É bom ter de novo um caderno cheio de palavras. Nick Cave por ele próprio

Nick Cave conversa com os seus fãs em The Red Hand Files. E responde a tudo, sobre tudo, seja a sua criação, a poesia ou a música, a sua vida, a morte do filho e a sua fé ou os sonhos de que não se lembra.
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É num corpo de letra courier, uma fonte tipográfica que imita a batida de uma máquina de escrever, que Nick Cave escreve as cartas de resposta aos fãs que lhe deixam perguntas sobre a sua criação, a poesia ou a música, a sua vida, a morte do filho e a sua fé ou os sonhos de que não se lembra - retomando os temas que percorrem o seu longo percurso criativo de 40 anos, em que o amor, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente.

Cada uma destas cartas tem sempre a mesma assinatura de despedida, "love, Nick". E é um gesto de amor aquele que o escritor de canções australiano, radicado na Grã-Bretanha, nos apresenta em The Red Hand Files, o site que já vai em 11 capítulos, o último dos quais publicado na sexta-feira, com uma atualização regular, e que nos desvela os segredos de Nick Cave em ficheiros nada secretos - e desconcertantes, como também é Nick Cave.

Depois do lançamento do seu álbum Skeleton Tree, em 2016, cuja gravação ficou marcada pela morte de Arthur, no verão de 2015, Nick Cave arrumou a cabeça e expiou o luto também numa digressão que, ao longo de 2017 e 2018, o levou aos palcos da América, da Oceânia e da Europa. E escrevendo, escrevendo muito.

A primeira questão de todas, escolhida por Nick, foi feita pelo polaco Jakub e relaciona diretamente o luto com o processo criativo. Jakub recorda-lhe que em One More Time with Feeling, o documentário que acompanhou as sessões de gravação de Skeleton Tree, Nick admitia que tinha perdido o controlo sobre a escrita durante algum tempo e pergunta-lhe se estaria mudar como compositor. O cantor australiano admite que sim, que durante "um ano foi difícil descobrir como escrever" - tudo tinha desmoronado, o centro da sua vida e da vida de Susie, a mulher, tinha morrido. Susie e Nick sentiam-se "uma espécie de estrangeiros flutuando num espaço profundo".

"A boa notícia", respondeu Cave a Jakub, "é que no ano passado senti-me intensamente ligado à minha escrita". E acrescentou: "Algo definitivamente mudou e escrevi muitas coisas novas. Não posso dizer-te o alívio que foi. Eu estou a escrever muito mais e é algo forte e focado, na minha opinião."

O desmoronamento na vida de Nick Cave não foi apenas o da perda física de um dos seus filhos. Aquilo que está no centro da sua vida é ainda, "no caso de um artista", "um sentimento de espanto". "Talvez seja o mesmo para todos", admite o músico. "As pessoas criativas em geral têm uma propensão aguda para a maravilha. Um grande trauma pode roubar-nos isso, a capacidade de ficar impressionado com as coisas. Tudo perde o brilho."

Ouvindo Skeleton Tree, composto durante esse tempo de dor, sabemos que há um espanto permanente em cada uma das suas canções, um sobressalto indizível e um arrebatamento por uma polifonia de afetos. O brilho está lá. Nick Cave revê-se nas palavras de S., uma fã que lhe escreve de Londres, sobre o processo criativo, de que é sempre algo que se vê de forma imperfeita ou apenas pelo canto do olho.

"Eu gosto muito da sua descrição do processo criativo: ver algo imperfeito ou pelo canto do olho. É isso mesmo. Uma boa ideia de música nunca se aproxima de ti, nunca te olha nos olhos, nunca se anuncia - pelo menos não na minha experiência. Ideias líricas são tão ilusórias quanto pirilampos: eles são espíritos que voam entre as árvores. No momento em que lhes dás atenção, eles foram-se."

Na Califórnia, a gravar novo álbum

Nick Cave vai além do que lhe perguntam, dá notícias do que está a fazer ou do que poderá acontecer, parece deixar cair a armadura de quem desafia a natureza quando sobe a um palco.

Em setembro passado, na segunda carta, Jenn, de Boston (EUA), pergunta-lhe se tem animais em casa - tem dois cães: "Um cão lunático gentil de olhos tristes e com cancro chamado Otis e um pequeno salsicha psicótico chamado Nosferatu, cujo único grande empreendimento na vida é morder-me."

Antes de falar dos cães, Cave começa por dar uma novidade. "Enquanto escrevo isto, estou sentado num estúdio com Warren na Califórnia a trabalhar no novo disco." E desvela um pouco do que está a acontecer: "É uma coisa estranha e maravilhosa e muito diferente do que aconteceu antes. Estamos sob o seu feitiço."

Em tempos em que as mediações tradicionais são postas em causa todos os dias, através das redes sociais - com atores e atrizes, músicos, modelos, um sem-número de famosos e antes intocáveis a interagir com os seus admiradores e detratores, Nick Cave surpreende-se com a reação que o site teve logo no primeiro instante. "Tenho sido inundado com perguntas. A adesão a The Red Hand Files apanhou-me completamente desprevenido. Por isso, muito obrigado a todas e a todos."

O australiano sempre foi um magnífico contador de histórias, como provam também as suas canções (e os romances a que já deu vida) ou as prosas breves deste site. Como quando Irina, de Londres, questiona se no "bloco de notas cheio de palavras" de Nick grava peças do seu subconsciente e atreve-se a perguntar como serão os sonhos e como influenciam eles a escrita do australiano.

A resposta é desconcertante: "Assassinos cruéis sequestraram o Warren. Os sequestradores enviaram-me uma lista de exigências. Eu tive de escrever uma carta de volta concordando com essas exigências. A carta que eu estava a compor tinha exatamente o mesmo formato de uma edição do Red Hand Files, com a mesma fonte [tipográfica] cambria de vermelho sangue, o mesmo fundo de cor creme. O problema era que eu estava a ter um problema técnico em formatar a carta. As letras continuaram a lutar. A fonte continuou a mudar. O pequeno logótipo da mão vermelha não ficava de pé. O tempo estava a esgotar-se. E eu acordei, a tremer." Era um sonho, bem se vê, mas pelo sim, pelo não Nick telefonou a Warren. "Parece-me que ele está bem."

Warren Ellis, que foi o responsável pela direção musical de Skeleton Tree, começou a colaborar com Nick Cave na gravação de Murder Ballads, e desde então tem ganho preponderância na definição do som do australiano e da sua banda. E tornou-se um amigo, concorda Cave, em resposta a vários fãs que o questionaram sobre... Ellis. "Há uma certa santidade nessa amizade, na medida em que ela atravessou todos os tipos de problemas nos últimos vinte e poucos anos, mas permanece resiliente como sempre. A nível profissional, desenvolvemos um estilo de composição baseado quase exclusivamente num tipo de intuição e improvisação espiritual que, como diz Henry Miller, parece calmo, alegre e imprudente."

Foi com o texto em que falou explicitamente da morte do filho que este The Red Hand Files se projetou no espaço mediático. A americana Cynthia conta-lhe que experimentou a morte do pai, da irmã e do seu primeiro amor nos últimos anos e que sente que, "de algum modo, mantém a comunicação com eles através de sonhos". E Nick e Susie vivem o mesmo?, pergunta-lhe então.

"Sinto a presença do meu filho, por todo o lado", diz-lhe Nick Cave. "Parece-me que se amamos sofremos. É esse o pacto. O amor e o luto estarão para sempre ligados", escreve o músico. "O luto é o lembrete terrível das profundezas do nosso amor e, tal como este, não é negociável."

A dor, conta-nos ainda, "ocupa o núcleo do nosso ser e estende-se dos nossos dedos até aos limites do universo. Dentro dessa volta existem todo o tipo de loucuras: fantasmas, espíritos, sonhos, tudo o que na nossa angústia desejarmos existir".

As muitas dúvidas e as poucas certezas de um crente

Há uma espiritualidade que atravessa música e a poesia de Nick Cave e, quando questionado sobre Deus - por um ateu, por exemplo, que lhe pede que explique a sua fé -, o australiano prolonga a resposta para lá do óbvio. "Há décadas que ando às voltas da ideia de Deus. Tem sido um lento arrastar pela periferia de Sua Majestade, com a caneta na mão, tentando escrever ao Deus vivo. Às vezes, acho que quase consegui. Quanto mais me torno disposto a abrir a minha mente para o desconhecido, a minha imaginação para o impossível e o meu coração para a noção do divino, mais Deus se torna aparente."

A reflexão prossegue sobre aquilo que se está disposto a procurar. "Acho que temos aquilo em que estamos dispostos a acreditar e que a nossa experiência do mundo se estende exatamente aos limites de nosso interesse e credibilidade. Estou interessado na ideia de possibilidade e incerteza. A possibilidade, pela sua própria natureza, estende-se além dos factos prováveis, e a incerteza impulsiona-nos para a frente. Eu tento encontrar o mundo com uma mente aberta e curiosa, insistindo em nada mais do que a liberdade do olhar para lá do que achamos que sabemos."

E perante outra questão, se Deus existe, a resposta dada é aquela que ouvimos nas suas canções. "Eu não tenho nenhuma evidência, mas não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certa. Para mim, a questão é o que significa acreditar." E acrescenta: "Acho impossível não acreditar, ou pelo menos não estar envolvido na procura disso, o que de certa forma é a mesma coisa. A minha vida é dominada pela noção de Deus, seja a Sua presença ou a Sua ausência. Eu sou um crente - na presença de Deus e na Sua ausência. Acredito na procura em si, mais do que no resultado dessa procura. Como extensão dessa crença, as minhas músicas são perguntas, raramente respostas."

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