
Sabem que este mosteiro resultou de uma batalha entre portugueses e castelhanos, mas não deixam de se deslumbrar por esse motivo. Quando colocamos livros de visitas nas exposições, os espanhóis são os mais assertivos, dizendo que isto é uma maravilha, que é um monumento que deve ser conhecido e visitado por todos. Algo que atrai muito também, sobretudo os espanhóis, é o memorial ao soldado desconhecido. Na época de verão chegam a estar na Sala do Capítulo mais de 200 turistas a assistir à cerimónia. Há pouco perguntava-me o que mudou. De há três ou quatro anos a esta parte há um incremento turístico fantástico. 2016 foi excelente, 2017 excecional. Em 2018 e em 2019 estabilizou. Em dois anos tivemos 47% de aumento turístico, o que é único no contexto nacional. Deve-se também à proximidade de Fátima. Chegámos aos 500 mil visitantes em 2017, referenciados na bilhética, porque só na visita à igreja, que é gratuita, tivemos o dobro de visitantes.