Está a chegar (quinta-feira, dia 21) a versão cinematográfica de Dune, do norte-americano Frank Herbert (1920-1986), assinada pelo canadiano Denis Villeneuve. Reza a lenda - que, neste caso, coincide com a história verídica - que Herbert recebeu respostas negativas de quase duas dezenas de editores antes de conseguir publicar o seu livro, em 1965. Há qualquer coisa de desconcertante e irónico na memória dessas dificuldades, quanto mais não seja porque logo em 1966 o romance seria consagrado com o Prémio Hugo, da World Science Fiction Society, e o Prémio Nebula, atribuído pela associação de escritores de ficção científica dos EUA (distinção criada nesse mesmo ano). Apesar das vendas moderadas da primeira edição, Dune rapidamente adquiriu a dimensão de fenómeno popular, transformando-se numa referência de culto para várias gerações de leitores, com perto de 20 milhões de cópias vendidas - no mercado português, está disponível uma tradução, Duna, de Jorge Candeias (Relógio d"Água, 2020)..Criando uma saga futurista que tem tanto de tragédia familiar como de parábola política, o visionário Herbert talvez não pudesse prever que o seu livro estivesse agora envolvido numa polémica cultural e económica que, em qualquer caso, é de raiz cinematográfica. Em especial nos meios cinematográficos dos EUA, está instalada uma intensa discussão motivada pelo lançamento simultâneo de Dune nas salas e no streaming..Villeneuve foi um dos primeiros a protestar contra tal decisão, em novembro de 2020, quando a Warner Bros. anunciou que, nos EUA, as suas produções para 2021 estreariam ao mesmo tempo nos cinemas e na HBO Max. Em agosto, voltou a lembrar que não estava satisfeito com a decisão, já que o filme foi todo ele concebido como "um tributo à experiência do grande ecrã"; para ele, ver Dune num televisor é qualquer coisa como "conduzir um barco a motor numa banheira". Ainda assim, acrescentou que os dirigentes da Warner ficaram muito satisfeitos com os resultados, acreditando que o estúdio não irá desistir da "Parte II" prevista desde o início do projeto..A primeira versão cinematográfica de Dune surgiu em 1984, numa altura em que Indiana Jones, interpretado por Harrison Ford, era uma bandeira das aventuras cinematográficas. Foi em 1981 que se estreou Os Salteadores da Arca Perdida, de Steven Spielberg, promovido com uma frase emblemática: "O regresso da grande aventura". Dito de outro modo: mais ou menos a partir daí (sem esquecer que o primeiro título de A Guerra das Estrelas tinha sido lançado em 1977), os filmes centrados em figuras heroicas, reais ou imaginárias - e, mais tarde, como bem sabemos, em super-heróis -, passaram a ser encarados como matéria prioritária dos grandes estúdios..Tal como acontece agora, a saga do jovem Paul Atreides e as atribulações em torno do domínio do planeta Arrakis - cujo deserto contém a preciosa "especiaria" que é fonte de vida e poder - não correspondiam aos modelos correntes da aventura. Além do mais, na realização estava David Lynch, autor cujo talento se tinha afirmado através de dois títulos com características bem diferentes: primeiro, Eraserhead (1977), um conto fantástico de orçamento minimalista; depois, O Homem Elefante (1980), retrato íntimo de um ser humano, também ele fantástico, que revisitava, em tom de impecável classicismo, a época vitoriana..O que seria Dune se antes, em meados dos anos 1970, o chileno Alejandro Jodorowsky tivesse conseguido concluir o seu monumental projeto de adaptação? Não sabemos, claro, ainda que a história do seu falhanço financeiro esteja contada no documentário Jodorowsky"s Dune (2013), de Frank Pavich. O Dune de Lynch resultou de um convite do produtor italiano Dino de Laurentiis, na altura com uma presença forte nos mercados internacionais, incluindo os EUA, onde produzira, por exemplo, King Kong (1976), de John Guillermin, ou Ragtime (1981), de Milos Forman..Lynch já tinha sido tentado a mudar o rumo do seu trabalho, tendo recusado o convite de George Lucas para dirigir O Regresso de Jedi (1983). O certo é que contou com a bênção do próprio Frank Herbert para realizar Dune, ainda que isso não tivesse impedido que o projeto se tornasse um quebra-cabeças de produção e, no limite, um objeto à beira do apócrifo - nas suas entrevistas, Lynch deixou mesmo de se mostrar disponível para falar do filme..Kyle MacLachlan, futuro ator fetiche de Lynch - desde logo como intérprete do agente Dale Cooper na série Twin Peaks (1989-1991) -, teve a sua estreia cinematográfica a interpretar Paul Atreides, liderando um elenco que incluía, entre outros, Patrick Stewart, Virginia Madsen, Max von Sidow e ainda Sting, na altura a viver a ressaca do fim da sua banda, The Police, prestes a iniciar uma carreira a solo (o primeiro álbum em seu nome, The Dream of the Blue Turtles, seria editado em 1985)..Escusado será dizer que o filme de Villeneuve emana de um contexto bem diferente, ainda que, por inusitada ironia, possamos considerar que o Dune de 1984 e o Dune de 2021 nasceram para cumprir a mesma "missão" de recuperar e, mais do que isso, reconquistar os espetadores que deixaram de ser visitantes regulares das salas escuras: na década de 1980, por causa da concorrência feroz das videocassetes, então a viver o seu glorioso boom comercial (com o formato VHS a impor-se ao minoritário, mas tecnicamente superior, Betamax); agora, tentando encontrar algum equilíbrio entre salas e streaming (numa conjuntura em que o ceticismo do realizador está longe de ser um facto isolado)..Uma coisa é certa: ao lançar-se na aventura de refazer Dune para uma audiência do século XXI, Villeneuve estava longe de ser um principiante em espetáculos desta dimensão. O seu prestígio foi-se consolidando através de registos mais ou menos devedores da tradição policial - lembremos Raptadas (2013) e Sicário (2015) -, incluindo também uma passagem pelo universo fantástico de José Saramago, com a adaptação de O Homem Duplicado (2013). Entretanto, em fevereiro de 2017, quando Brian Herbert, filho de Frank Herbert, anunciou que Villeneuve iria dirigir o novo Dune, a sua filmografia incluía já a epopeia de ficção científica Arrival/O Primeiro Encontro (2016), estando na altura a ultimar a sequela de Blade Runner (1982), intitulada Blade Runner 2049 (estreada em finais de 2017)..Nestes ziguezagues de que é feita a história do cinema, vale a pena lembrar que, em 1979, antes de se colocar a hipótese de David Lynch, Ridley Scott foi o primeiro realizador convidado por Dino De Laurentiis para dirigir Dune - Scott ainda trabalhou numa primeira versão do argumento, acabando por abandonar o projeto, optando por realizar... Blade Runner!.Blade Runner 2049 terá sido a prova de fogo de Villeneuve, não apenas pelo gigantismo da respetiva produção, de orçamento superior a 150 milhões de dólares (Dune custou 165 milhões), mas também porque se tratava de dirigir o protagonista do original, Harrison Ford, prolongando um filme com lugar cativo no imaginário de ficção científica de sucessivas gerações de espetadores. O impacto do filme reforçou também a ideia de que os modelos correntes de aventura, dominados pelos super-heróis da Marvel e da DC Comics, não esgotam, longe disso, as potencialidades do espetáculo cinematográfico, em especial na imensidão dos ecrãs das salas IMAX..Daí a aposta híbrida que sustenta um filme como Dune. Em primeiro lugar, estamos perante um investimento artístico que privilegia a criação de cenários grandiosos, revalorizando a dimensão física dos estúdios (mesmo se partes significativas foram rodadas em zonas desérticas da Jordânia e dos Emirados Árabes Unidos); depois, o filme aposta num elenco cujo apelo junto do público será mais forte do que aquele que Lynch reuniu para a produção de 1984..Timothée Chalamet, no papel de Paul Atreides, é o trunfo principal, tendo a seu lado Rebecca Ferguson no papel de Lady Jessica, mãe de Paul, atriz cuja popularidade nasceu das duas edições de Missão Impossível (2015 e 2018, respetivamente Nação Secreta e Fallout) em que contracenou com Tom Cruise. Depois, o elenco integra nomes como Oscar Isaac, Javier Bardem, Zendaya e Jason Momoa (celebrizado como intérprete de Aquaman, personagem do catálogo da DC Comics), sem esquecer as presenças dos veteranos Josh Brolin e Charlotte Rampling..Sendo Dune (o livro e os filmes) uma teia de temas e simbologias em que, através da personagem de Paul Atreides, emerge a questão da definição identitária do filho - "de onde venho, qual a minha herança, como elaborar o meu futuro?" -, Timothée Chalamet apresenta-se, assim, como representante de uma ideia de juventude que não se quer estranha a valores clássicos de família, comunidade e coesão social..Nesta semana, ele surge, aliás, como figura central de um dossiê da Time dedicado a jovens dos mais variados domínios profissionais, apontados pela revista como líderes de novos valores (Next Generation Leaders), delineando o "caminho para um futuro mais radioso". Como é que Chalamet encara esse futuro? Responde, citando um amigo (cujo nome não pode revelar, sob pena de o ofender) que, na noite em que se conheceram, lhe traçou um pedagógico programa de vida: "Nada de drogas duras e nenhum filme de super-heróis.".dnot@dn.pt