"Um casal de beirões a trabalhar num hotel [perto de Zurique] convidava-me a comer sauerkraut, que é chucrute dita em alemão e arranjada à moda bávara, acompanhado, imagine-se, com chouriços da zona da Pampilhosa. Então eu punha-me a raspar aquela capa de verniz, como os jornalistas sabem fazer, acendia mais um cigarro, encostava-me na cadeira, e falávamos. Falavam eles, os emigrantes." Começa com esta o volume que reúne as crónicas inéditas em livro de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), que o jornalista lia nos anos de 1977 e 1978 aos microfones da RDP, na rubrica Crónica da Manhã, e que permitem agora ter um duplo retrato: do autor e da época..O tom dos textos radiofónicos reunidos em Tenho cinco minutos para contar uma história é sempre divertido, mesmo que fosse lido às 10 da manhã de domingo, e com grande preocupação em mostrar o país sob um olhar que raramente ignorava tanto a grande questão como o pormenor..Quando a locução calhou no Dia das Comunidades, Assis Pacheco perguntava-se porque existem duas Lisboas nos Estados Unidos? Se é no dia do jogo do Benfica, conta a história de um vizinho surdo-mudo que vibra com o apuramento para a Taça dos Campeões Europeus. Estando inspirado, opta pela poesia e escolhe Cesário Verde para declamar e lembrar como foi discreto: "O seu livro foi uma edição póstuma, e pequenina e apagada como Cesário: duzentos exemplares que o editor espalhou diligentemente sem pôr um único à venda.".Sendo grande a curiosidade que então se tinha sobre a sua pessoa, devido à participação no programa televisivo A Visita da Cornélia que o tornou muito popular, também não deixa de contar a experiência: "Ando há meses a ver se não falo da coisa em que me meti. Foi uma aventura com o seu quê de crueldade porque detesto expor-me.".Não escapam as histórias de família, como a crónica intitulada Sou neto de uma pistola mal apontada, onde relata a forma como o seu avô materno se livrou de um tiro de um vizinho. Logo introduz a sua costela de galego e não termina sem impressionar os ouvintes com o triste fim do familiar: "Acabava o avô de urinar à beira da estrada, veio um táxi e matou-o. Um tio que lá foi tratar da trasladação ficou muito impressionado" porque estava apenas vestido de meias e ceroulas. Tinham-lhe roubado a roupa ali mesmo. Essa ascendência ainda lhe criou amargos de boca e tema para mais cinco minutos, quando um leitor de um jornal do Porto o "mimoseava com o epíteto de "português duvidoso" por ter falado sobre a ascendência galega..Ou as suas memórias de infância, quando vivia em Coimbra e não costumava perder um único desafio: "Recordo-me de um jogo Académica-Sport e foi só contar os golos da Académica: 15, creio eu." O tema desportivo regressa com a vitória do ciclista Joaquim Agostinho numa etapa da Volta à França mas sem lugar nas equipas portuguesas. O mesmo passa-se com Eusébio, quando o Chaves o recusa com a seguinte justificação: "Não é o jogador de que a nossa equipa necessita". Não deixa de relatar uma reportagem sobre um combate de boxe em que o talhante Juvenal se armava em pugilista e foi "abatido como quem espalma uma mosca na parede" por um boxeur espanhol..Além do desporto, também a literatura tem lugar nessas crónicas, sendo-lhe impossível passar ao lado do sucesso literário que foi o livro de Dinis Machado, O que diz Molero; contar a preferência do francês Albert Camus por hotéis para escrever ou o "arcabouço intelectual de Paulo Quintela"..Também não evita fazer de episódios do dia-a-dia ótimas crónicas, como aquando das cheias do Tejo e da Páscoa em Sangalhos em casa do tios, temas que rivalizam com o elogio que faz à língua portuguesa: "É em português que eu me entendo enquanto for vivo"..Outra das crónicas recorda o seu prazer em folhear revistas antigas, de preferência ilustradas. Nada melhor do que a história que narra pois é muito do que se passa com este Tenho cinco minutos para contar uma história. Folheiam-se as páginas, veem-se as fotografias do autor e aprende-se muito. Também se ri um bom bocado com a visão do mundo de então, nem sempre tão distante da atualidade..Pré-publicação da crónica 'O tipo que se ia casar' .Parece que estas crónicas têm de ser escritas em períodos relativamente curtos - garante-me a minha amiga e colega de jornal Ângela Caires, mais metida do que eu nos meandros da Rádio.."Usa períodos pequenos" - diz--me ela. - "Não percas o fôlego a meio de uma frase. Se fizeres frases longas, falta-te o ar e as pessoas depois perguntam se és asmático.".É o que algumas pessoas me têm já perguntado:."O senhor é asmático?".Respondo que não, que não sou, mas a minha mulher e uma das minhas filhas são. Conheço os seus momentos de crise, os seus terrores noturnos, as olheiras com que acordam. Tudo isto é terrível e estraga às vezes a boa disposição do cronista, pois nunca ninguém pôde viver sem atenção ao outro, atenção ao próximo, ao que faz vida ao lado: partilhamos as venturas e desventuras alheias na proporção direta da nossa generosidade..Mas agora que eu já sei que na Rádio se usam períodos curtos, e como não pretendo massacrar o outro com histórias tristes, ou simplesmente melancólicas, vou então contar um conto alegre de um tipo que se foi casar..O tipo que se foi casar estava imponente de palavra na Messe de um quartel de Cavalaria no Alentejo (olha o período longo, Assis Pacheco!). O tipo que se ia casar, chateado porque no Alentejo em 1963 era uma pasmaceira dos demónios, resolveu convidar para lanchar uma data de amigos. Foram lanchar a um cafezinho que havia em Estremoz, lanche abundante, tipo febras de porco com vinho de Borba e amarelinhas de Veiros, e sucedeu que toda a gente ficou com um grão na asa. Conversa daqui, palestra dali, o grupo ainda teve tempo para mais uma prosa e mais umas amarelinhas noutro cafezinho (olha o período longo!), que aquilo no Alentejo há 14 anos parecia, não era mas parecia, parecia reduzido a cafezinhos e amarelinhas e amigos do peito que nos ajudavam a esquecer o raio da guerra de Angola - aqui é que saiu um período longo, paciência ó Ângela, são coisas da lembrança..Acabados os dois sucessivos lanches nos dois cafezinhos, o tipo que ia casar disse para a ilustre e tropeçante companhia:."Bom, malta, agora tenho de passar pela Conservatória."."E vais a pé, claro" - comentou um dos da malta.."Não" - cortou logo o tipo que ia casar -, "queres que vá montado nalguma mula do quartel?".Não era isso, volveu o parceiro. Nada disso. Apenas era ele de ideia que se pedisse uma bicicleta ao cabo Barra, felizmente vivo para não desmentir este conto. O cabo enfermeiro Barra, companheirão das dúzias, emprestava a "burra" daí a cinco minutos. Pneus cheios, guiador sem torção, tudo ótimo, ala! E lá foi o tipo que ia casar direito à Conservatória do Registo Civil, onde o aguardava um funcionário por causa dos papéis do casamento..Ah, e aqui eu peço muita, muita desculpa à Ângela Caires, o tipo que ia casar era eu, e estava imensamente alegre e bruto e sem equilíbrio em cima da bicicleta e andava só aos esses e em Estremoz diziam quando eu ia passar "olha, o aspirante já vai lindo", sem saberem que eu ia realmente lindo, mas lindo de contente, não lindo de copos, que são coisa de somenos e não ocupam uma vida. Eu voava, rodava nas nuvens, cantava por dentro, e agora estou-me nas tintas para o período curto - há bebedeiras dramáticas e insuportáveis mas aquela era leve, subitamente simultaneamente para rir e chorar (porque havia uma lágrima pendente do monco do aspirante de Cavalaria 3, bolas, um aspirante só casa uma vez, pensava eu, que só casei uma vez e definitivamente com a mesma imagem de mulher)..Na Conservatória esperava-me um silêncio gelado.."Trouxe as certidões?".Tinha trazido as certidões.."Importa-se de assinar?"."Sim, senhor.".Acabei as assinaturas, agradeci e preparava-me para sair quando um empregado velho para aí chefe dos mangas de alpaca de turno me admoestou:."Não é estado, senhor aspirante.".Tentei a graça:."Realmente solteiro não é estado.".E ele: "Estado etilizado.".Apeteceu-me ser mal-educado. Descortês. Chato. Sou o contrário disso quando quero. Desencostei a bicicleta do balcão da Conservatória e saí..Entrar de bicicleta numa Conservatória do Registo Civil equivalia a um desrespeito qualquer que me ia valendo uma punição militar. As pessoas, se eu lhes explicasse o sucedido, não acreditariam. E talvez o burguesinho século XIX as defendesse: um aspirante a "bicicletear" daquela maneira!.Enfim, lá me deram os papéis, lá casei, lá fui para Angola, lá vim de Angola, lá faço eu crónicas para a RDP, e a menina com quem eu casei às vezes prega-me cá uns sustos com a asma que eu até ando de roda. Ela e a filha. Mas a família no resto é alegre. Não sei se terá herdado o meu ar circense montado na bicicleta do cabo Barra, o companheirão das dúzias. Acho que sim..Acho eu que tenho de achar que sim. Herdar os repentes de intolerância é que é para se corrigir, mesmo em períodos longos de prosa doméstica..Deixo-vos um "bom-dia" no pedal deste domingo.