"É disparatado pensar que o excesso de higiene agora pode comprometer o sistema imunitário no futuro"
O combate à pandemia de covid-19 e as medidas de proteção aconselhadas pressupõem a desinfeção e higienização constantes dos espaços, dos objetos, das mãos. Quanto mais asséticos os ambientes, menor a possibilidade de contágio e maior a proteção relativamente à doença. Mas muitos pais já se questionam se isso pode afetar o correto desenvolvimento do sistema imunitário das crianças.
Para esclarecer esta dúvida, falámos com o pediatra e imunologista João Farela Neves, professor de Imunologia e Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa (NOVA Medical School) e diretor do Departamento de Pediatria do Hospital da Luz Lisboa, que explica que não, não afeta, sobretudo pelo carácter temporário destas medidas de higienização rigorosa, porque viver numa redoma, de facto, também não é bom para a saúde das crianças.
Há uma dúvida neste momento na cabeça dos pais. É do senso comum a ideia de que os ambientes asséticos, absolutamente desinfetados, não ajudam à construção e ao reforço do sistema imunitário. O excesso de desinfeção que vivemos agora pode comprometê-lo?
É um assunto complexo e que não tem uma resposta definitiva. Essa ideia de que fala tem muito que ver com aquilo que se defendeu há uns anos, que era a teoria da higiene. De acordo com esta teoria, uma vez que a criança quando nasce tem um sistema imunitário que está em aprendizagem, digamos assim, tem de ser exposto a uma série de estímulos e desafios para ser educado e treinado, caso contrário isso teria uma série de consequências no futuro, nomeadamente o aumento de doenças inflamatórias, de doenças autoimunes e até de algumas neoplasias em idade adulta. A teoria da higiene surgiu muito no contexto do aumento deste tipo de doenças nas últimas décadas nos países civilizados.
E faz sentido?
Há poucas certezas em relação a isso e eu, enquanto imunologista, tenho muita dificuldade em aceitar uma explicação tão linear. Ou seja, pode fazer algum sentido que, se o sistema imunitário numa fase de desenvolvimento não é exposto e, portanto, as células não são treinadas para tolerar as agressões externas, é relativamente fácil aceitar que possam tornar-se hiper-reativas no futuro e daí advirem mais alergias, doenças autoimunes e doenças inflamatórias. Mas existirão muito mais fatores que estão na base disto.
Quais são?
Na minha opinião, o que temos de pôr na balança são sempre dois pesos: num prato da balança, a necessidade de treinar o sistema imunitário e, acima de tudo, fazê-lo sem certezas absolutas relativamente às consequências que daí podem resultar, e, no outro, a necessidade de pesar os riscos que esse treino implica, que é a exposição numa idade precoce aos microrganismos que circulam. Aquilo que defendo sempre é que não podemos nem devemos pôr as crianças em redomas, mas devemos tentar evitar que sejam expostas a determinados agentes em idades precoces da vida em que o sistema imunitário é muito frágil.
Estamos a falar de que idades?
Quem tiver de os pôr na escola aos 6 meses, põe, sem problema nenhum, faz parte da vida e há de ter algumas vantagens, nomeadamente a de treinar o sistema imunitário, mas quem tem alternativa e pode evitar que as crianças sejam expostas a agentes infecciosos até ao 18 meses, 2 anos, acho que deve fazê-lo.
Porquê? Há quem chame "infectários" aos infantários. É por isso?
Porque há determinados desafios imunológicos aos quais, se as crianças forem expostas numa fase precoce da vida, podem trazer problemas graves. Não falo dos dez episódios de febre, dos dez episódios de diarreia, dos cinco de conjuntivite ou dos treze de bronquiolite, doenças que, apesar de tudo, na maioria das vezes, são benignas, mas sim de doenças invasivas bacterianas, com mortalidades que não são negligenciáveis e que podem deixar sequelas. Esse risco, até aos 2 anos, é muito superior, pode ser até 70 vezes superior em relação a uma criança após os 2 anos. Felizmente, com as vacinas, a probabilidade de ter estas doenças é baixa e o risco é pequeno, mas há que ponderá-lo.
Mas uma higienização constante dos espaços e dos objetos e das mãos é saudável?
Novamente, é uma questão de risco-benefício e, neste momento, na minha opinião, essa é uma não questão. Temos de ter isso em cima da mesa. Estamos a lidar com um vírus que ainda a conhecer, que, felizmente, de uma forma geral, poupa as crianças, mas já existe evidência de que estas, em geral, apesar de poderem ter doença leve ou assintomática, são transmissores e podem pôr em risco outras pessoas, nomeadamente avós. Por isso, na minha opinião, a higienização e os cuidados que se estão a ter neste período, pesados mais uma vez nos pratos da balança, são medidas corretas e devem manter-se.
Portanto, higiene a mais não faz mal.
É evidente que estamos numa fase esquisita para toda a gente e com um grande excesso de zelo, mas não podemos pensar que um sistema tão evoluído e tão dinâmico como o sistema imunitário pode sofrer consequências nefastas no futuro por causa de um período da nossa vida em que estamos a fazer uma higiene exagerada das mãos e das superfícies. Isso é completamente disparatado. É evidente que daqui a uns tempos vamos voltar atrás em alguns dos cuidados que estamos a ter atualmente, à medida que a população vai sendo infetada e que vamos tendo um grau de seroprotegidos maior, mas espero que possamos tirar daqui algumas boas lições. Se as crianças com isto ficarem mais educadas e sensibilizadas para a higienização das mãos, é ótimo, é um ganho e não uma perda.